Leilão

1078 Words
O som das taças se misturava ao murmúrio das conversas quando o mestre de cerimônias subiu ao palco. A luz se ajustou, deixando o salão mergulhado em um dourado suave, e a música cessou gradualmente. O leilão beneficente do Hospital Infantil Santa Aurora estava prestes a começar. Nathan inclinou-se no encosto da cadeira, já sorrindo antes mesmo do primeiro item ser apresentado. — A hora dos ricos fingirem que não olham pro valor, mas pro propósito — sussurrou, divertido. — Você continua um exemplo de altruísmo. — Eu? Eu sou o público que anima o espetáculo. Você é quem paga por ele. Sorri, discreto. O apresentador começou a falar, exaltando a importância da causa, os avanços do hospital e a generosidade dos presentes. Era o mesmo discurso de todos os anos — ensaiado, bonito, previsível. Mas, desta vez, havia algo diferente. Um olhar, em algum ponto do salão, que eu sentia mesmo sem procurar. O primeiro item subiu ao palco: uma escultura de mármore branco, representando uma criança e um anjo. Trabalho delicado, de um artista italiano conhecido. O valor inicial: vinte mil reais. — Vinte e cinco — anunciou uma voz feminina, firme e elegante. Manuela. Meu olhar foi atraído a ela antes que eu percebesse o movimento. Ela mantinha a postura ereta, o rosto sereno, a taça pousada no colo. Havia um ar de confiança natural em cada gesto, como se soubesse exatamente o efeito que causava. — Trinta mil — disse um empresário à minha direita. — Trinta e cinco — completei, sem pensar. Nathan virou-se de imediato. — Olha só quem resolveu brincar. A cada novo lance, a tensão na sala aumentava. Manuela ergueu o olhar, e nossos olhos se encontraram por um segundo breve — intenso o bastante para me fazer esquecer do barulho ao redor. Ela não desviou. Pelo contrário, um pequeno sorriso curvou-lhe os lábios, um gesto quase imperceptível, mas que trazia desafio. — Quarenta mil — disse ela. — Quarenta e cinco. — Cinquenta. — Sessenta. Nathan segurou o riso, murmurando: — Isso tá começando a parecer um flerte financeiro. Ignorei. Ela cruzou as pernas, recostando-se na cadeira, e lançou um olhar divertido na minha direção. Era claro que o jogo a divertia. O apresentador, animado com a disputa, agradecia as ofertas e incentivava o público. — Sessenta e cinco mil! — ela disse, ergueu o número com elegância e, pela primeira vez, deixou escapar um sorriso aberto. Nathan sussurrou: — Ela acabou de te provocar, Leo. Vai deixar? — Setenta mil — declarei, calmo. O salão murmurou. O apresentador ergueu as sobrancelhas, encantado com o ritmo dos lances. Manuela inclinou-se para frente, apoiando o queixo sobre as mãos, observando-me com aquele mesmo olhar curioso de antes — um olhar que parecia avaliar algo além do dinheiro. Ela hesitou por um instante, depois balançou a cabeça de leve, rendendo-se. — Setenta mil ao doutor Duarte! — anunciou o apresentador. — Parabéns pela generosidade! O som dos aplausos ecoou, e Nathan, claro, foi o primeiro a bater palmas de propósito exagerado. — Nosso herói! — disse, rindo. — O homem que compra arte e corações na mesma noite. — Cale a boca. — Eu tentaria, mas isso tá ficando bom demais. O leilão seguiu. Obras de arte, pacotes de viagem, joias, experiências exclusivas — e, em todas as rodadas, eu me via envolvido mais do que planejava. Não era sobre o valor. Era sobre aquela troca silenciosa, aquele jogo de olhares que acontecia cada vez que o apresentador dizia o nome dela. Na terceira rodada, uma pintura assinada por um artista contemporâneo foi exibida. Manuela levantou o número antes mesmo de o valor inicial ser anunciado. Nathan arqueou as sobrancelhas. — Lá vem ela de novo. — Cem mil — disse ela. O salão ficou em silêncio. Cem mil, dito com a mesma naturalidade de quem pede mais uma taça de vinho. Olhei para ela, e o desafio estava de volta, dançando nos olhos dela como uma provocação elegante. — Cento e vinte — respondi. Ela sorriu. — Cento e cinquenta. — Duzentos. Nathan soltou um assobio baixo. — Leonardo, você tá tentando comprar o quadro ou impressionar a moça? — Eu apoio o hospital. — Claro que apoia. Com muito estilo, inclusive. O apresentador parecia eufórico. — Duzentos mil reais ao doutor Duarte! Temos mais algum lance? Manuela levantou a taça, brindando silenciosamente na minha direção. — Duzentos e cinquenta mil. O público murmurou outra vez. Ela ainda sorria, como se aquilo fosse apenas um jogo. Nathan, completamente entregue à diversão, batia palmas baixas. — Eu adoro essa mulher. Suspirei e ergui o número. — Trezentos mil. A reação foi imediata — aplausos, comentários, olhares curiosos. Manuela sustentou meu olhar por alguns segundos, então sorriu com serenidade e apoiou o número sobre a mesa. Rendeu-se de novo, mas o sorriso dizia o contrário. Não era derrota. Era apenas um início. O apresentador anunciou o arremate com entusiasmo. — Trezentos mil reais! Doutor Duarte, mais uma vez, muito obrigado pela generosidade e pelo apoio à nossa causa! As palmas vieram em sequência, o som ecoando pelo salão. Nathan me cutucou. — Você acabou de virar o centro da festa, campeão. — Não é o tipo de atenção que eu procuro. — Não precisa procurar. Ela acabou de te encontrar. Segui o olhar dele e vi Manuela. Ainda à distância, ainda intocada pelo caos ao redor, ela batia palmas — não com exagero, mas com uma graça contida que parecia mais sincera do que todas as outras. Havia algo em seu olhar, uma mistura de curiosidade e reconhecimento, como se soubesse que, de algum modo, aquele jogo tinha acabado de começar. O mestre de cerimônias seguiu com o evento, mas eu já não ouvia com atenção. Nathan continuava fazendo comentários espirituosos, o público se distraía com o próximo item, mas o que permanecia era a imagem dela — o vermelho, o sorriso, a calma. Era o tipo de mulher que parecia impossível de ignorar e, ao mesmo tempo, impossível de decifrar. E, embora não houvesse uma única palavra trocada entre nós, algo me dizia que, naquela noite, o destino acabava de mover sua primeira peça. A gala continuava. O vinho, as conversas, o tilintar dos cristais — mas, por baixo de tudo isso, havia um novo som: o início silencioso de algo que eu ainda não compreendia. E, mesmo sem admitir, eu já sabia: o controle começava a escorregar das minhas mãos.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD