Capítulo 04

1314 Palavras
Mago narrando Consegui chegar no alemão pela mata, e o bagulho tava louco. O cheiro de pólvora já tomava o ar, e de cima dava pra ver o caos. Fumaça subindo em várias partes do morro, o som de tiro ecoando longe. O dia ainda nem tinha amanhecido direito e já parecia o fim do mundo. Coloquei o colete, engatilhei o fuzil e desci do carro a milhão, largando ele na rua perto da boca. Tinha que chegar rápido, porque eu sabia que o bagulho ia engrossar. Rádio on. — Chefe, já tô no morro. Onde você tá? — perguntei, e só o chiado do rádio respondeu. Rádio off. Fiquei atento, tentando ouvir a voz dele, mas nada. A cada chiado do rádio, meu coração dava um pulo achando que era ele. Peguei de novo, chamei, insisti. Nenhum retorno. Foi aí que mandei alerta geral Rádio on — alguém viu o chefe?— e a resposta veio logo: disseram que ele tava no meio do morro, tentando colocar os arrombados pra fora. Rádio off Guardei o rádio e olhei pra frente. Vi uns polícia vindo na minha reta, e o instinto falou mais alto. Disparei. O barulho dos tiros ecoou entre as vielas e os gritos começaram. O morro virou um inferno. Era tiro pra todo lado, corpo caindo, e o barulho das granadas de efeito moral rasgando o ar. Ainda bem que eu pedi reforço. Se fosse só nós, já era. Os caras vieram pesados, parecia que o Estado mandou até o inferno de tropa pra cá. Rádio on. — Patrão, as ruas já estão fechadas. O único jeito de subir agora é pela mata. — Beleza. Reúne o pessoal e pode meter uns assaltos pra fazer barulho. Temos que tirar esses arrombados daqui, senão o bagulho vai ficar feio. — Pode pá. Rádio off. Subi na laje pra pegar visão de cima. Mandei o Índio levantar o drone — era o único jeito da gente saber onde os polícia estavam concentrando, sem ser pego de surpresa. Fiquei de mira no beco principal. Assim que um grupo apareceu, disparei. O tiro do fuzil ecoou alto. Mas um dos tiros inimigos passou rente ao meu pé, rachando o chão e fazendo eu pular com o susto. Olhei pra cima e vi o helicóptero girando sobre o morro, o atirador mirando pra baixo. — Me cobre, po.rra! — gritei pro soldado do lado. Mirei pra cima e descarreguei o pente. O helicóptero começou a soltar fumaça e girar no ar. Os caras lá dentro se desesperaram, e eu já sabia: ou iam cair, ou iam ter que fazer pouso forçado. Rádio on. — Chefe, na escuta?.- eu perguntei novamente chamando por ele porque até agora não obtive resposta. — Qual foi que tá chorando, Mago? Tô ocupado aqui, car.alho! — respondeu ele, e só de ouvir a voz eu senti um alívio passando no peito. — Já mandei o sinal, velhote. Aguenta firme, já é! — respondi. Rádio off. “Mandar o sinal” era nosso código pra avisar que as ruas estavam fechadas e as distrações já tavam em andamento. Pouca gente sabia disso. Quem não era do nosso ciclo nem entendia. — Beleza. Agora vamos colocar esses pa.u no c.u pra fora da nossa favela! — gritei pro bonde. Desci da laje e saí correndo pelas vielas, trocando tiro sem parar. Cada esquina tinha fumaça, cada beco tinha corpo no chão. O morro parecia um campo de guerra — sangue, pólvora e grito. A maioria dos corpos era de polícia. O Estado manda eles pra cá achando que pode dominar o território na marra. Depois, quando a merda estoura, ainda querem jogar a culpa em nós, como se a favela tivesse escolhido a guerra. Já tava escurecendo e eu tava no limite. O colete pesava, o suor escorria, e a munição já tava pela metade. O reforço tinha chegado, mas os arrombados tavam resistindo demais. Puxei o rádio de novo. Rádio on — Cadê a distração, p***a? — Já foi, Mago. Três bancos e duas lotéricas. — respondeu o contato. — Beleza. Guarda a grana e traz os homens. Foi aí que ouvi a explosão. O som foi seco, forte, e o chão chegou a tremer. Já sabia o que era: o caveirão. Aquela porr.a vinha abrindo caminho, atropelando o que tivesse na frente. Antes que eu conseguisse reagir, o rádio tocou de novo — e dessa vez o tom da voz do vapor me gelou. Rádio on — Mago... o chefe foi atingido, po.rra! Tamo cercado, precisamos de ajuda! Fiquei paralisado por um segundo. A cabeça girou, o corpo travou. Depois, foi como se o sangue fervesse. — Repete essa porr.a! — gritei. — O chefe foi atingido! Rádio off Nem esperei mais nada. Saí correndo com o bonde atrás de mim, fuzil na mão, o coração batendo forte no peito. O som dos tiros parecia distante, tudo virou um zumbido. Eu só pensava em chegar até ele. A cada passo, eu rezava. Não sou de rezar, nunca fui. Mas naquele momento, pedi pra Deus — se tivesse mesmo alguém lá em cima — pra não levar o velho agora. Ele ainda precisava ver a filha. Falava disso todo dia. Era o sonho dele. O morro tava pegando fogo. Passamos por becos estreitos, pulando corpo, desviando de sangue, ouvindo o gemido dos feridos. O ar tava quente, pesado, difícil de respirar. Chegamos perto da área do meio, e o som de tiros era mais intenso. Vi uns dos nossos tentando segurar a linha. Uns gritando, outros recarregando desesperado. — Onde ele tá?! — berrei. — Lá dentro, Mago! — apontaram pra um barraco meio destruído, com as paredes todas marcadas de bala. Corri até lá. Entrei e vi ele caído no chão, o fuzil ainda na mão, a roupa toda suja de sangue. Dois dos moleques tavam tentando estancar o ferimento. — Po.rra, chefe, não faz isso comigo não! — gritei, ajoelhando do lado. Ele olhou pra mim, meio zonzo, e ainda teve força pra dar um sorriso torto. — Tá achando que é hoje, Mago? — falou, cuspindo sangue. — Eu ainda tenho coisa pra resolver. — Fica quieto, car.alho! — falei, tentando segurar a pressão no ferimento. — Vamos tirar o senhor daqui. — Tira todo mundo primeiro... — ele sussurrou. — A favela precisa de vocês vivos. Fiquei ali, segurando a mão dele, sentindo o sangue quente escorrendo. Lá fora, o tiroteio continuava comendo solto. Cada bala que batia na parede fazia o coração saltar. — Índio, cobre o beco! — gritei. — Baiano, chama o carro! Vamo tirar ele daqui agora! O velhote tentou falar mais alguma coisa, mas tossiu e fechou os olhos por um instante. — Fica comigo, chefe, p.orra! — falei, tremendo. O carro encostou na viela e, com ajuda dos moleques, colocamos ele no banco de trás. O motorista arrancou, subindo o morro em direção ao posto. Fiquei pra trás, protegendo a saída. O caveirão começou a subir, metendo bala em tudo. As casas tremiam. Vi o drone de Índio explodir no ar, atingido por um tiro. A fumaça cobria o céu e o barulho era ensurdecedor. O tempo pareceu parar. Eu via tudo em câmera lenta — os homens recuando, o fogo das armas, o som dos helicópteros voltando. — precisamos fazer ele recuar agora, ou vamos perder o controle do morro, por.ra! Começamos a descer o morro, cada um cobrindo o outro. A adrenalina não deixava sentir o cansaço. A única coisa que eu pensava era no chefe, no sangue, e no medo de perder o único homem que ainda me inspirava respeito. Carreguei de novo o pente e voltei pro beco, pronto pra continuar. Porque aqui no morro, quem tem coração mole não dura. E eu podia até sentir medo, mas enquanto o chefe respirasse, eu ia guerrear até o fim.
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