Capitulo 2

1452 Palavras
Meses antes... Charlotte estava parada em frente à casa onde crescera, localizada num subúrbio pacato de Illinois. A luz fraca do final da tarde realçava as linhas da fachada, e, mesmo com a aparência bem cuidada, o lugar parecia vazio. Ela sentia que aquela era a impressão exata de sua própria vida: vazia. Desde os quatorze anos, Charlotte dedicara-se integralmente a cuidar de sua mãe e de sua avó, ambas diagnosticadas com fibrose cística. Entre hospitalizações e tratamentos constantes, ela se negara o luxo de uma vida normal. Não saía com amigos, não fazia festas, nem viajava — seu mundo girava em torno das duas mulheres que amava. Respirando fundo, ela cruzou a soleira pela última vez. O eco dos passos no piso de madeira confirmava que a casa estava, de fato, sem nenhum móvel — tudo fora vendido. As paredes nuas evocavam lembranças de risadas e conversas que nunca mais se repetiriam. Charlotte havia perdido a mãe de forma inesperada e, três meses depois, perdera também a avó. Duas perdas tão próximas e dolorosas que a deixaram anestesiada, como se não fosse capaz de sentir mais nada além do luto. Enquanto as colegas de escola planejavam bailes de formatura, namoros e universidades, Charlotte passava horas em hospitais, trocando soro, limpando nebulizadores e confortando suas duas “pacientes” preferidas. Quando começou o ensino médio, optou por concluir os estudos em casa, fazendo aulas online e, no tempo que restava, cursou disciplinas de design pelo OYC (Open Yale Courses). Surpreendentemente, ela se saiu muito bem, montou um portfólio e, mesmo sem sair do quarto, conseguiu formar uma pequena carteira de clientes pela internet. Apesar de sua competência profissional, nunca tivera um namorado ou qualquer relacionamento mais profundo. Seu único contato constante fora Laura Manson, a melhor amiga desde o primário. Laura, de família rica, era seu oposto em termos de vivência, mas fiel como uma irmã. Quando o estresse e a tristeza eram insuportáveis, era Laura quem a consolava, fosse por mensagens de texto ou raros encontros fora de casa. Naquele dia, depois de assinar os papéis para a venda da casa, Charlotte passou pela porta que tantas vezes abrira para socorrer a mãe ou a avó. Na sala de estar, tudo o que restava era um sofá antigo. Foi nele que se sentou, de modo quase automático, sentindo as articulações doerem. Aquela pontada lembrou-lhe do que sua mãe contava sobre as primeiras dores da fibrose cística — que começavam sorrateiras, nas mãos e nos joelhos. — Não… por favor… — sussurrou, levando as mãos aos olhos para tentar conter as lágrimas. Ela não conseguiu. Durante três dias, permaneceu ali, assistindo a filmes tristes de cachorros, chorando até adormecer de exaustão. Raramente comia. O telefone tocava várias vezes, mas Charlotte não tinha forças para atendê-lo. Tudo o que conseguia pensar era: “Vou morrer. E vou morrer sem ter vivido um único dia para mim mesma.” No terceiro dia, quando o celular tocou pela enésima vez, ela vislumbrou uma propaganda na TV que dizia: “LAS VEGAS — ONDE OS SONHOS ACONTECEM.” As luzes, os cassinos, as músicas e as pessoas sorrindo brilharam diante de seus olhos. Um pensamento insano tomou conta dela: “Se meus dias estão contados, por que não viver um pouco, nem que seja por algumas semanas?” Charlotte pegou o celular, respirou fundo e atendeu. Era Laura, tentando falar com ela há dias: — Pelo amor de Deus, Charlotte! Eu estava preocupada! — esbravejou Laura, assim que escutou a voz fraca da amiga. — Desculpa… — Charlotte respondeu baixinho. — Estava… pensando na vida. — Você não atende há dias! Já estava quase voando praí. O que aconteceu? Charlotte fechou os olhos, as imagens do comercial ainda pulsando na memória. — Laura, quer ir para Las Vegas comigo? Houve uma pausa do outro lado da linha. — O quê? — Laura perguntou, surpresa. — Eu… eu preciso respirar. Preciso sair desta casa, deste estado, de tudo. Você vem comigo? O tom de Charlotte era diferente. Apesar da fraqueza, havia certa determinação em sua voz. Laura não hesitou. — Claro! Quando partimos? Um sorriso tímido se formou no rosto de Charlotte. Era a primeira vez que ela sorria desde a morte da avó. — O mais rápido possível. Nos dias que se seguiram, Charlotte deu andamento à venda da casa de infância. Fechou também a venda de vários bens da família — joias, antiguidades, lembranças que, sem as duas mulheres que amava, só lhe traziam mais dor. Com esse dinheiro, reuniu uma quantia considerável para passar um tempo em Las Vegas. Laura, sempre disposta e cheia de energia, levou a amiga a um salão de beleza para transformar o visual de Charlotte. Ela fez o cabelo, as unhas e comprou (ou ganhou de Laura) uma seleção de roupas e vestidos de festa, muito diferentes do guarda-roupa modesto que possuía. Antes do embarque, Laura encheu Charlotte de elogios: — Você está linda, Char! Tenho certeza de que Las Vegas vai mudar sua vida… vai ver! Charlotte apenas sorriu, nervosa e esperançosa ao mesmo tempo. Não sabia se teria muito tempo de vida, mas tinha certeza de que faria valer cada minuto. O desembarque no aeroporto de Las Vegas foi um choque para Charlotte. Luzes por toda parte, outdoors com artistas famosos, táxis e limusines apressadas e gente sorrindo. Mesmo no caminho até o hotel, seus olhos brilhavam como os de uma criança num parque de diversões. — Meu Deus, Laura, olha aquele show de águas! — exclamou, apontando para uma fonte famosa em frente a um dos grandes hotéis. — Isso aqui é só o começo, Char! — Laura piscou e riu, empolgada. Ao chegarem ao saguão do hotel, Charlotte sentiu a grandiosidade daquele lugar: lustres imensos, pisos reluzentes de mármore, funcionários impecavelmente vestidos recebendo-os com sorrisos. Ela quis absorver cada detalhe, como se aquele momento fosse único. — Uau… — foi tudo o que conseguiu dizer. Laura fez o check-in e, em poucos minutos, lá estavam elas numa suíte luxuosa, com vista panorâmica para o coração de Las Vegas. Charlotte se aproximou da janela, sentindo um arrepio de emoção percorrer sua espinha. — Obrigada, Laura. — disse baixinho, com a voz quase embargada. — Por tudo. — Nós vamos curtir cada segundo, Char. Não tem por que não aproveitar! — Laura a abraçou. As noites que se seguiram foram uma aventura para Charlotte: jantares em restaurantes chiques, espetáculos de dança e música, passeios de limusine e, claro, visitas aos cassinos mais badalados. Laura tentava mostrar à amiga tudo o que Las Vegas podia oferecer de melhor — e Charlotte, maravilhada, parecia ter a energia e a curiosidade de quem estava vendo o mundo pela primeira vez. Entre gargalhadas, fotos, jogos e brindes com prosecco, Charlotte foi se deixando envolver pela atmosfera vibrante da cidade. Por vezes, ainda sentia uma leve dor nas articulações, mas escolhia ignorá-la. O presente era tudo o que importava. No auge da empolgação, numa noite qualquer, Laura a arrastou para um bar elegante dentro de um dos hotéis mais luxuosos da cidade. Era lá que se apresentavam bailarinos de um show famoso. As duas se sentaram próximas ao palco, pediram o prosecco mais caro e começaram a brindar pela vida. Charlotte não podia imaginar que aquela noite reservaria uma surpresa. Entre luzes, música e risos, um homem alto, de semblante sério e extremamente charmoso, aproximou-se delas: era Odysseus Megallos, embora naquele momento ela não fizesse ideia de quem ele realmente era. A conversa fluiu, ele a convidou para dançar — e dançar, para Charlotte, era uma grande novidade. Ela quase recusou, tímida, mas acabou aceitando depois de um empurrãozinho de Laura. Quando seus corpos se tocaram na pista, ela sentiu algo diferente. O calor que emanava dele, a segurança com que ele a conduzia, a atenção que ele lhe dedicava… Era tudo tão intenso que, na terceira música, ela já se sentia totalmente à vontade nos braços de Odysseus. A banda, então, começou a tocar “Can’t Help Falling In Love”. O olhar de Charlotte encontrou o de Odysseus e, num impulso avassalador, os lábios de ambos se uniram. Foi o segundo beijo da vida dela — e, sem dúvida, o melhor. O coração de Charlotte bateu tão forte que ela pensou que poderia desmaiar. Ao mesmo tempo, havia um calor suave em seu peito, diferente da dor constante que carregava ultimamente. Era a certeza de estar viva, de finalmente experimentar algo que sempre acreditou estar fora de seu alcance. E, naquele instante, todo o sacrifício, toda a tristeza e toda a insegurança pareciam desaparecer. Charlotte sentia, na alma, que valia a pena lutar por cada batida do seu coração.
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