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1275 Palavras
Davi Narrando A primeira coisa que eu senti quando acordei foi o cheiro. Um cheiro frio, estéril, agressivo, desses que parece entrar pelo nariz e arranhar o pulmão. Não era o aroma amadeirado do meu closet, nem o perfume de couro do interior do meu carro. Era cheiro de hospital. Cheiro de fim. Cheiro de vida suspensa. A luz branca cortava meus olhos como lâminas finas, e por alguns segundos eu nem sabia se estava vivo, morto, ou preso naquele intervalo estranho onde o corpo existe, mas a consciência não acompanha. Tentei virar o rosto, mover o ombro, fazer qualquer coisa além de respirar. Era como se eu tivesse sido preenchido com cimento. Meus braços estavam pesados, meu peito parecia envolto numa compressa invisível, e minhas pernas… minhas pernas não estavam lá. Não no sentido literal, mas como se tivessem sido desconectadas do resto do meu corpo, como se o cérebro gritasse uma ordem e o corpo respondesse com silêncio. — Davi? — a voz veio baixa, trêmula, como se tivesse sido esquecida num canto. Eu conhecia aquela voz desde antes de conhecer o mundo: minha mãe. Ela se inclinou sobre mim e por um instante eu quis perguntar por que diabos ela estava chorando. Minha mãe nunca chorava. Ela era o tipo de mulher que segurava o mundo pelas mãos enquanto equilibrava a família, a reputação e o orgulho sem derramar uma lágrima. Ver os olhos dela vermelhos era… desconcertante. Como se a realidade tivesse sido invertida. — Graças a Deus, meu filho… graças a Deus… — ela murmurava, tocando meu rosto com mãos que tremiam. Eu tentei falar, e foi como tentar puxar ar por um canudo esmagado. Minha garganta ardia. A enfermeira apareceu, mexendo nos monitores sem olhar pra mim de verdade, como se eu fosse só mais um corpo numa cama. E eu odiei isso. Eu, que sempre fui visto. Eu, que sempre fiz as pessoas olharem duas vezes. Eu era agora algo fragmentado. Depois de um tempo que eu não soube medir, o médico entrou. Tinha aquele olhar ensaiado de quem já devastou famílias suficientes pra saber o momento certo de respirar entre uma sentença e outra. Ele falou meu nome como se estivesse tratando um paciente qualquer. E isso me irritou imediatamente. — Senhor Montezano, precisamos conversar sobre a extensão da sua lesão… — ele começou, enquanto folheava prontuários e exames como se estivesse lendo o cardápio de um restaurante. Eu quis levantar da cama. Quis sentar. Quis discutir, impor voz, bater na mesa, fazer o mundo me ouvir como sempre fez. Mas as minhas pernas não moveram. Não houve resposta. Nenhum sinal. Nenhum mínimo reflexo involuntário. — A fratura atingiu sua coluna em uma região crítica — ele continuou, e eu ouvia como se estivesse dentro de um túnel, tudo ecoando. — Atualmente, não há mobilidade da cintura para baixo. A lesão é irreversível no quadro atual. Irreversível. Uma palavra tão calma, tão médica, tão fria. Eu ri. Não porque achei graça, mas porque o absurdo era grande demais pra caber no silêncio. Um riso curto, seco, quase um latido. — Você só pode estar de s*******m comigo — eu consegui soltar, e minha voz soou estranha, como se não fosse minha. — Davi… — minha mãe começou, mas eu não deixei. — NÃO. — A palavra saiu arrancada de dentro de mim. — Eu quero outro médico. Quero uma junta. Quero alguém que saiba o que está fazendo. Eu pago. Eu pago o que for. Eu compro o hospital inteiro se for preciso. Eu não vou ficar assim. Vocês estão entendendo? Eu não. Vou. Ficar. Assim. O médico tentou manter a postura, mas eu percebi a pena no olhar. E a pena é o sentimento mais ofensivo que alguém pode ter por mim. — Entendemos sua frustração, senhor Montezano, mas no momento— — No momento, você tá me dando um diagnóstico de merda sem nem ao menos tentar tudo que existe — eu interrompi. Eu tentei mover a perna. Tentei forçar cada músculo, como se fosse possível comandar o impossível na força do ódio. Nada. Tentei de novo. E de novo. E de novo. O monitor apitava, minha respiração acelerou, e a frustração queimou dentro de mim como fogo em óleo quente. Empurrei o soro. Arranquei os fios. O monitor caiu no chão. Minha mãe gritou meu nome. O médico pediu para me segurarem. A enfermeira correu para chamar ajuda. — MEXE, p***a! — eu gritei, batendo com as mãos nas próprias pernas como se pudesse acordá-las. — MEXE! MEXE! MEXE! Mas elas não se mexiam. Elas não ouviam, elas não existiam mais pra mim. Minha mãe começou a chorar, um choro feio, pesado, desesperado. Doeu mais nela do que em mim. E eu senti minha garganta fechar, não pelo acidente, mas pelo que eu estava vendo: o olhar de alguém que estava me perdendo, mesmo eu ainda estando ali. O médico colocou a mão no meu ombro com aquela calma irritante. — Davi… eu sinto muito. Eu virei o rosto para a parede, com a visão embaçada, o corpo frio, e a alma esvaziada. Não sei quanto tempo ficou o silêncio. Só sei que naquele momento, eu entendi uma coisa muito simples: Eu não tinha morrido, mas o homem que eu era… esse sim, estava enterrado. Fiquei ali, respirando o ar estéril, sentindo a raiva ferver. Eu não aceitava. Não podia aceitar. Aquilo não podia ser permanente. Eu sempre dei um jeito em tudo contratos, crises, gente, empresas, qualquer coisa que tivesse preço. Tudo. E agora me diziam que não tinha o que fazer? Que eu tinha que aceitar? Aceitar o quê? A derrota? A impotência? Eu nunca aceitei perder nem em pôquer. — Eu quero sentar. — Minha voz saiu rouca, mas firme. A enfermeira me olhou sem saber o que fazer. — Senhor, é melhor não forçar, o senhor precisa descansar… — Eu mandei te chamarem pra opinião ou pra obedecer? — rosnei. Minha mãe tentou interferir, segurando meu braço. — Filho, por favor… — ela dizia, com os olhos marejados. — Me ajuda a sentar, mãe. Pelo amor de Deus, só isso. Me ajuda. A enfermeira, meio hesitante, me apoiou pelos ombros e tentou erguer a cama devagar. A dor veio como uma corrente elétrica, atravessando meu corpo até o peito. — Vai devagar, devagar, devagar! — ela dizia, enquanto eu ofegava. Quando finalmente fiquei meio ereto, olhei pra frente e foi como se o mundo tivesse diminuído. Eu, que sempre me senti maior que qualquer sala, agora parecia um pedaço dela. — Eu quero ver o diretor desse hospital. — — Senhor Montezano, o senhor precisa se acalmar. Vamos colocar um sedativo leve pra— — Sedativo é o c*****o! — gritei, empurrando o braço dela. — Ninguém vai me apagar, entendeu? Ninguém! Eu quero estar acordado, quero resolver isso agora! — Davi, por favor, meu filho, não faz isso com você mesmo… — minha mãe tentava segurar a mão que tremia. Eu olhei pra ela, e foi pior do que qualquer dor. Aquele olhar de pena, de medo, de quem quer abraçar mas não sabe se pode. — Mãe, eu não tô morto. Não olha pra mim desse jeito. Ela chorava mais. — Eu só queria que você ficasse bem… — Eu vou ficar. Eu só preciso de alguém que saiba o que tá fazendo. Mas ninguém dizia nada. Ninguém respondia. Só o apito do monitor preenchendo o quarto, o som da minha própria respiração irregular, e aquele vazio que me comia por dentro. Foi ali, naquela cama, cercado de gente, que eu entendi o que era solidão de verdade.
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