Quem ajuda aquele que deveria ajudar?

1655 Palavras
Vamos começar o capítulo de um ponto de vista completamente diferente e seguiremos esse rumo daqui pra frente. Estamos no glorioso Sírio-Libanês, uma instituição filantrópica que oferece atendimento de alta complexidade e é referência internacional em saúde, pesquisa e educação. É um dos melhores, se não o melhor hospital em território nacional. Nele, dezenas de atendimentos psiquiátricos, vacinas gratuitas e levantamentos clínicos estão sendo liberados diariamente desde que o COVID-19 se espalhou, principalmente durante a segunda onda, que hoje é uma grande realidade nas camadas mais ricas, imagina então nas mais baixas? Realmente tem muita gente necessitando de atendimento, ajuda e apoio. E no meio destas pessoas está uma figura já apresentada e conhecida entre nós, falo da poderosa Marília, a suicida em potencial que não aguenta mais este mundo. Vale lembrar que ela possui vinte e sete anos e é uma alma em busca de redenção, lutando contra os abismos da autodestruição enquanto sofre de bulimia, um distúrbio de apetite. — Próximo? — anunciou a enfermeira. — Fer... Fernando... — respondeu o paciente. — Documentos? — Eu... Eu... Esquec... — Marília os interrompeu. — Pode deixá-lo entrar, eu o atendo de forma de estudo. — menciou Marília. A enfermeira que faz a triagem assentiu com a cabeça e retornou a conversa com um outro médico, o renomado Dr. Rafael Menezes Venceslaw, ou só Rafa para os íntimos. Ele descansava na recepção psiquiátrica ao lado da enfermeira Laura, uma defensora das políticas do hospital e renomada no apoio aos pacientes psiquiátricos. Afinal, de contas, esta é a especialidade de Marília, que chamaremos de Doutora daqui pra frente, ok? — Tudo bem? — sorriu ela. — Ontem seria o aniversário dela... — E como se sente? Como melhorou desde que ela se foi? — Um pouco melhor agora... De fato... Mas a minha filha estava cheia de sonhos e planos para o futuro. Sua morte repentina... Acabou comigo... — Mortes repentinas sempre nos abalam profundamente, senhor Fernando, deixando todos nós emocionalmente devastadoos. O segredo está em como nós reagimos diante da situação. — explicou Dra. Marília. Fernando balançou a cabeça um pouco cabisbaixo. Marília buscou uma pasta com o nome do Fernando, enquanto ele encarava o sempre lindo, limpo e arrumado consultório da Dra. Marília. Tudo ali estava muito bem ornamentado para que o paciente ficasse a vontade para revelar os seus segredos mais íntimos e enfrentasse tudo aquilo que lhe fizesse se sentir pra baixo. — Então, o que tem pra mim hoje? — questionou Fernando. — Eu já lhe diagnostiquei, só preciso encontrar sua pasta. — respondeu ela no meio de um embaralho de pastas e prontuários médicos. Com a pandemia, os casos que ela atende, triplicaram e com a falta de organização do hospital, procurar um mero documento virou uma luta. — Não tem problema, você é a única pessoa com quem converso. Inclusive, trouxe isso para você. Fernando retirou um rocombole de chocolate maravilhoso de sua bolsa. — Queria dizer que eu mesmo fiz, mas comprei na padaria aqui do lado. — sorriu. "Isso deve pesar uns duzentos quilos, eu vou engordar demais." — imaginou ela. Marília aceitou de bom grado, colocou o embrulho encima da mesa e retirou o prontuário médico de Fernando. — Aqui, lhe diagnostiquei junto de outros amigos. — E o que tenho? — disse esperando algo péssimo. — O senhor sofre de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, chamamos de "TEPT". — E isso é... — Dra. Marília lhe interrompeu. — É devido à experiência traumática de perder sua filha de forma tão inesperada e dolorosa. O tratamento psiquiátrico daqui pra frente, será para lidar com o TEPT e aprender a enfrentar a perda de sua amada filha. Fernando ouvia tudo com riqueza de detalhes, pois conforme ela dizia, tudo parecia fazer sentido em sua cabeça. — A cada sessão, a partir de hoje, você lutará para superar a culpa e a tristeza avassaladora que o assombram desde a tragédia. — sorriu. — Tudo isso... Tudo culpa daquele i*****l que comeu a p***a de um morcego, como pode? Eu e minha filha não temos nada haver com isso, e por conta desses malditos asiáticos, temos de usar máscara e sofrer dentro de nossas cas... — Dra. Marília lhe interrompeu. — Fico feliz que o senhor desconte sua raiva em algo, por vezes é até bom, mas não vamos ser xenofóbicos atoa. Eu também não gosto da ideia de me sentir presa... Mas... Aconteceu, é passado. Devemos superar isso da forma que conseguirmos... Fernando respirou fundo. Dra. Marília lhe encarou. — Vamos voltar com a consulta... Do lado de fora, enquanto alguns outros pacientes chegavam, Rafael e Laura, conversavam. — Meu timeco perdeu outra ontem. — comentou Rafa. — Mas ontem não era uma reprise? — É... Você tem razão... — Rafael cometeu o mesmo engano que outro personagem. Laura lhe encarou e torceu o nariz. — O Doutor está bem? É que ultimamente tenho notado muita coisa... — Muita coisa? — Às vezes, você está ligado demais, e em outras, está completamente desligado. Não vejo com bons olhos, acho que você precisa descansar. — aconselhou ela. — Conversa fiada, terei todo o tempo do mundo para descansar após morrer. Até lá, tenho que me entregar a profissão. Os corredores deste hospital não ficarão vazios se eu me esconder atrás de uma mesa. — refutou. — Os corredores deste hospital jamais ficarão vazios. Você também deve cuidar de si mesmo. — retrucou. — E quem ajuda aquele que deveria ajudar? Entendo e agradeço sua preocupação, mas eu estou bem. — desconversou. Rafael voltou a encarar a tela do seu celular, enquanto Laura chamava o próximo paciente para recolher seus documentos. O fato aqui, é que nossa enfermeira tem razão. Dr. Rafael sempre foi conhecido por sua dedicação aos pacientes e seu compromisso com a medicina. No entanto, ao longo dos anos e principalmente durante a pandemia, a pressão constante do trabalho e a quantidade excessiva de pacientes que precisam de cuidados médicos mentais começaram a afetar sua saúde mental. — Vou pegar um café lá dentro, ok? Me chame se precisar de algo. — alertou Dr. Rafael. Laura lhe olhou meio de lado, quase atravessado. — Tudo bem... E para lidar com o estresse e a sobrecarga de trabalho, Dr. Rafael começou a recorrer a drogas disponíveis no hospital, como estimulantes, para se manter acordado durante longos turnos e continuar atendendo os pacientes. Contudo, tal ato começou a prejudicar sua vida pessoal e profissional. Rafael está cada vez mais isolado, incapaz de admitir seu vício para seus colegas ou procurar ajuda, o que o leva a um ciclo perigoso de autodestruição e segredos. Como este que aparentemente compartilha com Laura. Afinal, ela sabe que alguma coisa está acontecendo e que alguma coisa está sendo feita por ele, mas não pode provar. Mas Rafael era precavido, estava sempre um passoa a frente dela. Ele simplesmente puxou uma ceringa e se aplicou com um estimulante e um relaxante ao mesmo tempo, lhe proporcionando uma sensação maravilhosa e em poucos segundos, se desfez das provas jogando tudo em sua mochila. — Rafael? Dr. Rafael? — procurava Dra. Marília. — Sim? Rafael saiu da sala isolada do café e caminhou até a recepção onde Laura já mordia um delicioso rocambole. — Tem mais aqui dentro, vamos conversar um pouco? Preciso me manter acordada. — brincou. Dentro do consultório, ao lado de um amigo médico, Dra. Marília se abriu, afirmando que outro plantão estava encontrando o fim e ela não aguentava mais essa vida. Rafael assentiu tudo enquanto comia. — Não vai? — questionou ele apontando para o bolo. — Só um pouco... — nós sabemos o motivo de ser só um pouco. Os dois brincaram e riram durante alguns minutos em que Laura fazia a triagem de alguns pacientes. Esse era o momento que a dupla poderia falar dos pacientes e da vida pessoal. Já que ambos eram solteiros e havia uma tensão s****l entre eles, esses momentos eram bons para ambos. — Como anda o senhor Fernando? Ele já aceitou? — Um pouco mais, hoje ele reclamou dos chineses. — Não o julgo, já fiz muito disso. — afirmou Rafael. — Mas não nos levará a lugar algum, você sabe disso, né? — questionou Marília. Foi nesse instante em que bateram na porta do consultório. — Pode entrar. — disse Dra. Marília. Dois engravatados e um policial civil entraram. — Pois não? — questionou ela. — Dr. Rafael Menezes Venceslaw? CRM-SP 09948473? — questionou um deles. — Sim... — O Doutor está sendo detido por suspeita de usar e desviar medicamentos do hospital Sírio-Libanês. — afirmou. O policial civil entrou na sala e andou na direção de Rafael. — Espera, deve ser um mau entendido. Não tem como isso acontecer. — disse Marília enquanto lhes encarava. — Espero que seja, é por isso que ele está sendo detido apenas para fazer um teste toxicológico. — Sim, ele fará o teste! — rebateu Marília. — Não, eu não farei e exigo um advogado! — enfrentou Rafael. — É claro que exige... — debochou o segundo engravatado. Marília lhe encarou sem chão. — Se vocês olharem nas coisas dele, certamente encontrarão algo. — afirmou Laura por trás do policial civil. Marília buscava forças para entender a situação, mas tudo estava óbvio demais para todos. — Outro medicamento sumiu, eu contei trinta e oito e agora são trinta e sete. Nós não temos câmeras na sala, não posso afirmar que ele utilizou, mas como foi o único que entrou na sala além de mim, podem nos revistar e fazer o mesmo teste em ambos. — disse Laura. — Bom... Como temos dois suspeitos e um deles quer fazer tudo, me faz desconfiar ainda mais do outro, não acha Doutora? O primeiro engravatado foi cirurgico demais em sua observação. "Droga, está me dando cada vez mais vontade de vomitar. Eu só quero sair daqui." — pensou Marília.
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