Yara limpou a boca com o guardanapo, apoiou os cotovelos na mesa e inclinou o rosto para observar Harry com mais atenção. Ele percebeu o olhar não era tímido, nem intimidado. Era curioso. Analisador. Quase profissional.
— Posso te perguntar uma coisa? E quero repostas mais elaboradas.— ela começou.
— Claro — Harry respondeu, relaxando na cadeira.
— Por que… logo eu? Por que uma estrangeira? Garçonete?
Harry ergueu as sobrancelhas, surpreso pelo tom direto.
Yara continuou antes que ele respondesse:
— Assim… você é um homem rico, Harry. Muito rico. — Ela gesticulou com o garfo. — Deve conhecer um monte de gente, vive cercado de mulheres lindas, elegantes… modelos, empresárias, influenciadoras, sei lá.
Ele respirou fundo, mas ela não parou.
— Aí você me diz que precisava de alguém pra fingir ser sua noiva… e escolhe logo eu?—
Yara piscou, confusa. — Uma garçonete brasileira… que quase caiu dura quando viu o preço da água com gás desse restaurante.
Harry sorriu, mas ela ainda não tinha terminado.
— E outra… — Yara ergueu um dedo, agora rindo enquanto falava — você é exatamente o estereótipo de inglês dos filmes da Sessão da Tarde, sabia?— Ela começou a enumerar, divertidíssima:
— Alto… loiro… olhos azuis… voz grave… cheiro de perfume caro… ternos que valem o meu aluguel inteiro… e ainda anda pra cima e pra baixo com um iPhone que nem lançou direito no Brasil.
Harry apertou os lábios, tentando conter o riso.
Yara inclinou a cabeça, como quem tenta compreender um fenômeno estranho.
— Olha, Harry… homens assim não aparecem procurando brasileiras aleatórias pra fingir namoro, não. Normalmente vocês tão ocupados demais andando de terno e sendo misteriosos.
Ele não conseguiu segurar riu.
Uma risada silenciosa no começo, depois mais aberta, mais solta do que qualquer outra naquela noite.
— Eu pareço misterioso pra você? — ele perguntou, ainda sorrindo.
— Parece. — Yara afirmou sem hesitar. — E eu ainda nem entendi metade das coisas que você faz da vida.
Harry respirou fundo e recostou-se na cadeira, ainda com aquele sorriso que ela m*l percebia que causava.
— Então deixa eu responder sua pergunta.
Yara cruzou os braços, esperando.
— Eu escolhi você — Harry começou — porque, naquela noite no bar… você foi a única pessoa que falou comigo como se eu fosse… normal.—
Ele deu um pequeno sorriso.
— E isso não acontece muito.
Yara piscou, surpresa.
— Além disso — ele continuou — você não tentou me agradar. Não tentou puxar assunto por interesse. Não tentou parecer outra pessoa.—
Ele inclinou levemente o rosto.
— Só o fato de você ser você...chama atenção, Yara.
Ela o olhou por alguns segundos, absorvendo aquilo.
Harry então soltou um ar risonho.
— E… admito que a parte do sotaque melodioso também ajudou bastante, é delicioso ouvir você falar inglês.
Yara abriu um sorriso involuntário e corou levemente.
— Não acredito que você tá usando isso como argumento.
— Eu estou completamente falando sério — ele respondeu.
O silêncio que veio depois não era desconfortável.
Era… cheio. Um silêncio que dizia mais do que palavras.
Yara respirou fundo, os dedos brincando com a borda do copo.
— Tá… — ela disse baixinho — acho que agora faz um pouco mais de sentido, você...me achou diferente.
— Diferente?— Harry provocou.
— Só um pouco. — ela repetiu, sorrindo.
E por um instante, ambos esqueceram que estavam ali para discutir um contrato.
Esqueceram o teatro, o acordo, o propósito.
Porque pela primeira vez naquela noite…
pareciam apenas dois desconhecidos se descobrindo.
Harry apoiou o garfo de lado, como se finalmente tivesse encontrado uma brecha perfeita para direcionar a conversa.
— Posso te perguntar uma coisa agora? — ele disse, espelhando o tom curioso dela.
Yara levantou uma sobrancelha.
— Depende. É pergunta difícil?
— Talvez. — ele sorriu. — Quero saber mais sobre você.
Ela recuou um tantinho na cadeira, surpresa.
— Sobre mim?
— Sim. — Harry entrelaçou os dedos sobre a mesa. — De onde você veio. Quando chegou aqui. O que te trouxe pra Londres. E… — ele fez uma pausa leve, estudando o rosto dela — se tem algum choque cultural que tá te fazendo sofrer.
Yara soltou um sopro riso, como se não estivesse acostumada a alguém realmente querer saber essas coisas.
— Nossa… você quer mesmo saber tudo isso?
— Quero — ele respondeu sem hesitar.
Ela ajeitou uma mecha dos cachos atrás da orelha, pensativa.
— Tá bom… — respirou fundo — eu nasci em Salvador, mas cresci no Rio. Tenho 28 anos. Vim pra Londres porque… bem… porque a vida no Brasil tava difícil. Minha mãe se mata de trabalhar, minhas irmãs também. Eu queria ajudar. E aqui o salário mínimo vale muito mais quando a gente manda pra lá.
Harry escutava sem piscar. Aquilo não era uma história qualquer era a vida dela, crua, sem enfeite.
— Eu tô aqui faz nove meses — continuou. — Cheguei no inverno. No inverno, Harry. — Ela fez uma careta dramática. — Eu achei que meus dedos iam congelar e cair no chão, tipo peças de Lego.
Ele riu, imaginando a cena.
— Você se acostumou?
— Nem um pouco. — ela respondeu prontamente. — Mas pelo menos já não saio de casa chorando por causa do vento cortante.
Harry sorriu, mas seus olhos estavam atentos absorvendo cada fragmento dela.
— E o choque cultural? Teve algum muito grande? — ele perguntou.
Yara bufou, como se pudesse listar dez de imediato.
— Ah, vários. — ela começou a contar nos dedos. — Um: vocês não abraçam ninguém. Parece que o povo aqui tem alergia a contato físico.
Harry riu.
— Dois: vocês pedem desculpa até quando alguém esbarra em vocês.
— Isso é educação — ele se defendeu, divertido.
— Três: vocês comem feijão doce. Doce, Harry. Isso é contra a lógica divina da culinária.
Ele levantou as mãos, rendido. — Vou fingir que concordo com você.
— Quatro… — ela inclinou a cabeça — vocês chamam de verão um clima que no Rio seria o início de um apocalipse gelado.
Harry gargalhou dessa vez, alto, esquecendo completamente do restaurante elegante.
Yara observou a reação dele com um pequeno sorriso nos lábios, surpresa por conseguir arrancar algo tão espontâneo de um homem que parecia carregar o mundo nos ombros.
— E você? — ela perguntou, apoiando o queixo na mão. — Qual é o seu choque cultural comigo?
Harry ficou em silêncio por um instante, como se estivesse realmente pensando.
— O meu choque cultural… — ele começou devagar — é que você fala comigo como se eu fosse apenas um homem qualquer.
Yara piscou.
— Ué… mas você é, Harry.
Harry inclinou a cabeça, sorrindo de um jeito que não mostrava exatamente felicidade… mas alívio.
— Faz muito tempo que ninguém me trata assim... com sinceridade.
O silêncio que veio depois foi suave e quente, como o calor da comida que ainda pairava no ar.
E Yara percebeu talvez pela primeira vez que por trás do terno caro, da voz grave e do jeito britânico contido…
…Harry também estava aprendendo a lidar com alguém completamente diferente do seu mundo.
E talvez fosse isso que o deixava tão atento.
Tão curioso.
Tão… vivo