CAPÍTULO 4 – SE É PRA INCOMODAR, ENTÃO EU VOU DANÇAR COM MAIS RAIVA
Narrado por Rebeca
Meu nome é Rebeca dos Santos.
Tenho 24 anos.
E se tu achou que eu ia me apresentar com delicadeza, se enganou de endereço.
Aqui é sinceridade na cara.
E corpo no volume máximo.
Sou morena, gorda, bocuda e invocada.
E cê não sabe o quanto me doeu dizer isso sem abaixar a cabeça.
Passei metade da minha vida tentando caber.
Caber na roupa.
Caber na mesa.
Caber no olhar dos outros sem virar piada.
Mas o mundo nunca quis me encaixar.
Quis me esconder.
— “Rebeca, fecha a perna.”
— “Rebeca, cobre essa barriga.”
— “Rebeca, tu não tem corpo pra usar isso.”
— “Tu vai dar aula de dança com esse tamanho?”
E eu?
Por muito tempo, eu acreditei.
Chorei escondida.
Abracei o travesseiro.
Fingi que tava tudo bem.
Só que a dor cansa.
E a vergonha um dia vira raiva.
Hoje, cada dobra do meu corpo é resistência.
Cada marca de estria é tatuagem de guerra.
E cada rebolada é um tapa na cara de quem tentou me calar com risadinha.
**
Moro num canto apertado com Dona Lúcia, minha mãe.
Mulher de poucas palavras e muita cicatriz.
Ela carrega nas costas o abandono do marido — aquele covarde que foi comprar cigarro e nunca mais voltou — e o luto de enterrar o próprio filho com um tiro nas costas.
Fábio.
Meu irmão.
Ele era mais que irmão.
Era minha referência.
O único que me olhava e via beleza onde o mundo só via excesso.
Fábio morreu no Morro Azul.
Morto por Evaldo, o pai do tal do Kevão.
Não foi engano.
Foi execução.
E todo mundo se calou.
Vão me ver subir o mesmo morro que sangrou meu sangue.
Só que eu não volto como vítima.
Volto como ameaça.
**
Acordei cedo.
Mas não dormi a noite inteira.
Fiquei deitada encarando o teto, ouvindo o barulho da cidade lá fora, e o peso do passado aqui dentro.
Levantei e fui pra cozinha.
— Tu vai mesmo subir amanhã? — minha mãe perguntou sem tirar os olhos da chaleira.
— Vou.
Ela não discutiu.
Só respirou fundo.
— Aquilo ali não é projeto, é campo de guerra.
— Aquilo ali tem dono.
— E o dono não gosta de mulher que fala grosso.
— Nunca vi esse tal de Kevão.
— E nem faço questão.
— Se ele quiser me conhecer, que venha bater de frente.
Ela não respondeu.
Mas sei que sentiu.
Terminei o café e fui pro quarto.
Abri o armário e encarei o espelho.
Cabelo solto.
Pele queimada de sol.
Boca grossa.
Quadril largo.
Peito cheio.
Coxa viva.
Barriga presente.
Olhar de quem já apanhou da vida e aprendeu a bater de volta.
Escolhi o cropped preto escrito “NÃO É SÓ RABA, É RESISTÊNCIA.”
Short jeans justo.
Tênis branco.
Brinco grande.
Batom vinho.
Me olhei mais uma vez.
E sorri.
Não de felicidade.
De vingança.
Peguei a mochila com o material da aula, uma muda de roupa, água, toalha… e a coragem dobrada.
Na sala, minha mãe esperava.
Ela segurou a foto do Fábio com a mão trêmula.
— Ele ia ter orgulho de ti.
— Ele morreu por andar com quem não devia.
— Eu vou viver por não me calar pra quem acha que manda.
Ela sorriu, cansada.
Eu beijei a testa dela.
— Amanhã eu volto.
Mas volto diferente.
Volto pra ensinar onde me mandaram calar.
Volto pra dançar onde derramaram sangue.
Volto pra mostrar que mulher grande também faz história.
E se o morro quiser me engolir…
Vai ter que engasgar com meu nome.
Peguei a mochila, ajustei o cropped e saí.
Hoje era a última aula na João C. da Costa, a escola onde tudo começou.
Onde me olharam torto quando entrei.
E depois… começaram a aplaudir de pé.
Só que o respeito nunca veio fácil.
Foi na força da raba, na firmeza da perna, na palavra que não abaixa.
Foi dançando funk com a cara erguida, mesmo quando cochichavam:
— “Olha lá, a gordinha se achando.”
— “Vai ensinar dança com esse corpo?”
E eu?
Fazia questão de rebolar mais devagar, só pra eles verem que o problema era deles.
Não meu.
**
Cheguei na escola e já senti o clima.
A diretora, como sempre, com aquele blazer torto e cara de quem engole a marra só porque o projeto dá ponto com a prefeitura.
Os professores fingindo que apoiam.
Os alunos... ah, os alunos.
Esses são tudo.
A molecada veio correndo:
— É hoje, profe?
— Última aula?
— Última aqui. Mas primeira de uma guerra nova — respondi.
— Vai ter passinho?
— Vai ter mais que isso.
— Vai ter aula de verdade.
**
Coloquei as caixas no pátio.
Fone no ouvido.
Volume no talo.
Liguei a playlist: batidão direto de Madureira, 150 BPM, grave com alma.
E falei alto, pra todo mundo ouvir:
— Quem quiser ver aula, senta.
— Quem quiser dançar, vem.
— Quem quiser criticar, aproveita. Porque hoje é a última chance de me ver aqui — e eu vou incomodar até o último beat.
Desamarrei o tênis, tirei a jaqueta.
Fiquei só com o cropped colado e o short que já conhecia o chão do pátio.
A batida bateu no peito.
O som explodiu nos vidros.
E eu dancei.
Abri as pernas, desci com força, girei no próprio eixo.
Rebolei devagar, olhando nos olhos de quem já me subestimou.
Agachei com o quadril solto, levantei como se estivesse ressuscitando cada pedaço que tentaram apagar.
— Isso aqui não é só dança! — gritei.
— É sobrevivência.
— É protesto.
— É o corpo dizendo: “tô aqui!”
— E quem tiver incomodado… que vá cuidar do próprio recalque.
As meninas dançavam comigo.
As menores batiam palma.
Os meninos da 8ª, que antes me zoavam, agora filmavam.
E eu?
Dançava como se fosse minha última chance de deixar rastro.
— Cês tão vendo essa barriga? — apontei.
— Esse quadril? Essa coxa? Essa b***a?
— Já riram.
— Já debocharam.
— Já disseram que não era corpo de professora.
— E hoje… é corpo de referência.
— De exemplo.
— De mulher que não abaixa a p***a da cabeça pra ninguém.
A diretora apareceu.
Fingiu que sorria.
Eu encarei.
— Obrigada pela tentativa de me podar.
— Porque foi por causa dela… que eu cresci em dobro.
A turma aplaudiu.
E eu senti.
Senti o peito quente.
Os olhos marejaram, mas não caíram.
Porque lágrima minha não desce por dor.
Só por orgulho.
**
No fim da aula, sentei no chão com eles.
Círculo.
Silêncio.
Vibe.
— Tô indo pra outro lugar. Mais perigoso.
— Mais tenso.
— Mas também cheio de criança igual a vocês.
— Se eu cheguei até aqui, vocês também chegam.
Uma menina levantou a mão.
— E se rirem da gente?
— Rebola com mais força.
— Porque quem ri da gente… na verdade, queria ser igual.
Me levantei.
Bati palma.
— Agora cês vão me ver na TV.
— Na rádio.
— E no morro.
Saí com o short colado, o cabelo solto e a postura reta.
Sabendo que deixei um legado ali.
E pronta pra carregar esse fogo até onde quiserem me apagar.
Porque amanhã… o cenário muda.
Mas a raba que dança com coragem, essa continua.
E se o morro tentar me derrubar…
Vai dançar comigo antes de cair.