A rotina é previsível.
Talvez seja por isso que eu me sinta confortável dentro dela.
Há segurança em saber o que vai acontecer a cada minuto do dia — nenhuma surpresa, nenhum abalo, apenas constância.
Às seis da manhã, o despertador toca.
Não há hesitação, nem preguiça.
Levanto, visto a camisa branca, ajusto a gravata, coloco o relógio no pulso.
Tudo no mesmo ritmo, na mesma ordem, como se cada gesto fosse um ritual de controle.
Enquanto o café preto preenche o silêncio da cozinha, observo o reflexo no vidro da janela.
Há rugas discretas perto dos olhos, marcas do tempo e da vida.
Ainda assim, há algo de firme na postura.
A imagem de um homem que, à primeira vista, parece ter tudo sob controle.
No hospital, o ar tem o cheiro misto de álcool, desinfetante e café velho.
São aromas que se tornaram parte de mim.
Cumprimento a equipe, e eles me recebem com aquele respeito silencioso que só o tempo conquista.
Os residentes me olham como quem observa um modelo a seguir — e, talvez, essa seja a única coisa que ainda me dá algum orgulho.
Fui como eles um dia: jovem, ambicioso, acreditando que salvar vidas me tornaria imortal.
Hoje sei que a imortalidade não está em curar, mas em aprender a conviver com o que não pode ser curado.
— Bom dia, doutor Duarte — diz Helena, a enfermeira mais antiga da ala. O nome dela sempre me causa um pequeno desconforto, mas disfarço.
— Bom dia, Helena. Como estão os pacientes da 203 e 207?
— Estáveis. Mas o senhor sabe como é, a madrugada foi longa.
Ela sorri, e o sorriso tem um quê de gentileza misturado com curiosidade.
Helena é viúva também. Talvez por isso entenda o que não digo.
No olhar dela há empatia, mas também algo que eu prefiro não decifrar.
Não quero interpretações, nem aproximações.
A distância é meu escudo.
Durante as primeiras horas da manhã, o tempo se dissolve entre consultas e diagnósticos.
Ouço histórias de dor, de esperança, de medo.
A medicina é um espelho c***l — quanto mais você tenta curar os outros, mais percebe o quanto há de incurável em si mesmo.
E ainda assim, continuo.
Não porque acredito em milagres, mas porque o ato de ajudar o outro me mantém funcional.
Ao meio-dia, a rotina muda de cenário.
Deixo o hospital e sigo para o prédio da empresa — Duarte Segurança Integrada.
É estranho conciliar dois mundos tão diferentes, mas o negócio foi o legado do meu pai, e não sou do tipo que desperdiça o que foi construído com suor.
A empresa funciona como uma engrenagem perfeita: câmeras, vigilância, contratos com bancos e órgãos públicos.
Tudo supervisionado com precisão.
Gosto dessa sensação — a previsibilidade das máquinas, a obediência dos números, a ordem que os seres humanos nunca conseguem manter.
Quando entro no prédio, os olhares me acompanham.
É inevitável.
Alguns por respeito, outros por curiosidade, e alguns… por desejo.
As mulheres — secretárias, executivas, advogadas — disfarçam bem, mas o olhar é o mesmo: aquela mistura de admiração e interesse.
Eu noto, é claro.
Mas aprendi a fingir que não vejo.
— Doutor Duarte, bom dia! — a recepcionista sorri, exibindo um entusiasmo quase ensaiado. — A reunião com o conselho foi adiantada para as duas, tudo bem?
— Tudo bem, obrigado. E parabéns pelo novo corte de cabelo, ficou bom em você.
Ela cora levemente.
Não foi flerte, apenas educação.
Mas às vezes a educação é confundida com convite, e é por isso que aprendi a medir cada palavra.
No elevador, dois funcionários cochicham algo quando entro.
O som do “shh” vem rápido, junto com os olhares constrangidos.
Não me incomodo.
Há quem me veja como distante demais, frio demais.
Mas eu prefiro assim.
Autoridade não se constrói com simpatia.
Quando as portas se abrem, o som muda.
O andar executivo é silencioso, elegante.
Vidros, aço, tons neutros.
Minha sala é ampla, com vista para o centro da cidade.
Tudo ali reflete meu modo de viver: sem excessos, sem desordem, sem vida.
Marta, minha assistente, já está à minha espera com uma pasta em mãos.
— Aqui estão os contratos que o senhor pediu — ela diz, e então faz uma pausa curta. — E… chegaram convites novos para eventos. Uns cinco, pelo menos.
— Jogue fora — respondo, sem levantar o olhar.
— Todos?
— Todos.
Ela suspira de leve, mas obedece.
Já se acostumou com minhas recusas.
Os convites vão desde congressos a jantares beneficentes, mas não há nada nesses lugares que me atraia.
Sorrisos falsos, taças erguidas por interesse, elogios trocados como moeda.
Prefiro o silêncio do meu escritório ao barulho das aparências.
Enquanto Marta fala sobre prazos e reuniões, noto um perfume diferente no ar.
Um cheiro leve, floral, que contrasta com o ambiente estéril da sala.
Viro o rosto e encontro Clara, uma das executivas de contas.
Ela entra com um relatório nas mãos, mas o olhar fala antes da voz.
— Doutor, trouxe os números do último trimestre. Achei que o senhor preferiria ver pessoalmente.
Ela veste um tailleur elegante, o batom é discreto, o perfume caro.
Sabe o efeito que causa — e o usa como armadura.
Mas nada me atinge mais.
— Deixe sobre a mesa, por favor.
— Claro.
Ela se inclina um pouco mais do que o necessário ao colocar os papéis.
Por um instante, o perfume se mistura ao cheiro do café e da madeira polida.
É agradável, mas distante.
Não desperta nada.
Quando ela sai, Marta comenta, sem disfarçar o tom divertido:
— Se o senhor quisesse, metade das mulheres daqui faria fila.
Levanto os olhos do relatório.
— E a outra metade também — ela completa, rindo sozinha.
Não respondo.
Ela percebe o silêncio e muda de assunto.
Mas por dentro, penso em como o desejo perdeu significado.
Já me acostumei à ideia de não precisar de ninguém.
A solidão, quando bem administrada, deixa de ser dor e passa a ser escolha.
Ao longo da tarde, as horas se acumulam em reuniões, decisões, números.
A vida corporativa é um teatro previsível: cada um representa seu papel, e o roteiro nunca muda.
Eu, o chefe impassível; eles, os subordinados ávidos por aprovação.
É curioso como o poder atrai e repele na mesma medida.
As pessoas me respeitam, admiram, e, ainda assim, mantêm uma distância instintiva.
Como se pressentissem que há algo em mim que não deve ser tocado.
No final do expediente, o sol já se despede pelas janelas do andar.
A cidade lá embaixo começa a acender suas luzes, e por um momento, tudo parece em pausa.
Fico olhando aquele movimento de longe — carros, pessoas, pressa.
Eles seguem vivendo, amando, errando, enquanto eu permaneço aqui, imóvel, dentro de uma vida que não me emociona mais.
Quando saio do prédio, a brisa fria da noite me recebe.
Abro o carro, ajusto o retrovisor e, por reflexo, encaro meus próprios olhos.
Há algo neles que eu já não reconheço — talvez um homem cansado de ter razão.
Ligo o motor, e enquanto o som grave preenche o silêncio, lembro das palavras que minha mãe costumava dizer:
“Um dia, Leonardo, o coração vai te desafiar.”
Nunca levei a sério.
Mas, de algum modo, naquela noite, algo dentro de mim sussurrou que o desafio estava mais perto do que eu imaginava.
E que, por mais que eu me julgasse inabalável, ninguém vive uma vida inteira sem que o destino decida testar suas certezas.