Pré-visualização gratuita 01
Davi Montezano
Eu lembro perfeitamente daquele dia. E às vezes eu me pergunto se foi castigo, coincidência ou só o universo cansado da minha arrogância.
Acordei cedo, como sempre. Sete da manhã, café preto, o noticiário passando na TV enquanto eu respondia e-mails de fornecedores que achavam que podiam negociar comigo. Não podiam. Cheguei na empresa antes das oito. Terno impecável, relógio suíço, cara fechada. O prédio inteiro parecia respirar mais devagar quando eu passava. Eu gostava disso, daquele silêncio respeitoso, do medo disfarçado de admiração.
Passei o dia no escritório, resolvendo problema atrás de problema. Reunião com acionistas, call com parceiros internacionais, planilhas, relatórios, cobrança, cobrança, cobrança. O tipo de dia que te faz pensar em mandar o mundo inteiro à merda, mas que no fim do dia me lembrava por que eu mandava nele.
Por volta das seis da tarde, abri a garrafa de uísque que ficava na gaveta da minha mesa.
Um Macallan 18 anos. Tomei o primeiro copo puro, só pra aliviar o peso nas costas. O segundo já foi por costume. E o terceiro, bem, o terceiro foi porque eu sabia que ainda não tinha vontade de ir pra casa.
Minha noiva, Bianca, devia estar em algum evento de caridade ou sessão de fotos pra revista social. Ela amava aparecer. E eu gostava do silêncio.
Quando o Fábio e o Augusto, meus sócios e amigos mais próximos apareceram na porta do escritório, eu já tinha tirado o paletó e afrouxado a gravata.
“Bora esquecer o mundo um pouco, Montezano?”, o Fábio disse, jogando a chave do carro pro alto. E foi aí que começou o erro.
A gente foi pra um bar desses que só milionário conhece o endereço. Escuro, com música baixa, luz avermelhada e mulheres que cobram mais por hora do que muita gente ganha num mês.
Mas era o tipo de lugar em que eu me sentia no controle sentado num sofá de couro, copo de uísque na mão, charuto aceso e o mundo girando devagar lá fora.
Conversamos sobre negócios, rimos de quem não sobreviveu ao último corte da empresa, e eu fingi que me importava com as dançarinas que se esfregavam perto da gente.
Depois de algumas doses, tudo começou a ficar mais leve. Eu ri por que fazia tempo que eu não ria de verdade. O Fabio apostou que eu não tinha coragem de dançar com uma das garotas. Eu apostei o contrário, óbvio, eu ganhei. Ela era bonita, cheirava a perfume caro e ilusão barata. Ficamos ali um tempo, rindo, falando merda, bebendo mais do que deveríamos.
Quando olhei no relógio, já passava das duas da manhã. O segurança veio me lembrar que o motorista tinha ido embora fazia horas. Eu podia ter chamado outro. Podia ter deixado o carro lá. Mas não, eu era Davi Montezano. O homem que fazia o mundo girar. O homem que mandava e o mundo obedecia.
Peguei as chaves do meu Maserati e fui.
A rua estava vazia, e a cidade parecia dormir.
O som do motor ecoava dentro do carro, junto com meus pensamentos turvos e aquele gosto amargo de uísque na boca.
O celular começou a vibrar no painel, era a Bianca, outra vez.. Ela já tinha ligado umas dez vezes enquanto eu tava no bar. Eu via o nome piscando e simplesmente deixava tocar.
Ela sempre ligava. Sempre queria saber onde eu tava, com quem, por quê. E eu sempre ignorava. Eu odeio da satisfação da minha vida, e ela sabe muito bem disso.
Dessa vez, eu atendi. Não por vontade mas porque queria calar aquela maldita vibração. m*l falei “alô” e ela já veio cuspindo fogo:
— Você tá brincando comigo, Davi? São duas da manhã! — a voz dela atravessou o som do motor. — Eu tô aqui, em casa, te esperando, e você aí, sabe-se lá onde! Eu cansei, juro por Deus, eu cansei desse teu jeito! Você acha que é solteiro, que pode sumir, que pode fazer o que quiser!
Revirei os olhos, uma mão no volante, a outra segurando o copo térmico com uísque que eu tinha trazido comigo.
— Bianca, pelo amor de Deus, começa não. Eu trabalhei o dia inteiro. Fui relaxar um pouco, só isso.
— Relaxar? Num bar com mulher pelada, né? Porque eu sei muito bem onde o Augusto te leva!
— Tá bom, então você sabe. Que bom. Vai dormir e para de drama.
— Você me respeita, Davi! Eu sou sua mulher, não uma dessas vadias que você compra por hora!
Essa doeu. Talvez porque fosse verdade. Talvez porque, por um segundo, eu realmente me vi como um i****a cercado de gente que só tava ali pelo meu dinheiro. Mas o orgulho é uma praga. E eu não sabia perder nem discussão.
— Engraçado… você gosta bem do conforto que o “i****a” aqui te dá, né? Das viagens, da casa, da conta bancária… Mas reclamar é fácil, né, Bianca?
— Você acha que dinheiro compra tudo! Amor, presença, respeito… e não compra! Você tá virando um estranho, Davi!
A cada palavra dela, eu sentia o sangue subir. A raiva dela, a minha. O barulho do motor crescendo junto com o tom da discussão.
— Um estranho que você só lembra que existe quando tem um evento pra postar foto, é isso? — gritei, apertando o acelerador. — Você fala de amor, mas o que você ama é o sobrenome Montezano!
Ela começou a chorar do outro lado. Ou talvez fosse o barulho do vento entrando pela janela, eu não sei. Só sei que quanto mais ela falava, mais eu acelerava. Era como se o carro virasse uma extensão da minha raiva, da minha necessidade de ter o controle de volta.
— Você vai se matar desse jeito, Davi! Pelo amor de Deus, para com isso!
— Eu sei o que eu tô fazendo! — gritei de volta.
Mas eu não sabia. Tudo aconteceu rápido. Um clarão, um farol que surgiu do nada, o som do metal se rasgando, o corpo arremessado pra frente. O celular voou. A voz dela desapareceu.
E naquele instante, o homem que mandava no mundo perdeu tudo. O controle. O corpo. E a própria vida que ele achava que dominava. Quando eu acordei, o silêncio era ensurdecedor. E o mundo nunca mais foi o mesmo.