Kurt
— Aguenta firme e acaba logo com isso, Kurt. Não importa se ela é filha de algum ricaço ou a própria presidente dos Estados Unidos.
Minhas sobrancelhas se uniram em uma expressão dura enquanto eu descia a escadaria sinuosa do imponente Instituto de Pesquisa Otto Morgan. Era uma típica manhã de segunda-feira, refletindo perfeitamente meu humor: cinzenta, fria e implacável. O céu parecia uma tela sem graça pintada com nuvens pesadas, enquanto o vento gelado parecia arrancar pedaços da minha disposição.
Ainda assim, era impossível focar em qualquer outra coisa quando um relâmpago de roxo berrante rasgou o cenário monótono, debochando da estética sóbria que tanto me agradava naquele lugar.
Um Lamborghini luxuoso e deliberadamente exagerado vinha em minha direção, sua lataria reluzente quase ofuscante. Ótimo. Como se eu já não estivesse de mau humor, agora tinha um lembrete rodante de que ostentação também era convidada por aqui.
Aliás, ela nem era uma convidada. Era a nova residente de pós-doutorado em psicologia. Julienne Davenport. Eu já tinha lido o currículo dela — e muito do trabalho também — nos últimos dias. Não era r**m. Mas também estava longe de ser genial. Uma pessoa comum jamais teria conseguido um lugar ali, a não ser, claro, que tivesse dinheiro.
E ela tinha. Muito. Os pais, discretos porém absurdamente ricos, tinham feito questão de abrir todos os caminhos para a filha — em uma bandeja de platina, obviamente. Quase não havia informações sobre eles online, o que apenas confirmava sua preferência por discrição.
Pena que não dava pra dizer o mesmo da filha. A jovem que saltou do carro com seus Louboutins triturando o cascalho parecia ter saído de um editorial de moda. Mesmo assim, eu consegui esboçar um sorriso educado, abafando o sarcasmo que ameaçava transbordar.
— Senhorita Davenport — cumprimentei, com um aceno de cabeça. — Bem-vinda ao Instituto Otto F. Morgan. A viagem foi tranquila?
Ela assentiu com um “foi ótimo, obrigada” automático, nem sequer se dando ao trabalho de estender a mão ou pedir ajuda. Apenas lançou um olhar demorado ao instituto antes de se virar e retornar ao carro.
Fiquei observando, apesar de mim mesmo, enquanto ela retirava as malas com uma facilidade desconcertante, mesmo equilibrando-se naqueles saltos ridículos. Autossuficiente. Para alguém que dirige um Lamborghini, até que era surpreendente. Quase sorri.
Pelo menos ela não perguntou se alguém levaria as malas até “seu quarto”. Já lidei com gente rica o bastante pra esperar esse tipo de comportamento. Por um segundo, considerei oferecer ajuda, mas me contive. Ela tinha cara de quem me chamaria de machista por abrir uma porta ou carregar uma bolsa.
Só uma mala. Notei. Curioso.
— Me acompanhe, por favor — disse, seco, conduzindo-a para o grande salão.
Ela me seguiu em silêncio, o rosto impassível. Estranho. Psiquiatras geralmente têm aquele brilho nos olhos, um entusiasmo profissional. Mas essa parecia saída de um funeral — pálida e austera.
Ela não esboçou reação quando parei e a encarei.
— Pode deixar a mala ali — apontei uma mesa antiga encostada na parede esquerda. — Vamos começar com a entrevista.
Ela permaneceu parada. Um, dois segundos. Então soltou um suspiro e arqueou levemente os lábios num meio sorriso que soava como um deboche.
— Entrevista? Me disseram que eu já tinha conseguido o cargo.
E lá se foi o pouco de boa vontade que eu tinha reunido nos últimos minutos.
— Conseguiu — respondi, quase rosnando. — Isso é só uma formalidade.
Ela continuou me encarando com seus olhos cinzentos, pesados, quase répteis de tão frios. Era só olhos e lábios. A moldura? Uma cabeleira n***a e indomável, presa de qualquer jeito com um fecho prateado. Linda, admiti internamente. Se “gótico desinteressado” fosse uma estética válida.
Supere isso, resmungou minha voz interior.
Suspirei.
— Todo novo residente passa pelo mesmo processo, Srta. Davenport.
Ela hesitou por um instante, então respondeu:
— Muito bem. Obrigada, Dr. Galbraith.
Observei-a caminhar até a mesa e largar a mala com um baque seco. O corpo esguio, elegante como o de uma modelo editorial, se movia com uma espécie de graça contida. O look? Escuro, sem personalidade, sem esforço. Quase desleixado.
Nossos olhares se cruzaram. E por um instante, aquele olhar vazio encontrou o meu.
— Vamos? — murmurei, sem entusiasmo, enquanto subíamos as escadas em silêncio.
Eu me perguntava quanto tempo suas raízes de ouro aguentariam fincadas naquele solo. O tipo de riqueza que herdava casas, não construía lares. Caminhava indiferente pelos detalhes da arquitetura, ignorando a beleza esculpida em carvalho, os vitrais, a história impregnada nas paredes. Nada impressionava.
— Sente-se — indiquei, ao chegar ao meu escritório. Ela passou pela mesa rústica, uma herança de outros tempos.
Dessa vez, notei algo diferente: interesse. O olhar dela percorreu as estantes abarrotadas de livros — manuais, clássicos da literatura americana, volumes desgastados pelo uso. Ignorou a antiga lareira de mármore, focando-se na enorme janela com vista para o vale.
— Sente-se — repeti, agora um pouco mais impaciente.
Ela se acomodou na cadeira com naturalidade.
— Obrigada — disse, num tom educado, porém mecânico. Um reflexo de boa criação, não de gentileza genuína.
Abri sua pasta, tentando parecer mais leve.
— E então, o que te traz aqui? — perguntei. — É um lugar tranquilo aqui em Connecticut. Nada muito... animado.
— Eu tinha um consultório em Newhaven, no Maine — respondeu, cada palavra cuidadosamente articulada. — Se você leu meu arquivo, deve saber que estou no espectro autista. Ambientes barulhentos me incomodam.
Franzi a testa, surpreso com a revelação dela.
— Isso deve ter me escapado. O que notei, no entanto, foi a surpreendente jovialidade. Você é muito jovem para ter seu próprio consultório.
— Minha clientela reflete minha juventude. Para eles, qualquer pessoa com mais de quinze anos é praticamente uma velha — disse ela, impassível, o mais próximo que chegou de uma piada. Mesmo esse lampejo de humor era sufocado por seus olhos vazios e a boca austera, como se sorrir fosse um gesto que há muito ela deixara para trás.
— Este estabelecimento é essencialmente um instituto de pesquisa — dei de ombros, observando-a com cuidado. — Aqueles que ainda atendem pacientes o fazem por indicação de organizações maiores. Nossa credibilidade reside em nossos programas acadêmicos. Você acha que conseguiria se adaptar a uma vida sem a burocracia da clínica?
Ela permaneceu em silêncio, deixando a pergunta evaporar no ar entre nós como se não merecesse resposta. A tensão rastejou sob minha pele. Acariciei o lábio superior com o dorso do dedo, em um gesto involuntário de frustração.
— Bem — comecei, forçando a quebra do silêncio —, o cerne da questão é se você será feliz aqui. Você prevê isso?
Ela manteve meu olhar, sem piscar.
— Feliz? Não — respondeu, com a voz quase um sussurro. — Mas o trabalho, acredito, trará satisfação.
Por um momento, houve algo ali — não emoção, exatamente, mas um eco dela. Um brilho gélido nos olhos, como brasas adormecidas de um incêndio antigo. Talvez houvesse raiva sob aquele controle absoluto. Uma raiva que ela se recusava a deixar escapar.
Revisei minhas primeiras impressões. Julienne Davenport não era só uma herdeira mimada — era algo mais perigoso. Uma filha de elite, sim, mas com camadas. Um passado que talvez exigisse silêncio e muito dinheiro para ser varrido para debaixo do tapete.
— Entendo — murmurei, desviando os olhos.
A personificação de um problema, pensei. E ela era a última coisa de que este instituto precisava.
— Vou começar a desfazer as malas, se terminamos aqui — disse ela, com simplicidade cortante — um encerramento frio, que me soou como um comando. Os cantos da minha boca se contraíram.
— Então, permita-me dar as boas-vindas ao Instituto, Srta. Davenport — respondi, exagerando deliberadamente seu sotaque de elite. — Estou absolutamente encantado em tê-la conosco em nossa humilde família.
Ela já estava de pé, mas em vez de se mover de imediato, respirou fundo — um som que se transformou em um leve chiado. Meu olhar foi instintivamente atraído para a mesa entre nós.
Seus dedos — longos, magros e pálidos como mármore — se curvaram sobre a madeira polida com uma lentidão quase teatral. E então, com uma pressão controlada, uma única unha riscou a superfície. Um som agudo, como um sussurro de ameaça.
Fiquei parado, observando enquanto ela se afastava. Seus ombros estreitos sob a jaqueta preta formavam uma silhueta que parecia arrancada de um romance gótico. Algo entre uma órfã vitoriana e uma viúva precoce. Ela era toda contrastes. O carro exuberante, o traje sóbrio. A frieza calculada, os olhos que escondiam tempestades.
Uma parte de mim quis ridicularizá-la. Dieta por vaidade, roupa por afetação, atitude por defesa. Mas outra parte — mais baixa, mais humana — sentiu uma fagulha de... simpatia? Não. Curiosidade, talvez. Ou reconhecimento.
E, no fundo, eu sabia: ela não era nem de longe tão feia quanto eu quis acreditar. E talvez, só talvez, não fosse tão superficial. Apesar do dinheiro. Apesar da falta de talento visível. Ou ambição palpável.
Suspirei.
Meu Deus, o que diabos está acontecendo comigo hoje?
Eu não era assim. Não vacilava. Não oscilava. E, certamente, não me deixava impressionar por um par de olhos vazios e uma pose blasé.
Esqueça-a.
Dei a ordem a mim mesmo, firme, como se fosse capaz de calar a inquietação que ela tinha provocado. Era segunda-feira. Havia trabalho. Tarefas práticas, cartas do conselho, a gestão de um instituto inteiro... depois da saída de Otto.
Ah, sim. Otto.
O visionário megalomaníaco com bolsos sem fundo e um talento impressionante para se eximir de consequências. O gênio incompetente que despejou milhões em um projeto e evaporou no instante em que morreu.
E agora? Agora sobrara eu. E o peso de um legado do qual eu nunca quis fazer parte.
Se o testamento de Otto tivesse sido público desde o início... talvez eu tivesse feito diferente.
Mas a voz dentro da minha cabeça voltou, implacável:
Pronto, pronto. O que está feito, está feito. Agora é tarde. Você só precisa encontrar uma maneira de sair dessa enrascada.