Isabela Narrando
Às vezes eu acho que a vida gosta de brincar comigo. Porque, sinceramente, não é possível que alguém nasça pra apanhar tanto da sorte assim. Eu tentei de tudo. Tentei estudar, tentei trabalhar direito, tentei não depender de ninguém. Mas chega um momento em que força de vontade parece piada diante da realidade.
Eu vim de uma cidade pequena, daquelas onde o bar da esquina é ponto de encontro e a vida de todo mundo cabe num grupo de w******p. Lá, o futuro sempre teve um limite invisível ou você casa cedo, ou se vira pra sair e eu escolhi sair.
Tranquei a faculdade no penúltimo semestre de Fisioterapia. Foi a decisão mais amarga da minha vida. Eu amava o curso, de verdade. Amava entender o corpo humano, ajudar pessoas, ver paciente se recuperando de uma dor que o mundo inteiro dizia que nunca passaria.
Mas vontade não paga mensalidade, e a cada mês que passava eu via o sonho ficando mais caro. O aluguel atrasou, a luz quase cortaram, e eu entendi que era hora de parar de insistir em algo que não cabia no meu bolso. Empacotei minhas coisas na mala azul que já perdeu o zíper e vim pra cidade grande tentar um recomeço.
Foi a Kely quem me deu abrigo. A gente se conheceu na época da faculdade, quando ela ainda fazia Publicidade. Kely sempre teve esse brilho que a vida não conseguiu apagar, fala alto, ri de tudo, e quando o mundo fecha as portas, ela cria uma janela. Montou uma “agência digital” que é, basicamente, um milagre em forma de rede de contatos.
Ela arruma trabalho pra meio mundo: acompanhante hospitalar, babá, diarista, cuidador de idoso, auxiliar de enfermagem, fonoaudiólogo, fisioterapeuta e, de vez em quando, sobra um bico pra mim.
Nada fixo, nada garantido. Um dia eu tô limpando apartamento de madame, no outro servindo bebida em evento, e quando a sorte ajuda, cuidando de criança ou de cachorro. Eu topo tudo, pra mim funciona assim, me pagou? To indo.
Mas, às vezes, quando o corpo dói e a cabeça lateja, eu me pergunto se algum dia essa correria vai virar vida de verdade. Moro com a Kely de favor, num quartinho pequeno com um colchão no chão e uma janela que bate o sol na cara logo cedo.
A gente divide o arroz, o sabonete e as contas que nunca fecham. Mas, mesmo com tudo isso, é melhor do que voltar pra minha cidade e encarar as pessoas dizendo “eu sabia que ela não ia durar lá fora”.
— Belinha, não desanima, mulher — Kely sempre fala, acendendo um cigarro e rindo das próprias desgraças. — Eu tô de olho num trampo bom pra tu, juro. Um cliente novo, classe alta, cheio da grana. Quer alguém pra ajudar num caso especial.
— “Caso especial” parece nome de confusão, Kely. — eu respondo, jogando o pano de prato em cima da pia.
— Relaxa, é sério! O cara é bilionário, CEO de uma empresa gigantesca. Sofreu um acidente, tá precisando de alguém pra acompanhar o processo de reabilitação.
Eu franzi a testa, confusa.
— E tu acha que eu vou ser contratada pra isso? Eu nem terminei a faculdade, não tenho experiência, nem uniforme direito, Kely.
— Tu tem jeito, mulher. E jeito vale mais do que diploma às vezes. É só pra ajudar na rotina, acompanhar os profissionais, dar uma força no dia a dia dele.
— E se ele for um velho rabugento?
— Pior. — ela riu. — Dizem que ele é jovem, mas arrogante. Daqueles que acham que dinheiro compra até milagre.
Revirei os olhos.
— Ah, ótimo. O tipo de gente que eu adoro servir.
— Fala assim não. — Kely riu de novo. — Vai que ele é bonito.
Eu ri também, sem acreditar muito. Mas lá no fundo, um pedacinho de mim ficou curioso. Talvez fosse o destino me cutucando ou talvez fosse só desespero mesmo.
— Tá bom, Kely. — suspirei. — Se esse emprego existe mesmo, me indica. Vai que é a chance de eu sair de vez desses b***s.
— Tu não vai se arrepender, amiga. Eu te prometo. — ela disse, empolgada. — E ó, não vai achando que é qualquer um, não. É aquele tipo de homem que aparece na Forbes, entende?
— Que ótimo. — falei rindo, meio irônica. — Mais um homem rico pra achar que eu tô lá por interesse.
Ela deu de ombros.
— Interesse ou não, o salário é o triplo do que tu ganha limpando o chão das madames. Pensa nisso.
Fiquei em silêncio, olhando pro teto descascado do quarto. E, por um segundo, imaginei minha vida mudando saindo do barulho das vassouras e do cheiro de produto de limpeza pra alguma coisa que finalmente fizesse sentido. Talvez cuidar de alguém fosse o que eu sempre quis, só que eu nunca tive a oportunidade de fazer isso do jeito certo.
— Tá bom, Kely. — falei, com um meio sorriso. — Me manda o endereço. Se for pra começar de novo, que seja agora.
Ela deu um grito e já começou a mandar áudio pra alguém. Enquanto isso, eu sentei na beira do colchão, abracei os joelhos e fechei os olhos. Não sabia o que me esperava, mas pela primeira vez em muito tempo, eu senti uma coisinha lá dentro que eu nem lembrava o nome: Esperança.
— Belinhaaaa! — o grito da Kely atravessou o corredor, e antes que eu perguntasse qualquer coisa ela já entrou no quarto com o celular na mão e o cabelo todo bagunçado. — Achei ele!
— Ele quem? — perguntei, meio sonolenta, ainda abraçada no travesseiro.
— O tal do bilionário rabugento. O Davi Montezano! Menina, ele é o assunto da semana na internet. Olha isso aqui! — ela jogou o celular na minha cama, quase derrubando o copo de água.