2 - Pistas

1774 Words
Julienne — Tem que haver outra explicação. Uma hora já havia se passado desde que o tio Corand partira, depois de uma série profusa de desculpas, nas quais tentou me dizer que sentia muito. — Para tudo. Mas não importava o quanto eu examinasse os papéis na mesa de Otto, nem o quanto eu quebrasse a cabeça, desesperadamente tentando descobrir por que alguém teria um motivo para matá-lo — eu simplesmente não conseguia entender. Parecia um fracasso pessoal. Eu era melhor do que isso. Passei anos me orgulhando de ter uma mente boa. Tinha sido a única maneira de manter a sanidade enquanto eu transitava entre dois orfanatos, três lares adotivos e cinco escolas diferentes. Aos quinze anos, minha decisão já estava tomada. Ou eu me tornaria psicóloga, ou morreria tentando. Eu não sabia por onde começar, mas o endereço de e-mail do Otto sobre programas de treinamento para jovens em um site tinha sido providencial. — Tenho passado por vários lares e escolas — escrevi. — Estou me virando, mas não quero chegar aos cinquenta e continuar estocando caixas no Walmart. Minhas notas estão péssimas agora, mas preciso de algo real em que eu possa ajudar os outros. Existe alguma esperança para mim? Quando dei por mim, Otto estava parado na porta do meu último lar adotivo, com um brilho nos olhos azuis e um sorriso revelador. O processo de adoção durou um ano, mas ele persistiu. Mais tarde, perguntei o porquê. — Porque vejo um grande potencial em você. Tenho sessenta anos, Julienne. Dediquei a maior parte da minha vida à minha profissão, construí um Instituto do zero e agora quero relaxar e ver alguém capaz de cuidar de tudo isso com o mesmo amor que eu. Você é meu legado vivo. O fundo da minha garganta estava em carne viva, como se alguém com unhas compridas a tivesse enfiado lá dentro e arranhado até sangrar. — Como vou acompanhar a sua mente, pai? — perguntei a ele. Isso foi na época em que eu ainda estava me acostumando a chamá-lo de pai. Não demorou muito. Nos primeiros seis meses após a adoção, Otto me deu mais amor do que eu havia recebido nos últimos quinze anos. — Eu reconheço uma boa quando a vejo — ele respondeu, com uma risada fraca pontuando suas palavras. Qualquer insegurança que eu já tivesse tido desapareceu por causa daquele amor. E a mera generosidade dele foi suficiente para me fazer lutar dez vezes mais para ser digna de ser sua filha. Eu tinha me saído bem — a ponto de me formar na Universidade da Pensilvânia e me tornar psicóloga infantil no Maine. Tinha meu próprio apartamento em Newhaven. Embora não fosse do mesmo nível da casa de Otto, era o suficiente. Eu havia ganhado cada centavo investido na compra e na mobília do lugar. E o orgulho de Otto pelas minhas conquistas tornava tudo muito melhor. Meus olhos pousaram no chaveiro desbotado, cuidadosamente guardado em uma das pontas da mesa de Otto. Foi o primeiro presente que dei a ele, comprado com a primeira mesada que alguém me deu. Passei o dedo indicador sobre a legenda gravada em relevo: Melhor Pai do Mundo. — Como ele pôde ter ido embora? Como alguém poderia querer que ele fosse embora? Meus olhos ficaram turvos novamente. Tentei concentrar meus pensamentos na mesa. A superfície estava coberta de tijolos, desgastada pelo tempo, salpicada com pequenos cortes e arranhões devido a incontáveis anos de uso. De um lado, havia uma confusão de papéis clínicos, arquivos de pacientes empilhados ordenadamente, e pilhas de artigos de pesquisa de ponta, com as bordas ligeiramente curvadas. Revistas médicas estavam abertas em páginas coloridas, exibindo as últimas descobertas em letras grandes. Entre elas, havia crachás de conferências e programações de seminários. Mais ao lado, uma série de post-its, cada centímetro quadrado preenchido com rabiscos, lembretes e hipóteses escritas às pressas com sua caligrafia curta e apressada — a tinta azul contrastando fortemente com os fundos neon. Um conjunto de instrumentos cirúrgicos reluzentes repousava em uma caixa esterilizada, com suas silhuetas nítidas refletindo o brilho suave da luminária de mesa. Ao lado, uma pilha de livros didáticos científicos, desgastados e muito apreciados. Os títulos variavam de engenharia genética a neurocirurgia avançada. Uma infinidade de fotografias estava espalhada sobre a mesa, com molduras tão variadas quanto seus conteúdos. Algumas retratavam colegas sorridentes e mentores estimados; outras, os rostos dos mais de cem alunos que ele orientou ao longo dos anos. Exceto o pardal que ele acolheu sob suas asas — eu. Na beira da escrivaninha, havia uma caneca de café desbotada, manchada com o toque de centenas de cafés passados. E, em meio àquele turbilhão de caos intelectual, um bonsai cuidadosamente cuidado emitia uma rara nota de tranquilidade — suas folhas verdejantes contrastando com as paredes bege do escritório. Este era o meu lugar favorito em toda a casa de Otto. Talvez porque, enquanto ele estava vivo, era também onde nós passávamos a maior parte do tempo juntos. Ele era um bom professor. Um dos melhores. Era o homem que voltava para casa depois de passar horas intermináveis no Instituto e ainda encontrava tempo para mim. Na maioria das noites, eu o esperava e o recebia com um grande abraço e sua bebida habitual — café com uma quantidade absurda de leite e açúcar. Ele precisava da dose de cafeína, mas era um velho sentimental que não suportava o amargor. Depois que ele relaxava, eu subia na mesa ou sentava no parapeito da janela, e ele me contava uma história. Por mais ocupado que meu pai estivesse, ele nunca me fez pensar que eu não pertencia à vida dele. E agora ele se foi. — Assassinado com uma dose letal de morfina no café — dissera o tio Corand. Eu queria poder alcançar a minha garganta, arrancar aquela dor crua e espalhá-la pela sala como um grito. Mas não consegui fazer isso. Então tentei a melhor coisa possível: liguei para Sofie — uma colega sobrevivente das periferias dos orfanatos e lares adotivos de Connecticut. Parte do mesmo sistema falho que nos moldou. — Ouvi as notícias. Não esperei delicadeza da Sofie. — Não entendi — respondi, mexendo na bainha do vestido preto. — Estamos falando do Otto, Sof. Consegue imaginar alguém com ódio suficiente pra matá-lo? Em Connecticut, Otto era uma lenda. Respeitado, amado. Muito além dos círculos acadêmicos. Histórias sobre ele cruzavam corredores com humor, genialidade e excentricidade. Uma das minhas favoritas: a conferência em Boston. A mala extraviada não o impediu — ele subiu ao palco de bermuda havaiana e jaleco. Ovacionado. Ganhou até prêmio. Ou o Dia de Ação de Graças que passou no laboratório, comendo só molho de cranberry e sanduíche frio, até ter uma epifania que virou marco na terapia genética. Otto era isso. Inteligente, mas também humano. Sabia o nome de todo mundo, do diretor ao faxineiro. Lembrava aniversários. Sabia quando alguém precisava de palavras certas e um chocolate quente. Era mentor, inspiração, amigo. Seu Rolodex era mais um álbum de vidas tocadas do que uma agenda de contatos. — Ele sacrificou tudo — sussurrei, segurando na beirada da mesa pra conter o tremor das mãos. — Nunca casou. Nunca teve família. — Você sabe que, desde que chegou, isso nunca mais o incomodou — respondeu Sofie, com doçura. — Você o fez feliz. Como qualquer filha de sangue faria. Está de luto, mas não se culpe. Era isso que mais doía: a culpa. Foram um ano e meio longe, presa ao trabalho no Maine. Falamos por telefone. Prometi visitá-lo. Nunca fui. — Não estava lá quando aconteceu — minha voz falhou. — Foi o zelador quem encontrou o corpo no escritório. — E a autópsia? — Saiu. Envenenamento. Ele me chamou tantas vezes. E eu sempre ocupada demais pra ir ver o único ser humano que acreditava em mim. — Julienne... — Quando soube, pensei que fosse engano. Vai ver alguém envenenou outra pessoa, e ele tomou o café errado. Ou erraram no laudo... Faz mais sentido que isso, né? Me diz que faz. — Julienne. Por favor. Mordi o lábio. — Tá. Tô falando besteira. — Mas nem tanto. Otto Morgan era especial. Gente assim desperta... um tipo estranho de amor. — Amor estranho? — Adoração. Obsessão, às vezes. Basta um erro, e tudo vira. — Você acha que alguém era obcecado por ele? Lá fora, uma coruja piou. O som da madrugada caiu como um véu. — É uma possibilidade. Você precisa revisar os arquivos dele. Ver se encontra alguma coisa. — Ok — murmurei. Desliguei. Encostei as mãos nos olhos, tentando afastar o cansaço. Olhei para o espelho do outro lado da sala. Um reflexo pálido, olhos arregalados, lábios vermelhos demais para a pele desbotada. Um fantasma de mim. Respirei fundo e me virei para a mesa de Otto. A madrugada avançava e a cidade dormia. Mas eu não. Vasculhei folhas, fórmulas, anotações rabiscadas, até que, perto do amanhecer, algo surgiu. Um papel simples. Três nomes escritos com a caligrafia de Otto. E uma palavra. Kurt Galbraith. Nikolas Magnusson. Loius Vincenzo. Debaixo, apenas: Motivos? Meu coração acelerou. Peguei o celular e busquei os nomes. Galbraith: diretor de Psiquiatria do Instituto. Magnusson: pesquisador-chefe de Oncologia. Vincenzo: cirurgião conceituado. Todos ligados ao Instituto. Todos próximos de Otto. Aquela lista não era aleatória. Era uma pista. Otto sabia de algo. Talvez corrupção. Talvez fraude. Talvez... pior. — Águas turvas escondem segredos — murmurei, passando o dedo sobre a palavra sublinhada. Se fosse mesmo uma lista de suspeitos, eu precisava me infiltrar. E, para isso, não podia ser a filha de Otto Morgan. Ninguém me conhecia ali. Nunca estive no Instituto. E isso agora jogava a meu favor. Olhei para o espelho outra vez. Mas agora havia algo nos meus olhos. Determinação. Eu encontraria quem matou meu pai. E faria pagar. Peguei o celular. Disquei o número. No terceiro toque: — Hartley. — Sou eu. Preciso da sua ajuda. Silêncio. — Essa linha não é segura. — Velhos hábitos. Mas essa é. Um riso grave. — O que você precisa? — Uma nova identidade. De alguém com dinheiro e conexões. — Por quê? — É necessário. — O que aconteceu? — Um assassinato. No Instituto Otto Morgan. Ele assobiou. — Você tem certeza? — Nunca tive tanta. Hartley suspirou. — Posso te fazer algo. Fechei os olhos, deixando o plano tomar forma. — Obrigada, Hartley. — Só faço meu trabalho. A ligação caiu. A linha ficou muda. Fiquei ali, com o zumbido do telefone e a promessa que fiz. — Ainda não acabou, pai. Só vai acabar quando eu pegá-los.
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