Pré-visualização gratuita Primeiro encontro
Dizem que quando encontramos o amor da nossa vida, não temos dúvidas se é verdadeiro ou apenas mais uma aventura. Sentimos que aquela é a pessoa a quem estamos destinados, mas perdemos tempo negando ou procurando justificativas lógicas para o que estamos sentindo.
Eu achava esse discurso uma forma adorável de iludir jovens e motivá-los a acreditarem no verdadeiro amor. Quem criou esse boato talvez tenha pensado que seria um consolo aceitável para os corações partidos que tentavam encontrar algum tipo de esperança após as decepções.
Eu estava tão confiante de que o amor verdadeiro era uma utopia idealizada por algum romântico em extinção, que não percebi que estava me tornando o que mais temia - a pessoa apaixonada que acreditava nisso.
Nunca me esquecerei do dia em que senti meu coração acelerar após um gesto tão simples: o leve toque dos dedos dele na minha pele.
"Ei, tem um cílio no seu rosto, deixa eu tirar. " - Vincent se inclinou e seu rosto ficou a poucos centímetros do meu, me surpreendendo.
Não tive tempo de impedi-lo de se aproximar. Quando vi, seu dedo indicador e polegar estavam retirando cuidadosamente o cílio que repousava próximo ao meu nariz.
A adrenalina que senti naquele instante me deixou sem reação por alguns segundos (que pareciam uma eternidade). Pude ver de perto sua pele macia, seus lábios carnudos suavemente rosados e suas íris em um de tom verde escuro que eu nunca tinha reparado.
Assim que ele removeu o cílio, afastei meu rosto e desviei o olhar, como se tentasse esconder o nervosismo repentino que ainda estava tomando conta de mim.
"Mais alguma dúvida?" - perguntei tentando ocupar meus pensamentos para acalmar meu coração.
"Tenho muitas outras, mas minha próxima aula já vai começar. Assim que terminar eu volto, professor Dimitri".
Vincent se levantou, pegou sua mochila que estava no chão e saiu da sala. Ao vê-lo passar pela porta acenando para mim, senti um frio na barriga diferente do que tinha experimentado antes. Aquela sensação não era amena e temporária, pelo contrário: já haviam se passado alguns minutos desde que Vincent tinha ido embora, mas o que ele despertou em mim ainda persistia.
Desde a minha juventude, a literatura estava sendo o meu maior refúgio. Cresci em um ambiente familiar composto por um pai ausente autoritário e uma mãe que tentava a todo custo ser forte mesmo quando claramente tudo estava um completo caos.
Os dias mais felizes em casa eram aqueles em que ele não estava, seja devido a alguma viagem de negócios ou sua segunda família (que tanto eu quanto minha mãe sabíamos que ele tinha).
Quando você está em uma névoa escura e densa, se acostuma a caminhar sem olhar para o chão.
"Mãe, por que você não se separa?"
"Para onde eu iria, filho?"
"Podemos alugar uma kitnet ou qualquer lugar que caiba nós dois."
"Mas você ainda está começando a sua vida profissional e meus artesanatos não são o suficiente para nos manter."
"Estou quase me formando e assim que tiver um emprego fixo, vou tirar a gente daqui."
"Não se preocupe com isso, filho. Enquanto eu tiver você comigo, não importa onde eu esteja."
"Logo eu vou tirar a gente dessa situação, eu prometo."
"Eu sei que você está preocupado, mas não pense tanto nisso. A vida era realmente difícil quando você era pequeno e eu não podia cuidar de você como eu queria. Mas agora que você cresceu e se tornou um homem, me sinto bem."
Apoiei meus braços no colo da minha mãe, e enquanto ela fazia cafuné na minha cabeça, engoli o choro. Nunca tinha me sentido tão impotente como naquele momento.
Eu estava cansado de ver meu pai discutindo por qualquer coisa quando chegava depois de longos períodos fora de casa. Eu não aguentava mais ter que pedir dinheiro para ele sempre que precisava comprar algum livro ou material para a faculdade. Eu não conseguia mais fingir que aquela aparente família tradicional era só uma vitrine que ele usava quando queria a admiração de seus colegas de trabalho. Enquanto isso, minha mãe e eu sofríamos em silêncio e contávamos as horas até que ele fosse embora novamente.
Eu era filho único, e antes de nascer, minha mãe estava se preparando para ser uma pianista profissional. Ela sempre teve o lado artístico bem desenvolvido, o que a levou a dar aulas de música, pintura e bordado enquanto estava grávida.
Ela disse que conheceu meu pai em um concerto. Ele estava na plateia em uma de suas apresentações, e ao terminar, foi até o seu camarim para parabenizá-la. Nos meses seguintes, ele manteve-se presente em seus concertos, a conquistando aos poucos até que ela desse uma chance de conhecê-lo melhor.
Alguns meses após começarem a namorar, meus avós exigiram que eles se casassem, mas minha mãe não queria por causa da carreira. A cobrança para oficializar o relacionamento tornou-se ainda mais intensa, e quando minha mãe estava prestes a romper com ele, descobriu que estava grávida.
Foi assim que ela casou-se e desistiu da carreira de pianista. Suas tentativas de voltar para a música depois que eu nasci foram em vão, principalmente porque ele não permitia que ela estudasse.
Ao longo dos anos, minha mãe percebeu que sua única alternativa era trabalhar em casa, e foi dessa forma que ela começou a vender seus artesanatos para amigas e conhecidos.
À medida que eu crescia, meu pai viajava mais, nos deixando em casa sozinhos por meses. Sempre que ele chegava repentinamente, exigia que minha mãe fizesse tudo do jeito dele porque ele sustentava nós dois.
Quando era pequeno, eu não entendia o que estava acontecendo, mas quando comecei a ouvir as suas conversas atrás da porta, percebi o grande pesadelo que era ter um vínculo de sangue com ele.
Foi por isso que prometi a mim mesmo que faria o meu melhor para sustentar minha mãe e eu o quanto antes.
Eu já estava com vinte e dois anos e prestes a me formar em letras. Dar aulas naquela escola era a última etapa que faltava, e eu não ia deixar nada nem ninguém me impedir de cumpri-la.
Eu estava trabalhando como professor temporário há apenas algumas semanas. Me candidatei a várias vagas, competindo inclusive com meus colegas de curso, mas a concorrência era grande demais. Aquela escola tinha sido a única a me dar uma chance, e com uma condição: ao invés de lecionar em sala, eu daria aulas de reforço para alunos do ensino médio.
Quando decidi me tornar professor ainda na infância, imaginava que ensinaria sobre literatura e meus autores favoritos. Mas ao entrar na faculdade, descobri que a jornada era muito mais longa e desafiadora do que eu imaginava.
A cada semestre eu tentava usar como motivação a ideia de dar aula pela primeira vez. Eu já podia me imaginar dando bom dia aos alunos, usando as roupas escolhidas cuidadosamente no dia anterior, o ambiente escolar repleto de trabalhos colados nas paredes...tudo. Mas ao aceitar trabalhar como professor de reforço, percebi que meu sonho teria que ser adiado mais uma vez.
No primeiro dia em que dei aula de reforço, não apareceu ninguém. Os alunos geralmente só procuravam ajuda próximo das datas de prova, principalmente quando estavam com os estudos em atraso.
Mas desde a semana anterior, Vincent estava esclarecendo dúvidas comigo. Não havia conteúdo para ensinar, mas ao ver sua empolgação para aprender mais sobre obras literárias e autores, me identifiquei com ele. De certa forma, o seu amor pelos livros me lembrava eu mesmo quando era mais jovem.
Lembro que eu estava folheando o livro 'Notas do Subsolo' de Dostoiévski quando ouvi alguém bater na porta. Ao olhar na direção do som, vi um rapaz esguio, com sobrancelhas finas, olhos grandes arredondados e rosto oval, me cumprimentar com um sorriso tímido.
"Boa tarde, você é o professor de reforço de português e literatura?"
"Sim, prazer, me chamo Dimitri."
"Que nome diferente e bonito." - ele respondeu se aproximando da minha mesa.
"Obrigado. "- respondi sorrindo e reagindo à sua simpatia, que era contagiante.
"Então gosta de literatura russa? "- ele perguntou enquanto apontava para o livro em minhas mãos e sentava-se ao meu lado.
"Bastante. E como posso te ajudar? Tem dúvidas sobre a aula?"
"Não exatamente...estou tentando descobrir a minha vocação antes do vestibular e queria conversar sobre a sua experiência no curso. Sempre gostei muito de ler e escrever, principalmente histórias ficcionais fantásticas, mas estou na dúvida se é isso que quero pra minha vida. Eu sei que a gente não se conhece, mas a diretora avisou na nossa turma que um aluno prestes a se formar estaria ajudando a gente durante a tarde, e pensei que podia perguntar sobre isso pra você. O nosso professor está quase se aposentando e eu não me senti à vontade para ter essa conversa com ele. Você sabe, ele provavelmente diria para eu me tornar professor e desistir da ideia de ser escritor."
"Entendo...eu não sei se essa é a resposta que você espera, mas eu acredito que independente do curso, o que realmente importa é o que você sente quando se imagina trabalhando em uma determinada profissão. Se você fosse médico, como se sentiria? "- eu não tinha certeza se era uma boa ideia dar um aconselhamento como aquele, mas ele pareceu tão honesto em suas palavras, que me senti na obrigação de pelo menos tentar ajudá-lo.
"Eu só consigo me sentir apavorado, principalmente porque não gosto de sangue e não me imagino cuidando da saúde de alguém."
"E quando você se imagina como um escritor renomado, o que você sente?"
Ele parou de falar por alguns instantes e pareceu refletir sobre o que estava sentindo.
"Não sei explicar exatamente, mas é uma sensação boa. Posso me ver dando autógrafos e fazendo entrevistas de forma apaixonada durante os lançamentos dos meus best-sellers."
"Se é assim que você se sente, então acho que você tem a sua resposta. "- eu sabia que a resposta dele era idealizada e provavelmente baseada em alguma cena de filme, mas o otimismo que ele expressava enquanto falava sobre ser escritor me convenceu de que o sonho dele era maior do que eu imaginava.
Quando terminei de falar, ele olhou para mim com uma expressão surpresa e levantou-se da cadeira.
"Preciso ir, mas obrigado pela conversa."
"Tudo bem, fico feliz em poder ajudar. Só preciso saber o seu nome para anotar na lista de presença."
"Vincent."
Ele sorriu e foi embora. Me senti feliz e de certa forma satisfeito por ter conversado sobre os planos dele para o futuro. Isso me fazia lembrar o porquê de eu ter escolhido ser professor: eu queria compartilhar com outras pessoas o meu amor pela literatura.
Alguns dias depois, Vincent voltou. Ele trouxe o livro 'Crime e Castigo', também do Dostoiévski.
"Ver você lendo 'Notas do Subsolo' me deu vontade de continuar a leitura de 'Crime e Castigo'. Finalmente consegui terminar os capítulos que faltavam depois de meses."
"É bom saber que você terminou o livro. É um dos meus títulos favoritos, além de ser um clássico."
"Antes eu não tinha motivação para terminar o livro, mas depois de ver que você gosta desse autor, fiquei motivado. "- ao ouvi-lo, sorri para Vincent timidamente. Aquela resposta era inesperada.
A forma empolgada como ele falava me deixava animado e ao mesmo tempo me fazia sentir bem. Embora tenhamos nos conhecido recentemente, quando a gente conversava, eu sentia como se fôssemos amigos há muito tempo. Mas mesmo que eu gostasse de falar com ele, não podia esquecer que eu estava na escola para ser seu professor, não amigo. Além disso, provavelmente a nossa diferença de idade seria de quatro ou cinco anos, o que eu considerava um intervalo grande o suficiente para mantermos a distância de assuntos pessoais.
"Qual é a sua dúvida hoje?"
"Eu comecei a fazer alguns exercícios na aula e queria saber se está tudo certo, já que não deu tempo do professor corrigir na sala."
Peguei o seu caderno e comecei a ler linha por linha, procurando ser o mais crítico possível para ensiná-lo o que eu sabia.
Embora eu estivesse concentrado na leitura e correção das questões, podia sentir que Vincent estava me observando diretamente sem piscar. Com certeza ele estava apenas curioso para saber o seu desempenho na matéria. Ignorei aquela sensação de ser observado e continuei corrigindo.
"Parabéns, não encontrei erros nos seus exercícios. Apenas sugiro que você faça a apostila de reforço para o vestibular, nela você encontrará questões mais complexas do que essas. "
"Vou resolver a apostila, mas ainda não sei se vou fazer o vestibular...enquanto estou na dúvida, vou continuar estudando."
"Mas o que te deixa em dúvida?"
"Para ser bem honesto, eu quero ser escritor de ficção científica, mas meus pais dizem que não é fácil e nem dá dinheiro. Eu sei que o que não falta nas livrarias são best-sellers, mas o que me impede de ser mais um autor de sucesso? Por mais que esse seja o meu sonho, entendo que meus pais não vão ficar esperando os meus livros se tornarem os mais procurados nas livrarias, e por isso tenho pensado em alternativas para ter uma carreira profissional que permita que eu também seja escritor. Trabalhar como professor de literatura ou português me parece o mais próximo que posso chegar do meu sonho. Mas como te falei, não tenho certeza ainda do que fazer."
"Você é jovem, e embora isso seja um clichê, você tem muito tempo para decidir o que quer ser profissionalmente. "
"E se eu falhar? E se eu tentar ser escritor, mas fracassar, ou me tornar um professor bem-sucedido e não conseguir escrever as minhas histórias? Eu com certeza vou me arrepender. "
"É normal se sentir em dúvida e com medo, mas de uma forma ou de outra, você encontrará o seu próprio caminho. Eu acredito no seu potencial e tenho certeza de que independente da profissão que escolher, fará um bom trabalho."
A expressão de Vincent era diferente de antes: era a primeira vez desde que começamos a conversar que ele estava sério.
"Obrigado, professor. Preciso ir agora."
Acenei para Vincent, que saiu da sala com uma seriedade que me intrigava. Será que eu tinha falado algo que eu não devia? Lembrando do nosso diálogo, eu não encontrei motivos para ele ter ficado tão sério. Pensando melhor, cheguei à conclusão de que eu não precisava me preocupar, afinal, aquele tinha sido apenas o segundo dia que conversamos e eu não sabia nada sobre ele.
Nos dias seguintes, Vincent não apareceu. Minhas tardes eram preenchidas por leituras de livros e materiais da faculdade, já que outros alunos também não me procuravam para esclarecer dúvidas. Foram dias tranquilos, que me fizeram esquecer que eu estava estagiando.
"Com licença."
Levantei meus olhos e vi uma jovem mulher parada em frente à minha sala. Seu cabelo escuro era levemente ondulado e com comprimento até o ombro. Seu rosto era arredondado e os traços de seus olhos, nariz e boca eram delicados, como se ela fosse uma pintura.
"Como posso ajudar?"
"Você é o professor Dimitri, certo? Sou a Agnes, professora temporária de matemática."
"Isso! Prazer em conhecê-la, e bem-vinda."
"Obrigada. O diretor pediu para eu chamá-lo para a reunião dos professores novos, será daqui a 10 minutos. Acho que ele vai apresentar a gente para os professores das outras turmas."
"Vou terminar de organizar alguns papéis e logo vou para a sala. Obrigado pelo aviso."
Agnes acenou para mim com a cabeça e foi embora. Enquanto eu estava guardando os livros e formulários da escola na minha mochila, percebi que alguém tinha chegado na sala.
"Hoje não tem aula de reforço?" - era Vincent, que parecia ainda mais simpático do que da última vez que o vi.
Eu não sabia que horas a reunião terminaria, então preferi pedir para ele voltar no dia seguinte. Vincent pareceu decepcionado, mas concordou, prometendo que apareceria mais cedo na próxima aula de reforço.
Como a Agnes esperava, a reunião tinha como objetivo apresentar os professores novos temporários, que incluía eu e mais quatro pessoas. Aparentemente, só Agnes tinha uma idade parecida com a minha. Os outros professores aparentavam ter mais de trinta anos, o que me deixou inseguro sobre como eu deveria agir com eles.
Quando a reunião terminou, o diretor nos dispensou para voltarmos para casa mais cedo. Ao sair da escola e caminhar em direção ao ponto de ônibus, ouvi alguém me chamando.
"Ei, me espera!"
Era Agnes, que estava caminhando apressada para me alcançar.
"Também vai pegar o ônibus?" - ela me perguntou ofegante.
"Sim. Na verdade eu poderia ir a pé, já que não moro muito longe daqui, mas a minha mochila está pesada demais hoje."
"No seu lugar eu faria o mesmo. A propósito, o que você achou da reunião?"
"Eles parecem legais, espero que o estágio seja tranquilo."
"Também gostei deles, mas fico um pouco preocupada sobre como vai ser quando a gente for fazer o planejamento do reforço durante o período de provas. Me sinto intimidada."
"Eu entendo você, confesso que também pensei nisso no momento da reunião. "- senti como se ela estivesse lendo os meus pensamentos. Saber que ela também estava insegura de certa forma me tranquilizou, porque eu não me sentia sozinho.
Continuamos conversando enquanto esperávamos o ônibus chegar. Agnes embarcou, e poucos minutos depois, eu também peguei o ônibus para a minha casa.
Conhecê-la tinha sido uma boa surpresa. Geralmente eu não puxava assunto com pessoas que eu não tinha muita proximidade, mas com ela parecia que eu não teria esse tipo de problema. A cada resposta minha, ela fazia uma nova pergunta ou comentário que me deixava confortável. Eu poderia conversar com ela por horas seguidas. Voltei para casa e me preparei para o dia seguinte.
Embora Vincent tenha dito que iria para a aula naquela tarde, ele não apareceu. Esperei por ele, e sem perceber, olhei para o relógio com mais frequência do que eu geralmente fazia. Quando vi que ele realmente não participaria da aula de reforço, fiquei decepcionado. Por que eu estava me sentindo daquele jeito?