Capítulo 16. Sotaque que encanta

1215 Palavras
Yara limpou a boca com o guardanapo, apoiou os cotovelos na mesa e inclinou o rosto para observar Harry com mais atenção. Ele percebeu o olhar não era tímido, nem intimidado. Era curioso. Analisador. Quase profissional. — Posso te perguntar uma coisa? E quero repostas mais elaboradas.— ela começou. — Claro — Harry respondeu, relaxando na cadeira. — Por que… logo eu? Por que uma estrangeira? Garçonete? Harry ergueu as sobrancelhas, surpreso pelo tom direto. Yara continuou antes que ele respondesse: — Assim… você é um homem rico, Harry. Muito rico. — Ela gesticulou com o garfo. — Deve conhecer um monte de gente, vive cercado de mulheres lindas, elegantes… modelos, empresárias, influenciadoras, sei lá. Ele respirou fundo, mas ela não parou. — Aí você me diz que precisava de alguém pra fingir ser sua noiva… e escolhe logo eu?— Yara piscou, confusa. — Uma garçonete brasileira… que quase caiu dura quando viu o preço da água com gás desse restaurante. Harry sorriu, mas ela ainda não tinha terminado. — E outra… — Yara ergueu um dedo, agora rindo enquanto falava — você é exatamente o estereótipo de inglês dos filmes da Sessão da Tarde, sabia?— Ela começou a enumerar, divertidíssima: — Alto… loiro… olhos azuis… voz grave… cheiro de perfume caro… ternos que valem o meu aluguel inteiro… e ainda anda pra cima e pra baixo com um iPhone que nem lançou direito no Brasil. Harry apertou os lábios, tentando conter o riso. Yara inclinou a cabeça, como quem tenta compreender um fenômeno estranho. — Olha, Harry… homens assim não aparecem procurando brasileiras aleatórias pra fingir namoro, não. Normalmente vocês tão ocupados demais andando de terno e sendo misteriosos. Ele não conseguiu segurar riu. Uma risada silenciosa no começo, depois mais aberta, mais solta do que qualquer outra naquela noite. — Eu pareço misterioso pra você? — ele perguntou, ainda sorrindo. — Parece. — Yara afirmou sem hesitar. — E eu ainda nem entendi metade das coisas que você faz da vida. Harry respirou fundo e recostou-se na cadeira, ainda com aquele sorriso que ela m*l percebia que causava. — Então deixa eu responder sua pergunta. Yara cruzou os braços, esperando. — Eu escolhi você — Harry começou — porque, naquela noite no bar… você foi a única pessoa que falou comigo como se eu fosse… normal.— Ele deu um pequeno sorriso. — E isso não acontece muito. Yara piscou, surpresa. — Além disso — ele continuou — você não tentou me agradar. Não tentou puxar assunto por interesse. Não tentou parecer outra pessoa.— Ele inclinou levemente o rosto. — Só o fato de você ser você...chama atenção, Yara. Ela o olhou por alguns segundos, absorvendo aquilo. Harry então soltou um ar risonho. — E… admito que a parte do sotaque melodioso também ajudou bastante, é delicioso ouvir você falar inglês. Yara abriu um sorriso involuntário e corou levemente. — Não acredito que você tá usando isso como argumento. — Eu estou completamente falando sério — ele respondeu. O silêncio que veio depois não era desconfortável. Era… cheio. Um silêncio que dizia mais do que palavras. Yara respirou fundo, os dedos brincando com a borda do copo. — Tá… — ela disse baixinho — acho que agora faz um pouco mais de sentido, você...me achou diferente. — Diferente?— Harry provocou. — Só um pouco. — ela repetiu, sorrindo. E por um instante, ambos esqueceram que estavam ali para discutir um contrato. Esqueceram o teatro, o acordo, o propósito. Porque pela primeira vez naquela noite… pareciam apenas dois desconhecidos se descobrindo. Harry apoiou o garfo de lado, como se finalmente tivesse encontrado uma brecha perfeita para direcionar a conversa. — Posso te perguntar uma coisa agora? — ele disse, espelhando o tom curioso dela. Yara levantou uma sobrancelha. — Depende. É pergunta difícil? — Talvez. — ele sorriu. — Quero saber mais sobre você. Ela recuou um tantinho na cadeira, surpresa. — Sobre mim? — Sim. — Harry entrelaçou os dedos sobre a mesa. — De onde você veio. Quando chegou aqui. O que te trouxe pra Londres. E… — ele fez uma pausa leve, estudando o rosto dela — se tem algum choque cultural que tá te fazendo sofrer. Yara soltou um sopro riso, como se não estivesse acostumada a alguém realmente querer saber essas coisas. — Nossa… você quer mesmo saber tudo isso? — Quero — ele respondeu sem hesitar. Ela ajeitou uma mecha dos cachos atrás da orelha, pensativa. — Tá bom… — respirou fundo — eu nasci em Salvador, mas cresci no Rio. Tenho 28 anos. Vim pra Londres porque… bem… porque a vida no Brasil tava difícil. Minha mãe se mata de trabalhar, minhas irmãs também. Eu queria ajudar. E aqui o salário mínimo vale muito mais quando a gente manda pra lá. Harry escutava sem piscar. Aquilo não era uma história qualquer era a vida dela, crua, sem enfeite. — Eu tô aqui faz nove meses — continuou. — Cheguei no inverno. No inverno, Harry. — Ela fez uma careta dramática. — Eu achei que meus dedos iam congelar e cair no chão, tipo peças de Lego. Ele riu, imaginando a cena. — Você se acostumou? — Nem um pouco. — ela respondeu prontamente. — Mas pelo menos já não saio de casa chorando por causa do vento cortante. Harry sorriu, mas seus olhos estavam atentos absorvendo cada fragmento dela. — E o choque cultural? Teve algum muito grande? — ele perguntou. Yara bufou, como se pudesse listar dez de imediato. — Ah, vários. — ela começou a contar nos dedos. — Um: vocês não abraçam ninguém. Parece que o povo aqui tem alergia a contato físico. Harry riu. — Dois: vocês pedem desculpa até quando alguém esbarra em vocês. — Isso é educação — ele se defendeu, divertido. — Três: vocês comem feijão doce. Doce, Harry. Isso é contra a lógica divina da culinária. Ele levantou as mãos, rendido. — Vou fingir que concordo com você. — Quatro… — ela inclinou a cabeça — vocês chamam de verão um clima que no Rio seria o início de um apocalipse gelado. Harry gargalhou dessa vez, alto, esquecendo completamente do restaurante elegante. Yara observou a reação dele com um pequeno sorriso nos lábios, surpresa por conseguir arrancar algo tão espontâneo de um homem que parecia carregar o mundo nos ombros. — E você? — ela perguntou, apoiando o queixo na mão. — Qual é o seu choque cultural comigo? Harry ficou em silêncio por um instante, como se estivesse realmente pensando. — O meu choque cultural… — ele começou devagar — é que você fala comigo como se eu fosse apenas um homem qualquer. Yara piscou. — Ué… mas você é, Harry. Harry inclinou a cabeça, sorrindo de um jeito que não mostrava exatamente felicidade… mas alívio. — Faz muito tempo que ninguém me trata assim... com sinceridade. O silêncio que veio depois foi suave e quente, como o calor da comida que ainda pairava no ar. E Yara percebeu talvez pela primeira vez que por trás do terno caro, da voz grave e do jeito britânico contido… …Harry também estava aprendendo a lidar com alguém completamente diferente do seu mundo. E talvez fosse isso que o deixava tão atento. Tão curioso. Tão… vivo
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