capítulo 4 Rebeca

1259 Palavras
CAPÍTULO 4 – SE É PRA INCOMODAR, ENTÃO EU VOU DANÇAR COM MAIS RAIVA Narrado por Rebeca Meu nome é Rebeca dos Santos. Tenho 24 anos. E se tu achou que eu ia me apresentar com delicadeza, se enganou de endereço. Aqui é sinceridade na cara. E corpo no volume máximo. Sou morena, gorda, bocuda e invocada. E cê não sabe o quanto me doeu dizer isso sem abaixar a cabeça. Passei metade da minha vida tentando caber. Caber na roupa. Caber na mesa. Caber no olhar dos outros sem virar piada. Mas o mundo nunca quis me encaixar. Quis me esconder. — “Rebeca, fecha a perna.” — “Rebeca, cobre essa barriga.” — “Rebeca, tu não tem corpo pra usar isso.” — “Tu vai dar aula de dança com esse tamanho?” E eu? Por muito tempo, eu acreditei. Chorei escondida. Abracei o travesseiro. Fingi que tava tudo bem. Só que a dor cansa. E a vergonha um dia vira raiva. Hoje, cada dobra do meu corpo é resistência. Cada marca de estria é tatuagem de guerra. E cada rebolada é um tapa na cara de quem tentou me calar com risadinha. ** Moro num canto apertado com Dona Lúcia, minha mãe. Mulher de poucas palavras e muita cicatriz. Ela carrega nas costas o abandono do marido — aquele covarde que foi comprar cigarro e nunca mais voltou — e o luto de enterrar o próprio filho com um tiro nas costas. Fábio. Meu irmão. Ele era mais que irmão. Era minha referência. O único que me olhava e via beleza onde o mundo só via excesso. Fábio morreu no Morro Azul. Morto por Evaldo, o pai do tal do Kevão. Não foi engano. Foi execução. E todo mundo se calou. Vão me ver subir o mesmo morro que sangrou meu sangue. Só que eu não volto como vítima. Volto como ameaça. ** Acordei cedo. Mas não dormi a noite inteira. Fiquei deitada encarando o teto, ouvindo o barulho da cidade lá fora, e o peso do passado aqui dentro. Levantei e fui pra cozinha. — Tu vai mesmo subir amanhã? — minha mãe perguntou sem tirar os olhos da chaleira. — Vou. Ela não discutiu. Só respirou fundo. — Aquilo ali não é projeto, é campo de guerra. — Aquilo ali tem dono. — E o dono não gosta de mulher que fala grosso. — Nunca vi esse tal de Kevão. — E nem faço questão. — Se ele quiser me conhecer, que venha bater de frente. Ela não respondeu. Mas sei que sentiu. Terminei o café e fui pro quarto. Abri o armário e encarei o espelho. Cabelo solto. Pele queimada de sol. Boca grossa. Quadril largo. Peito cheio. Coxa viva. Barriga presente. Olhar de quem já apanhou da vida e aprendeu a bater de volta. Escolhi o cropped preto escrito “NÃO É SÓ RABA, É RESISTÊNCIA.” Short jeans justo. Tênis branco. Brinco grande. Batom vinho. Me olhei mais uma vez. E sorri. Não de felicidade. De vingança. Peguei a mochila com o material da aula, uma muda de roupa, água, toalha… e a coragem dobrada. Na sala, minha mãe esperava. Ela segurou a foto do Fábio com a mão trêmula. — Ele ia ter orgulho de ti. — Ele morreu por andar com quem não devia. — Eu vou viver por não me calar pra quem acha que manda. Ela sorriu, cansada. Eu beijei a testa dela. — Amanhã eu volto. Mas volto diferente. Volto pra ensinar onde me mandaram calar. Volto pra dançar onde derramaram sangue. Volto pra mostrar que mulher grande também faz história. E se o morro quiser me engolir… Vai ter que engasgar com meu nome. Peguei a mochila, ajustei o cropped e saí. Hoje era a última aula na João C. da Costa, a escola onde tudo começou. Onde me olharam torto quando entrei. E depois… começaram a aplaudir de pé. Só que o respeito nunca veio fácil. Foi na força da raba, na firmeza da perna, na palavra que não abaixa. Foi dançando funk com a cara erguida, mesmo quando cochichavam: — “Olha lá, a gordinha se achando.” — “Vai ensinar dança com esse corpo?” E eu? Fazia questão de rebolar mais devagar, só pra eles verem que o problema era deles. Não meu. ** Cheguei na escola e já senti o clima. A diretora, como sempre, com aquele blazer torto e cara de quem engole a marra só porque o projeto dá ponto com a prefeitura. Os professores fingindo que apoiam. Os alunos... ah, os alunos. Esses são tudo. A molecada veio correndo: — É hoje, profe? — Última aula? — Última aqui. Mas primeira de uma guerra nova — respondi. — Vai ter passinho? — Vai ter mais que isso. — Vai ter aula de verdade. ** Coloquei as caixas no pátio. Fone no ouvido. Volume no talo. Liguei a playlist: batidão direto de Madureira, 150 BPM, grave com alma. E falei alto, pra todo mundo ouvir: — Quem quiser ver aula, senta. — Quem quiser dançar, vem. — Quem quiser criticar, aproveita. Porque hoje é a última chance de me ver aqui — e eu vou incomodar até o último beat. Desamarrei o tênis, tirei a jaqueta. Fiquei só com o cropped colado e o short que já conhecia o chão do pátio. A batida bateu no peito. O som explodiu nos vidros. E eu dancei. Abri as pernas, desci com força, girei no próprio eixo. Rebolei devagar, olhando nos olhos de quem já me subestimou. Agachei com o quadril solto, levantei como se estivesse ressuscitando cada pedaço que tentaram apagar. — Isso aqui não é só dança! — gritei. — É sobrevivência. — É protesto. — É o corpo dizendo: “tô aqui!” — E quem tiver incomodado… que vá cuidar do próprio recalque. As meninas dançavam comigo. As menores batiam palma. Os meninos da 8ª, que antes me zoavam, agora filmavam. E eu? Dançava como se fosse minha última chance de deixar rastro. — Cês tão vendo essa barriga? — apontei. — Esse quadril? Essa coxa? Essa b***a? — Já riram. — Já debocharam. — Já disseram que não era corpo de professora. — E hoje… é corpo de referência. — De exemplo. — De mulher que não abaixa a p***a da cabeça pra ninguém. A diretora apareceu. Fingiu que sorria. Eu encarei. — Obrigada pela tentativa de me podar. — Porque foi por causa dela… que eu cresci em dobro. A turma aplaudiu. E eu senti. Senti o peito quente. Os olhos marejaram, mas não caíram. Porque lágrima minha não desce por dor. Só por orgulho. ** No fim da aula, sentei no chão com eles. Círculo. Silêncio. Vibe. — Tô indo pra outro lugar. Mais perigoso. — Mais tenso. — Mas também cheio de criança igual a vocês. — Se eu cheguei até aqui, vocês também chegam. Uma menina levantou a mão. — E se rirem da gente? — Rebola com mais força. — Porque quem ri da gente… na verdade, queria ser igual. Me levantei. Bati palma. — Agora cês vão me ver na TV. — Na rádio. — E no morro. Saí com o short colado, o cabelo solto e a postura reta. Sabendo que deixei um legado ali. E pronta pra carregar esse fogo até onde quiserem me apagar. Porque amanhã… o cenário muda. Mas a raba que dança com coragem, essa continua. E se o morro tentar me derrubar… Vai dançar comigo antes de cair.
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