Noite Qualquer

1746 Words
Nathan sempre foi o oposto de mim. Onde eu via limites, ele via possibilidades. Onde eu colocava freio, ele acelerava. Nos conhecemos ainda na faculdade de medicina, e mesmo que o tempo tivesse nos levado por caminhos diferentes, a amizade resistiu — talvez porque, no fundo, ele sempre soube o que havia por trás do meu silêncio. Era sexta-feira, fim de expediente. Eu revia relatórios no escritório quando o telefone tocou. Do outro lado, a voz de Nathan tinha o mesmo tom debochado de sempre. — Leonardo Duarte, o homem que trabalha mais do que Deus e dorme menos do que um padre em vigília. Me diz que hoje você não vai inventar desculpas. — Boa noite pra você também — respondi, tentando não sorrir. — E sim, vou inventar. Tenho coisas pra resolver. — Resolver? — ele riu. — Leonardo, você tem dinheiro, respeito, um império, e a mesma expressão de quem enterrou a felicidade num caixão. Chega. Hoje você vai sair comigo. Suspirei, girando a cadeira devagar. Nathan tinha esse talento: transformar qualquer conversa em provocação. — Não tenho paciência pra multidão. — Quem falou em multidão? Eu conheço o lugar perfeito. Ambiente sofisticado, boa bebida, mulheres bonitas e música de fundo que não grita nos ouvidos. Fez uma pausa. — É o tipo de lugar onde você pode continuar fingindo que não precisa de nada — completou, com ironia. Revirei os olhos, mesmo que ele não pudesse ver. — Você nunca desiste, não é? — Nunca desisto de um desafio, meu caro. — A voz dele ficou mais suave. — Anda, Leo. Uma noite fora não vai te matar. A frase ficou suspensa no ar, carregada de uma verdade incômoda. Talvez o que me matava fosse justamente o contrário: viver sempre dentro da mesma rotina estéril. Fechei a pasta de relatórios. — Me manda o endereço — murmurei. Do outro lado da linha, ele riu satisfeito. — Sabia que ainda restava um pouco de vida nesse robô. Te espero às oito. E, por favor, troca o terno por algo que diga “homem interessante”, não “diretor de hospital”. O bar se chamava Maison d’Étoiles. Ficava no alto de um prédio de arquitetura moderna, com uma vista panorâmica da cidade. A iluminação era baixa, os tons dourados refletiam nos copos de cristal, e o som de um saxofone preenchia o ambiente. Havia ali um cheiro de luxo discreto — perfume caro, madeira polida e vinho aberto recentemente. Quando cheguei, Nathan já estava em uma mesa próxima à janela. Camisa azul escura, mangas dobradas, sorriso largo. Acenou com o copo na mão. — Olha só quem decidiu reaparecer entre os vivos! — Não exagere — respondi, sentando-me. — Vim por educação, não por entusiasmo. — Educação é um ótimo começo. — Ele sinalizou para o garçom. — Duas doses do melhor uísque da casa. Observei o movimento ao redor. Homens e mulheres bem vestidos, risadas contidas, conversas em tom baixo. Era o tipo de lugar que exalava poder — não o escandaloso, mas o silencioso. Gente que sabia o valor de cada gesto. — Admito que escolheu bem — comentei. — Ambiente agradável. — Eu sempre escolho bem. — Nathan sorriu, recostando-se na cadeira. — Só não escolho bem nas mulheres, mas isso é outro departamento. O garçom chegou com as bebidas, e o som do gelo no copo quebrou o silêncio. Tomei o primeiro gole e deixei o sabor amadeirado descer lentamente. Fazia tempo que uma noite não começava assim, sem pressa, sem propósito. Nathan me observava com aquele olhar perspicaz de quem me conhecia há décadas. — Sabe o que é curioso, Leo? — perguntou. — Você parece estar sempre em guerra com a vida. Como se vivesse medindo cada emoção pra não sentir demais. — Talvez seja o preço de quem já sentiu o suficiente — respondi. Ele assentiu devagar, como quem entende mais do que diz. — Você ainda pensa nela? Não precisei perguntar quem era “ela”. — Todos os dias — confessei. — Mas de formas diferentes. Às vezes como lembrança, às vezes como culpa. Olhei para o copo. — Helena foi a última vez que eu me senti vivo. Nathan ficou em silêncio por alguns segundos. — E se a vida estiver te oferecendo uma segunda chance, e você estiver ocupado demais pra perceber? — A vida não oferece chances, Nathan. Ela cobra. Sempre. Ele riu, mas havia melancolia no som. — Você fala como um homem que viu o amor morrer, e não como alguém que poderia vê-lo renascer. Desviei o olhar. As luzes do bar refletiam nas taças, criando pequenos brilhos dourados. Mulheres elegantes passavam entre as mesas, perfumes distintos se misturavam no ar — jasmim, âmbar, notas de baunilha. Uma delas, de vestido vermelho, cruzou meu campo de visão e me lançou um olhar demorado. Sorriu. Desviei. Nathan notou. — É impressionante. Elas olham pra você como se você fosse uma tentação proibida. E você... ignora como se fosse imune. — Porque sou — respondi com tranquilidade. — Desejo é efêmero. Não confio no que acaba depressa. — Nem tudo que termina rápido é raso, Leo. — Ele deu um gole na bebida. — Às vezes, o que te muda acontece em um instante. — E às vezes, o que destrói também. Ele ergueu o copo. — Por isso bebemos, pra equilibrar a estatística. Ri de leve — um som raro até pra mim. Nathan era o único capaz de arrancar isso de mim. Ele falava com leveza, mas sempre havia algo de verdadeiro por trás das piadas. Duas mulheres se aproximaram da mesa. Ambas elegantes, saltos altos, cabelos impecáveis, risadas ensaiadas. A loira se dirigiu a Nathan. — Vocês estão ocupados? — Sempre temos espaço pra beleza — respondeu ele, abrindo espaço no sofá. A morena me lançou um olhar curioso. — Leonardo Duarte, não é? Acho que já li sobre você em alguma matéria de negócios. — Então já sabe mais do que eu mesmo — respondi, cordial. Ela riu, cruzando as pernas. O vestido preto marcava o contorno do corpo de maneira calculada. Sabia o que fazia. Nathan puxou conversa, sempre carismático, sempre leve. Eu, como de costume, mantive a distância educada. O jogo social nunca me interessou. Enquanto eles falavam, olhei pela janela. A cidade brilhava como um organismo vivo, pulsando luzes e ruídos. Pensei em como cada um ali, naquele bar, provavelmente escondia alguma dor atrás do sorriso. Alguns bebiam pra esquecer, outros pra lembrar. Eu bebia apenas pra existir. — Você é difícil de decifrar — comentou a morena, inclinando-se ligeiramente. — Isso é uma vantagem — respondi. — Ou um desafio. Nathan riu alto, brindando no ar. — Ele é um enigma, minha cara. E um enigma não se decifra; se admira de longe. Ela continuou me olhando, tentando encontrar uma brecha. Não havia. Quando se cansou do silêncio, levantou-se com um sorriso forçado e disse: — Homens misteriosos são fascinantes… até que você percebe que eles não se deixam tocar. Ela se foi, e Nathan a acompanhou com o olhar. — Viu só? Você repele até o que é bonito. — Não foi pessoal — murmurei. — Só não vejo sentido em desperdiçar tempo com o que não me desperta nada. — E se o problema for exatamente esse? — Ele inclinou-se pra frente. — Você acha que nada te desperta mais, mas o mundo continua tentando. — O mundo é insistente — respondi, sorrindo de canto. — Mas eu sou teimoso. Nathan riu, brindando outra vez. — Um dia, alguém vai te tirar dessa armadura, Leo. E quando acontecer, você vai se arrepender de ter desperdiçado tantas noites frias. — Eu não acredito mais em salvadores, Nathan. — Então acredita em quê? — No controle. Ele riu outra vez, balançando a cabeça. — Controle é o refúgio dos que têm medo de viver. Ficamos em silêncio por alguns segundos. A música mudou, agora um piano suave tomava conta do ambiente. O bar parecia respirar junto com aquela melodia lenta. Nathan observava uma mulher dançando sozinha perto do balcão, os olhos dele brilhando com o mesmo fogo de sempre. — Ela é linda — comentou. — Aposto que tem uma história triste o bastante pra te interessar. — Você precisa parar de me analisar — respondi, sem disfarçar o sorriso. — E você precisa começar a se permitir — retrucou, com firmeza incomum. — Helena não ia querer te ver assim. A menção ao nome dela me atingiu como um soco silencioso. Engoli seco, desviando o olhar. — Não fale dela. Nathan respirou fundo. — Desculpa. É só que… você ainda vive com o fantasma dela. — É melhor do que viver sem nada. Ele balançou a cabeça, desistindo de insistir. — Você continua o mesmo, Leonardo. Fechado, intenso, impossível. Sorri, sem humor. — E você continua achando que pode consertar o que o tempo quebrou. — Às vezes pode. — Ele olhou para o copo, girando o líquido âmbar. — O tempo destrói, mas também apresenta surpresas. — Surpresas geralmente custam caro. — Algumas valem o preço. A conversa foi ficando mais leve depois disso. Falamos sobre o hospital, sobre negócios, sobre a vida que seguia empurrando cada um de nós em direções opostas. Nathan contou histórias absurdas de seus casos passageiros, cada uma mais improvável que a anterior. Eu ria, não tanto pelo conteúdo, mas pelo alívio que era ouvir alguém ainda capaz de rir de si mesmo. A madrugada avançou devagar. O bar começava a esvaziar, o saxofone agora soava como uma despedida. Nathan se recostou, relaxado, o sorriso satisfeito. — Confessa, foi uma boa noite. — Foi… suportável — respondi, mas o canto da minha boca denunciava o contrário. — Admitir que gostou não vai te matar. — Ainda não. Pagamos a conta. Lá fora, a brisa fria da madrugada carregava o cheiro de chuva distante. A cidade dormia em fragmentos de luz. Nathan deu um tapa leve no meu ombro. — Semana que vem, outro lugar. Dessa vez, sem desculpas. — Veremos. Ele riu, caminhando até o carro. Fiquei alguns segundos parado, observando o reflexo das luzes no asfalto molhado. Havia algo diferente naquela noite — um pressentimento sutil, quase imperceptível, de que o destino começava a se mover. E por mais que eu insistisse em negar, uma parte de mim — talvez a mais silenciosa — sentia que algo estava prestes a mudar.
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