03 - Melinda

1109 Palavras
Melinda Narrando Meu nome é Melinda Torres, tenho vinte e três anos e, bom, dizem por aí que eu nasci com cara de boneca vintage. Ruiva, olhos claros, um monte de sardas pelo rosto e quando eu digo um monte, é um monte mesmo, mas nada que uma boa maquiagem não cubra. Só que… eu não gosto de muita maquiagem. Prefiro meu rosto do jeito que ele é, com as imperfeições fofas que parecem até ter vida própria. Também gosto de usar óculos. Não porque eu precise, minha vista é perfeita, obrigada mas porque eles são de descanso e, estranhamente, me fazem sentir mais eu. Sempre deixo eles escorregando na ponta do nariz, não sei por quê. Acho que me dá um ar inteligente, tipo protagonista de comédia romântica que tropeça na própria sombra. Sou magra, alta, perfil model, como dizem as clientes da boutique onde trabalho. Mas o que eu gosto mesmo é de estudar, criar, transformar tecido em arte. É isso que me move. Eu sou costureira. Daquelas que passam madrugada costurando sem nem perceber a hora. Trabalho numa boutique chiquérrima no centro da cidade, a Boutique Maison, e se você respirou fundo só de ouvir esse nome, já sabe que o padrão é alto. Só que a minha vida não começou com rendas francesas, máquinas industriais e vestidos de festa. Eu cresci em um convento. Literalmente. Fui deixada na roda dos enjeitados quando era recém-nascida. Uma freira me contou quando eu tinha sete anos. Lembro até hoje. — Filha, Deus escreve certo por linhas tortas.— irmã Carmem dizia, passando a mão na minha cabeça. — Nosso destino nem sempre começa bonito, mas pode terminar lindo. Eu acreditava nela. Ainda acredito. O convento era barulhento, gelado no inverno e quentíssimo no verão. Nós, meninas órfãs, dormíamos todas em um salão enorme com camas alinhadas e lençóis ásperos. As freiras acordavam a gente às cinco da manhã para rezar. Confesso: eu fugia da reza sempre que podia. Eu aprontava mais do que todas juntas. Uma vez amarrei lençóis para fugir pela janela, mas fiquei presa no meio da descida e precisei gritar por socorro. Outra vez roubei o bolo da festa de São José antes dele esfriar e derreti a cobertura inteira no pátio. Sem falar da época em que tentava transformar os mantos das freiras em vestidos de princesa. Irmã Beatriz quase teve um infarto. Mas, apesar de tudo, eu era muito amada por uma em especial: irmã Carmem. E Foi ela que me deu esse nome Ela cuidou de mim desde que eu tinha dias de vida. Dormi no quarto dela por anos quando tinha pesadelos. Ela me ensinou a cozinhar arroz, a fazer tranças no cabelo e a costurar. Foi ela quem colocou uma agulha na minha mão pela primeira vez. Eu devia ter uns oito anos. E nunca mais larguei. — Costurar é como rezar, Melinda.— ela dizia. — É um jeito de transformar o mundo com as suas próprias mãos. . E eu transformei mesmo. Quando fiz dezoito anos, minha vida virou do avesso. Não foi uma escolha. Foi um aviso. — Filha, você precisa seguir sua vida lá fora. — irmã Carmem disse, com os olhos marejados. — Não pode ficar para sempre aqui. No fundo, eu sabia. O convento me deu tudo que pôde, mas não era um lugar para adultos viverem. Ainda assim, doeu. Muito. Só que irmã Carmem tinha um plano. Ela sempre tinha. Ela me mandou para a casa da sobrinha dela: a famosa Madame Katherine Maison. A estilista. A dona da boutique. A mulher que costura vestidos que custam o preço de um carro popular. Eu fui com uma bolsa de roupas do convento e o coração na garganta. A casa dela era enorme, linda, perfumada, e impossível de morar. O problema não era ela. Era o amante. Um cara horrível, nojento, que vivia olhando para mim como se fosse dono de tudo e de todos. Eu odiava aquilo. Tremia de nojo. Fiquei lá só até receber meu primeiro salário. Assim que o dinheiro caiu, aluguei uma quitinete minúscula no centro. Teto baixo, paredes finas, cheiro constante de café e vizinhos barulhentos. Mas era minha. Só minha. O início na boutique foi difícil. Apesar de eu já saber costurar, alta costura era outro mundo. Tecidos delicados, cortes precisos, bordados quase invisíveis. Mas eu aprendi. Rápido. Sempre fui boa nisso. Hoje, sou uma das costureiras mais produtivas da Madame Maison. Ela nunca elogia, mas sempre manda os vestidos mais complicados pra mim. Isso diz tudo. Minha rotina é simples. Quase sempre igual. Acordo, prendo o cabelo num r**o de cavalo malfeito, coloco meus óculos de preguiça e saio. Tomo café da manhã na cafeteria da esquina, café preto e pão na chapa, porque ninguém sobrevive de croissant todo dia. Trabalho até o horário do almoço. Como na lanchonete do prédio, volto para a boutique, costuro até meus dedos doerem e à noite, casa. Finais de semana? Minhas pausas do mundo. Eu cozinho alguma coisa, assisto filmes, durmo, estudo alta costura online. Leio revistas, acompanho desfiles internacionais, faço esboços. Moda é minha paixão. Meu sonho. Meu tudo. E por mais simples que seja minha vida agora, eu acredito no amor. Não tenho vergonha de admitir isso. Acredito na magia do Natal, em finais felizes, em milagres. Acredito que um dia vou encontrar alguém que olhe pra mim como eu vejo as histórias nos filmes. Que me queira de verdade. Mas, por enquanto, meus romances são com a ficção mesmo. E com meu filme preferido: Barbie Moda e Magia. Eu sei. É bobo. Mas é lindo. A Barbie criando vestidos mágicos, descobrindo seu talento, encontrando sua coragem. Eu assisto sempre que estou triste, ou feliz, ou respirando. Me inspira. E é isso. Sou essa mistura de sonho e realidade. Costureira órfã que acredita no amor mesmo tendo crescido sem família. Ruiva sardenta que usa óculos porque acha charmoso. Trabalhadora que não tem muito, mas tem o suficiente pra viver. Às vezes, quando fecho a loja e ando pela rua iluminada pelas luzes natalinas, fico imaginando como seria minha vida se um dia algo extraordinário acontecesse comigo. Não algo gigantesco. Só algo diferente. Uma reviravolta bonita, um acaso, um encontro inesperado. Eu paro na vitrine, observo os vestidos que costurei brilhando sob as luzes e sinto um nó quentinho no peito. Um sentimento que irmã Carmem sempre chamou de esperança. — Você merece o mundo, Melinda. — ela dizia quando eu era pequena, segurando meu rosto entre as mãos. — Nunca aceite menos que isso. Eu sempre fecho os olhos ao lembrar. Porque não quero nunca deixar de acreditar.
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