CAPÍTULO 3 – O MORRO TEM DONO, E É O DEMÔNIO EM CARNE VIVA
Narrado por Kevão
A quebrada fervia de medo.
O cheiro de pó, sangue azedo e esgoto podre misturava no ar.
E eu, sentado no meu trono de plástico sujo, cuspia fumaça na cara da favela inteira.
Sou o rei dessa merda.
Não porque pedi.
Porque arranquei no braço, no berro e na bala.
Meu nome é Kevão.
No papel é Kevin Elias dos Santos.
Mas aqui no Morro Azul, papel não vale nem pra limpar a b***a.
Aqui quem manda é quem mata mais rápido e sorri depois.
E eu?
Eu sou o sorriso do d***o nessa p***a de favela.
**
Filho do Caveira.
Homem que me ensinou cedo que abraço é armadilha.
Que lágrima é convite pra morte.
Vi meu pai quebrar braço, arrancar dente, enfiar faca no pescoço de n**o que tossia errado na frente dele.
Eu cresci aprendendo que quem sente... morre.
Que quem sonha... é enterrado de madrugada, num beco qualquer, embrulhado em lençol velho.
**
Caveira caiu.
Traído.
Apodrecendo no buraco que eu mesmo mandei cavar.
Chorei?
Não.
Cuspi na cova dele e fui t*****r com a primeira p**a barata que achei.
Porque aqui, quem enterra inimigo, comemora no g**o.
**
Hoje o Morro Azul respira por minha causa.
Respira porque eu deixo.
E quem ousa desafiar... nem respira mais.
**
A boca tava no ritmo certo.
Menor embalando papelote.
Radinho chiando senha.
Dinheiro pingando de mão suja pra mão suja.
Eu tragava o cigarro como quem respira pecado.
Até Rato se enfiar na minha frente.
— Patrão... deu r**m.
— Fala, c*****o — respondi sem tirar o cigarro da boca.
— O Bira... o noiado... não pagou a parada.
**
Fechei os olhos.
Inalei a fumaça até queimar o pulmão.
Soltei devagar, sentindo o gosto da morte.
— Cadê esse filho da p**a?
— Viela 7. Tá amarrado.
**
Levantei devagar.
Cada movimento meu era uma sentença assinada.
Peguei a Glock, encaixei na cintura, e fui descendo a viela.
Atrás de mim, a quebrada se calava.
As mães puxavam filho pela camisa.
As velhas trancavam as portas com tranca e reza.
Sabiam.
Onde Kevão pisa... a morte passeia de coleira.
**
O beco fedia.
Mijo, podre, resto de alma perdida.
O Bira tava lá.
Amarrado com fio de energia.
Camisa rasgada.
Calça suja de merda.
Tremendo igual frango na mão de macumbeiro.
**
Parei em cima dele.
Dei um sorriso de canto.
Aquele sorriso que até o d***o, lá do inferno, deve bater palma.
— Qual foi, seu merda?
Ele choramingou.
— Patrão... eu... eu vou pagar... só me dá mais um dia...
Dei uma gargalhada seca.
Uma gargalhada que ecoou pelo beco morto.
— Um dia?
— Um dia pra cheirar mais?
— Um dia pra morrer fedendo?
Dei um chute no queixo dele.
O Bira caiu de lado, cuspindo sangue e dente quebrado.
**
Agachei perto dele.
O cigarro ainda preso no canto da boca.
Peguei o rosto dele com uma mão.
Apertei até ouvir o osso estalar.
— Aqui não tem fiado, filho da p**a.
— Aqui a conta é paga no sangue.
**
Levantei.
Tirei a Glock.
Sem discurso.
Sem aviso.
Só o clique frio da morte armada.
**
O Bira gritou.
Se mijou.
Chorou.
Eu só ri.
— Chora mais, o****o.
— Quero ver teu espírito se mijando quando tu bater na porta do inferno.
**
E puxei o gatilho.
PAH!
A bala atravessou a testa dele.
O crânio estourou como melancia podre.
O sangue espirrou quente no meu tênis.
Dei outro tiro.
Só pra ver o corpo pular.
Dei mais um.
E outro.
Até o tambor cantar.
Porque aqui, no meu reinado, quem vacila... morre em silêncio sujo.
**
Guardei a Glock.
Cuspi no cadáver.
— Alguém limpa essa merda. — falei pros menor, sem nem olhar.
E voltei andando.
Com o gosto da pólvora ainda queimando na boca.
**
No caminho, os olhos me evitavam.
As portas se trancavam.
Era o medo que eu gostava.
O medo que me alimentava.
**
Cheguei de novo na boca.
Me joguei no trono de plástico.
Abri um sorriso cheio de nicotina, violência e desprezo.
**
Rato se aproximou de novo.
— Patrão… outra fita.
— Fala logo, p***a.
— Prefeitura vai subir amanhã.
— E daí? — perguntei, cuspindo fumaça na cara dele.
— Vão abrir oficina de dança pras criança.
— Que se f**a.
— Tem uma mulher vindo. Gordinha. Fala bonito. Rebeca, parece.
— Conheço não — rosnei.
— E nem quero conhecer.
**
Ele coçou a cabeça.
— Dizem que é irmã de um tal de Fábio.
Fábio.
Morto.
E enterrado.
Tanto faz.
**
— Quer ensinar dança? — ri.
— Vai ensinar a rebolar no próprio velório.
Canela riu, nervoso.
Outro tossiu no canto.
**
— Deixa essa gorda subir — falei.
— Quanto maior o salto… maior a queda.
**
Fiquei ali.
Sentado no trono.
Fumando.
Ouvindo o morro respirar meu nome.
**
O Morro Azul é meu.
Cada viela, cada buraco, cada sonho quebrado.
E amanhã, quando essa otária pisar aqui achando que vai mudar alguma coisa...
Eu vou sorrir.
Eu vou rir do fracasso dela.
Eu vou ver a esperança dela sangrar.
**
— Amanhã... — falei alto, pra todo mundo ouvir —
— Amanhã a favela vai sorrir bonito...
(pausa)
— Mas quem sorri mais sou eu... mijando no sonho de quem pensa que pobre tem salvação.
**
E soltei a fumaça.
Preta.
Pesada.
Cheirando a morte.
**
Kevão.
Filho do Caveira.
Filho da p**a.
Demônio parido pelo próprio morro.
**
Amanhã...
A esperança vai gemer antes de morrer.
E eu?
Eu vou gozar rindo em cima dela.