Kaylee
Doze anos depois
Meu avô está sentado em frente à lareira aquecida, recostado em uma cadeira alta e imponente. Hesito na porta, observando a luz reluzir nas lombadas dos livros de capa dura alinhados nas prateleiras. As sombras dançam sobre as antigas máscaras africanas e lanças de caça, nos velhos machados galeses e capacetes vikings. Esse espaço sempre me deu a sensação de estar dentro de um museu particular, um santuário de poder e memórias de conquistas que não me pertencem.
O vovô limpa a garganta, trazendo-me de volta ao presente.
— Não demore, Kiki. Você sabe que eu odeio quando você demora.
— Desculpe, vovô.
Entro no espaçoso escritório, sentindo-me pequena diante da grandiosidade do lugar. Ele sempre gostou de se cercar de seus objetos favoritos enquanto trabalha em seus negócios obscuros da família. Este é o coração da casa Lawrence, nos subúrbios afluentes de Austin, Texas. E, sem dúvida, meu avô é o coração de tudo que os Lawrence representam.
Seus olhos azul-claros me analisam enquanto me sento lentamente na cadeira ao lado dele. Endireito as costas e cruzo as mãos no colo, exatamente como me ensinaram. O tempo foi c***l com ele: sua pele está amarelada e solta, os cabelos finos e grisalhos, as bolsas sob seus olhos mais inchadas do que me lembro. Ele já passou dos oitenta e, embora eu tenha vinte e cinco e teoricamente pudesse me impor, ainda me assusta mais do que qualquer outra pessoa neste mundo.
— Obrigado por vir me ver — ele diz, como se eu tivesse escolha. — Tenho más notícias e queria te contar pessoalmente.
Minhas mãos se apertam involuntariamente no colo. Eu já sei do que se trata. Sempre se trata da mesma coisa. Sempre se trata da mesma pessoa.
Minha mãe.
Minha pobre, pobre mãe.
Eu não a vejo há um mês e estava apenas esperando por essa conversa. Sempre acontece assim: sou chamada para alguma sala luxuosa, diante de algum parente que me olha com uma mistura de pena e desprezo. Eles me fazem sentir como se tudo fosse minha culpa, como se eu tivesse qualquer controle sobre o que minha mãe faz. Como se os pecados dela fossem meus.
Sempre foi assim entre os Lawrence. Quando eu era mais jovem, achava que era porque eu não era magricela como minha prima perfeita, ou porque meu cabelo ruivo destoava, ou porque meus olhos eram verdes ao invés de azuis. Mas não tem nada a ver com minha aparência. Nenhuma dieta ou tinta de cabelo mudaria o que eu sou para eles.
Um erro.
— Sua mãe foi presa — diz ele, suspirando pesadamente.
Fico muito quieta. Não deveria estar surpresa. Mamãe sempre soube escapar de problemas, pelo menos até agora.
— Presa? Tem certeza?
— Pegaram-na ontem à noite em Dallas. Ela está na cadeia da cidade. Um dos meus amigos do clube de bridge me avisou mais cedo que o nome dela apareceu no sistema. Parece que ela tentou roubar uma joalheria. Os cúmplices a entregaram sem hesitação. As acusações são sérias.
Minha boca se entreabre.
— Mamãe estava roubando uma joalheria?
— Sim, parece que sim — diz ele, esfregando o rosto antes de suspirar novamente. — Momentos como esse me fazem ficar ainda mais irritado com sua avó por me fazer desistir dos charutos.
Não sei o que dizer. Ele não está chateado porque a filha está na cadeia. Está chateado porque isso dá trabalho. Porque mancha o nome da família. Mamãe vem fazendo isso há anos, sempre escapando por um triz graças às conexões do vovô. Mas agora, parece que até mesmo ele não conseguiu impedir.
Ela esteve em tantas clínicas de reabilitação que perdi a conta. A melhor fase sóbria dela durou seis meses, e isso só aconteceu porque um médico lhe disse que, se continuasse, estaria morta antes do próximo Natal. Mas ela voltou para seus velhos amigos e desapareceu por semanas. Quando reapareceu, chorosa, pedindo dinheiro e mais uma chance, ninguém se surpreendeu.
— O que vamos fazer? — pergunto, mesmo sabendo que minha opinião não importa.
— Vou pagar a fiança, contratar uma boa equipe de advogados e mandá-la para a clínica de reabilitação mais segura que encontrar. Com as maiores paredes e as fechaduras mais fortes. Espero que consigam mantê-la lá até que tudo isso passe.
— Certo, parece uma boa ideia — murmuro, sem acreditar em nenhuma palavra. Sei que é só questão de tempo até tudo recomeçar.
Olho para meu avô, para suas mãos calejadas que moldaram essa família e para os olhos que já viram muito mais do que revelam. E me pergunto: até quando? Até quando vou viver esse ciclo? Até quando os pecados da minha mãe serão também os meus?
E, mais importante, o que aconteceria se eu decidisse quebrar esse ciclo de uma vez por todas?
— Sua mãe vai ficar bem. Uma vergonha, uma mancha na nossa família, mas bem. — O vovô exala um longo suspiro e balança a cabeça. — Nós já passamos do ponto de pensar que sua mãe vai melhorar. Ela continuará a atormentar o nosso nome até o dia em que morrer, e não há nada que possamos fazer além de tentar lidar com ela da melhor forma possível. No entanto, você ainda está aqui, Kaylee. E ainda pode ser útil.
Meus dedos cravam em minhas coxas enquanto encaro meu avô. Ele olha de volta para mim, a cabeça inclinada, avaliando. Nunca o ouvi falar de mim como algo diferente de um fardo antes, então é estranho ouvir a palavra “útil” atribuída a mim. Mas não me deixo ficar animada — os anos me ensinaram a estar sempre com um pé atrás, não importa o quão feliz ou esperançosa eu possa me sentir. Quando estou no meu auge, a queda sempre parece ainda maior.
— O que você precisa, vovô?
— Você tem vinte e cinco anos agora, Kaylee. Fui muito permissivo com você por todos esses anos por conta das dificuldades com sua mãe. No entanto — ele hesita, franzindo profundamente a testa — essa tolerância deve chegar ao fim.
Quero rir. “Permissivo” não é a palavra que eu usaria para descrever as críticas constantes e inflexíveis que tenho suportado desse velho. A única coisa decente que ele fez por mim foi me dar um emprego em uma das fazendas de cavalos que a família possui, e isso só aconteceu depois que obtive uma certificação de técnica veterinária online sem contar a ninguém. Levei dois anos me esgueirando e fazendo aulas noturnas no meu quarto. Quando finalmente mostrei o diploma oficial de graduação, ele só levantou uma sobrancelha, como se eu fosse um cão de circo que aprendeu um truque novo.
Pelo menos eu amo meu trabalho na fazenda. É o único lugar onde posso ser feliz, mesmo que eu trabalhe lá apenas meio período. Ainda assim, eu apareço quase todos os dias. É uma viagem de cinquenta minutos, mas vale cada segundo porque ninguém me trata como um erro ali. Sou uma colega, uma amiga, um ser humano de verdade. Para a equipe, sou parte de algo.
Na casa dos Lawrence, sou apenas a sujeira acumulada entre os azulejos do chuveiro.
Meu avô se levanta lentamente e anda até mais perto do fogo. Eu o observo, minhas entranhas se revirando. Uma energia nervosa sobe pela minha espinha quando ele se vira para mim, franzindo a testa pensativamente.
— Seus primos estão todos casados ou noivos. Allison Palmer tem dois bebês e um terceiro a caminho. A linhagem Lawrence continuará bem no futuro porque eles cumpriram seu dever de proliferar com o melhor estoque que pudemos encontrar. Agora é sua vez, Kaylee. Vou encontrar um marido para você. Você se casará com ele, terá filhos e continuará nosso legado familiar, mesmo que seus genes não sejam exatamente de alta qualidade. — Ele pronuncia essas duas últimas palavras com uma entonação lenta e cuidadosa.
Casamento. Bebês. Continuar o legado da família. Minha cabeça fica leve e meu coração acelera. m*l namorei na vida, e só tive um namorado sério. Agora meu avô quer que eu me case? Como ele espera que isso aconteça?
Então a ficha cai.
Eu sufoco um gemido. É claro que ele tem uma lista.
— Não sei com quem você planeja me casar, vovô, mas…
— Há candidatos selecionados e adequados. — Sim, uma lista. — Vou apresentá-los a você, e você escolherá entre eles. Sei que isso é repentino e um choque, mas com a recente prisão de sua mãe, percebo que nada vai mudar para ela. Mas pode mudar para você. Eu entendo que você nem sempre foi a pessoa mais importante da nossa família…
Eu m*l consigo me impedir de revirar os olhos. Esse é o maior eufemismo que já ouvi na minha vida.
— Mas esta é sua oportunidade de se destacar e fazer parte desta família.
Engulo em seco e limpo a garganta.
— E quando você quer que esse casamento aconteça?
— Logo. Em algumas semanas, não meses.
Eu rio. Não consigo evitar. O vovô apenas me encara, inexpressivo. Nenhum traço de humor. Isso é tão absurdo, tão repentino, e não houve absolutamente nenhum aviso. Por que diabos ele de repente se importa em me casar? Eu sou uma reflexão tardia na melhor das hipóteses. Desde que comecei a trabalhar na fazenda, ele raramente olhava para mim, exceto para demonstrar desdém. Depois do meu terceiro turno, ele me viu com minhas botas altas de trabalho e jeans manchados, fez uma careta e disse: "Pelo menos você encontrou seu lugar". Então foi embora, como se tivesse sentido o cheiro de algo podre.
Agora ele quer que eu me case pelo bem da família?
A ideia me paralisa. Não, pior: ela me apavora. Não porque eu não esteja interessada em homens — estou muito interessada em homens — mas porque sei exatamente o tipo de homem que o vovô vai escolher. Aristocratas de sangue azul, educação impecável, sobrenomes respeitados e muitos zeros no final dos extratos bancários. Ele não está pondo nesses termos, mas, essencialmente, está me vendendo. Ele está cansado de lidar comigo e com minha mãe sozinho.
E o pior de tudo é que uma parte de mim quer aceitar.
Essa é minha maldição. Eu nasci na família Lawrence, descendente de antigos barões do gado, homens e mulheres que governavam as planícies do Texas. Hoje somos ridiculamente ricos. Criamos e vendemos cavalos de corrida premium, mas vivemos principalmente de investimentos. Desde pequena, aprendi que o nome Lawrence vale mais do que minha própria vida, e, no meu caso, isso é quase literal. Ninguém sabe quem foi meu pai, e minha mãe sempre foi viciada. Cresci nesta casa, odiada por quem importava e ignorada por todos os outros.
Deveria mandar meu avô para o inferno. Mas, em vez disso, sinto um desejo doentio de agradá-lo, de ser útil pela primeira vez na vida.
Eu apenas gostaria que não tivesse que me casar para isso.
— Começaremos neste fim de semana — diz o vovô, voltando à sua cadeira e se sentando com um suspiro. — Você conhecerá seu primeiro marido em potencial. Seja quieta, recatada, obediente e escolha rápido e sabiamente. Não me envergonhe como sua mãe faz, Kaylee. Você pode ser útil agora, mas se um dia se tornar um verdadeiro incômodo...
Ele não termina a frase. Nem precisa.
Eu sei muito bem o que acontece com os incômodos nesta família.
Nunca morei sozinha. Não sei lavar louça, muito menos conseguir um emprego de verdade fora da fazenda de cavalos da família. Passar no curso de técnica veterinária foi o auge da minha vida acadêmica — e foi o caminho mais fácil possível. A ideia de ser expulsa, de ficar por minha conta, me apavora ainda mais do que um casamento arranjado.
— Farei o meu melhor, vovô — digo e me levanto.
Ele assente, acena com a mão num gesto de dispensa e, sem pensar duas vezes, saio da sala. No corredor, meu coração dispara. Suor escorre sob meus braços. Meu estômago revira. Sinto-me pegajosa, nojenta, usada. Como se o vovô tivesse me colocado sob um microscópio, prendido meus braços e pernas como uma borboleta e me estudado como parte de algum experimento macabro. Para ele, sou só carne, um bem negociável. Um recurso da família Lawrence a ser trocado para garantir alianças e preservar nosso nome.
E eu estou deixando isso acontecer.
Eu me odeio por ser tão passiva, tão desesperada para agradar. E o odeio por tirar vantagem disso.
Mas vou cumprir meu dever. Sempre cumpri, mesmo quando exigiam de mim o dobro do que exigiam dos outros. Tudo porque sou filha de um pai desconhecido e de uma mãe drogada. Todo mundo sempre esperou que eu falhasse. E agora, depois de tanto tempo, até eu mesma espero isso.
Talvez, por uma vez, eu possa deixar meu avô orgulhoso.
Mas duvido que isso seja possível.