DEGUSTAÇÃO – GORDA DEMAIS PRA SONHAR
Narrado por Rebeca (adolescente)
Antes de ser resistência, eu fui vergonha.
Antes de ser fogo, eu fui pedaço.
Antes de aprender a dançar com raiva, eu aprendi a engolir humilhação.
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Meu nome é Rebeca dos Santos.
E durante anos, o mundo fez questão de me lembrar que meu corpo era um erro.
Que meu tamanho era problema.
Que minha existência era exagero.
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Na adolescência, isso virou regra.
Aos olhos deles, eu nunca fui só uma menina.
Fui a "gordinha" da sala. Fui a "balofinha" do bairro. Fui o motivo de risada no grupo de w******p que eu nem sabia que existia.
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Na escola, o recreio era campo de guerra.
Eu sentava sozinha, apertada no banco pequeno que não cabia direito minha coxa larga.
O uniforme ficava esticado demais no peito, e as meninas apontavam rindo:
— “Parece que vai estourar!”
Quando tinha educação física, eu suava mais que o normal.
E o suor era só mais munição:
— “Corre, barril ambulante!” — “Chama o bombeiro que a baleia tá derretendo!” — “Se Rebeca cair, abre buraco até na quadra!”
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Odiava sair da sala.
Odiava ser vista.
Andava encolhida, puxando a blusa pra baixo, tentando esconder a barriga.
Mas não dava pra esconder quem a cidade já tinha marcado.
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No ônibus, quando eu subia, vi dedos cutucando:
— “Senta do outro lado que senão tomba o banco!”
No mercado, vi olhar atravessado da caixa quando eu passava com dois pacotes de bolacha na mão.
Na rua, ouvi buzinas seguidas de piadas sujas:
— “Olha a gostosa, dois em um: mulher e colchão!”
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Era como se meu corpo fosse culpa.
Como se viver ocupando espaço fosse um crime.
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E o pior?
Nem em casa era diferente.
Minha mãe, cansada de sofrer na vida dela, achava que me "preparava" pra sofrer menos na minha.
— “Fecha essa perna, Rebeca, com esse tamanho!” — “Tu já é grande, não precisa ser espalhafatosa!” — “Com esse peso, ninguém vai querer dançar contigo, menina!”
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Mas eu queria.
Queria dançar.
Era o único lugar onde eu esquecia do tamanho do meu corpo e lembrava da força dele.
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Desde pequena, meu sonho era ser professora de dança.
Professora de funk.
Não de balé de sapatilha apertada, nem de jazz de escola chique.
Eu queria ensinar o que batia no peito da favela: o grave, o passinho, o rebolado com alma.
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Sonhava em ver as crianças soltas, livres, grandes do jeito que quisessem ser.
Sonhava em abrir uma turma onde ninguém ia rir de quem rebolasse demais.
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Mas sonho na vida de uma menina gorda é visto como piada.
Quando eu disse pra primeira professora:
— “Eu quero ser professora de dança.”
Ela riu.
Riu na minha cara.
Sem vergonha, sem culpa.
— “Professora de dança? Com esse peso? Só se for aula de zumba de gordo!”
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Fiquei quieta.
Fingi que não doeu.
Voltei pra casa, tranquei a porta do quarto e desabei.
Chorei no travesseiro duro.
Chorei sem fazer barulho pra minha mãe não ouvir.
Chorei até faltar ar.
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Às vezes, me olhava no espelho e me odiava.
Cutucava a barriga.
Puxava a coxa.
Chorava pelos braços gordos, pela papada, pelas estrias que começavam a desenhar meu corpo.
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Tentei parar de comer.
Tentei me encolher.
Tentei caber.
Mas a fome vinha.
E a vergonha ficava.
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No dia da inscrição pro concurso de dança da escola, eu tremia tanto que parecia febre.
Assinei meu nome com vergonha.
Na hora da apresentação, subi no palco improvisado, a luz dura na cara, o olhar de todos cravado no meu quadril, na minha barriga.
Bastou o primeiro rebolado e a primeira gargalhada explodiu:
— “Vai quebrar o chão!” — “Olha o terremoto do funk!”
Minhas pernas tremeram.
Mas eu continuei.
Rebolei com o pouco de coragem que sobrava.
Dançar nunca foi pra eles.
Sempre foi pra mim.
Pra lembrar que eu existia.
Mesmo quando o mundo me mandava sumir.
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No fim, a professora só disse:
— “Parabéns pela coragem.”
Coragem.
Não talento.
Não arte.
Coragem.
Como se dançar sendo gorda fosse um ato de atrevimento imperdoável.
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Fui pra casa sentindo o mundo pesar o triplo nas costas.
Mas sabia que, mesmo que me arrancassem a dignidade no olhar...
Eu ainda tinha o corpo.
Eu ainda tinha o funk.
Eu ainda tinha a dança.
E eles nunca iam conseguir tirar isso de mim.
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Ainda demoraria muito pra essa dor virar força.
Ainda demoraria muito pra entender que quem ri de mim hoje, engasga amanhã.
Mas ali, sozinha, rejeitada, humilhada...
Eu já tinha uma certeza:
Eu não ia desistir.
Nem que dançasse pra ninguém.
Nem que dançasse só pra sobreviver.
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Meu nome é Rebeca dos Santos.
E antes de ser resistência…
Eu fui a piada que eles contavam.
Agora, sou a resposta que eles engolem seco.
Mas essa história — a da resposta — vem depois.
Porque primeiro... Primeiro teve a dor.
E eu senti cada maldito segundo dela.
...
E pra quem já foi piada como eu fui…
Escuta aqui:
Te ensinaram que tu é exagero?
Então exagera mais.
Te chamaram de grande?
Então ocupa o dobro de espaço.
Te apontaram porque tu é diferente?
Então vira referência.
Porque o problema nunca foi teu tamanho.
Foi o tamanho da coragem que tu carrega.
Eles querem que tu se esconda porque têm medo do que não conseguem diminuir.
Eles querem que tu se cale porque sabem que tua voz pesa mais que o deboche deles.
Eles querem que tu pare de dançar porque sabem que teu movimento é revolução.
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Então rebola.
Rebola com raiva, com dor, com vergonha mesmo.
Mas rebola.
Rebola pra lembrar que quem tem medo de ti é quem nunca teve coragem de ser livre.
Rebola pra quem não quis te ver.
Rebola pra quem tentou te apagar.
Rebola pra tu mesma.
Porque a tua existência já é um grito.
E teu corpo?
Teu corpo é a resposta.
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Não é tu que precisa mudar pra caber no mundo.
É o mundo que vai ter que abrir espaço pra caber em ti.
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Entendeu?
Então bora dançar.
Bora ocupar.
Bora incomodar.
Porque quem nasceu pra ser trovão...
não abaixa o som pra agradar tempestade nenhuma.
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