O som do despertador soou às seis em ponto, cortando o silêncio do quarto como uma lâmina.
Levantei sem hesitar — o corpo já acostumado à disciplina, a mente ainda vagando nos fragmentos da noite anterior.
Nathan tinha razão: fazia tempo que eu não ria de verdade.
Mas, ao mesmo tempo, a sensação de ter quebrado minha rotina me deixava desconfortável.
Como se, por algumas horas, eu tivesse saído do controle que levei anos pra construir.
Na cozinha, o aroma do café se espalhou, familiar e previsível.
Enquanto observava o vapor subir da xícara, me perguntei quando exatamente a minha vida tinha se tornado uma sucessão de rituais automáticos.
Cada gesto medido, cada palavra calculada, cada emoção contida.
Era funcional, eficiente, mas profundamente vazio.
Nathan dizia que eu vivia como um homem que tinha medo da própria sombra.
Talvez ele não estivesse completamente errado.
O dia começou como todos os outros: hospital, pacientes, diagnósticos, relatórios.
No consultório, o ar condicionado zumbia baixo, as paredes claras transmitiam uma serenidade artificial.
Eu gostava disso — da ordem.
Da previsibilidade que afastava o caos.
Perto do meio-dia, Marta entrou com uma pilha de pastas e uma expressão animada demais para o horário.
— Doutor Duarte, o senhor recebeu um convite especial — disse, pousando um envelope de papel timbrado sobre a mesa.
O brasão do Hospital Infantil Santa Aurora vinha impresso em dourado.
— O que é isso? — perguntei, sem desviar os olhos dos relatórios.
— Um leilão beneficente — respondeu. — Eles estão arrecadando fundos para a nova ala oncológica. Vai ser uma gala, na próxima sexta-feira.
Fez uma pausa. — E parece que seu nome está na lista de convidados principais.
Ergui o olhar.
— Deve ser engano. Eu financio parte do projeto, mas não costumo participar desses eventos.
— Engano, não. — Ela sorriu. — O senhor é um dos maiores doadores, Leonardo. E eles vão leiloar obras, viagens, até jantares com algumas personalidades. Vai ser uma noite elegante, daquelas que saem em revista.
Suspirei.
— Você sabe que eu não sou o tipo de homem que gosta de se exibir.
— Eu sei, mas o Doutor Nathan já ligou avisando que o senhor não tem escolha.
Franzi o cenho.
— O Nathan?
— Disse que o senhor “precisa viver um pouco” e que vai buscá-lo pessoalmente, se for preciso.
Fechei os olhos por um instante, respirando fundo.
Claro que ele daria um jeito.
Nathan sempre dava.
— E quando é? — perguntei, resignado.
— Sexta-feira, às oito da noite. Terno preto, evento de gala, sem desculpas.
Assenti.
— Envie um e-mail confirmando minha presença, então.
Marta arregalou os olhos, surpresa.
— Sério? Assim, sem resistência?
— É apenas uma noite. — Dei de ombros. — Talvez ele pare de insistir depois disso.
— Duvido. — Ela sorriu. — Mas fico feliz de vê-lo sair um pouco da toca.
Quando ela saiu, fiquei encarando o envelope por alguns segundos.
O papel era grosso, elegante, o tipo de detalhe que denuncia quem o enviou.
Um evento beneficente.
De alguma forma, parecia adequado — a culpa sempre busca um lugar para se redimir.
Talvez, no fundo, eu estivesse tentando equilibrar a balança de tudo o que não consegui salvar.
A tarde seguiu em ritmo previsível.
Cirurgias agendadas, relatórios financeiros da empresa, reuniões com investidores.
Eu transitava entre os dois mundos com a mesma precisão de sempre — a da medicina e a dos negócios.
Ambos exigiam controle, ambos me protegiam do imponderável.
Mas naquele dia, havia algo diferente no ar.
Talvez fosse a lembrança da noite no bar, ou a ideia incômoda de comparecer a um evento social.
Mas, por alguma razão, o cotidiano me parecia menos… sufocante.
Às seis da tarde, o telefone vibrou sobre a mesa.
Nathan.
— Então confirmou? — perguntou sem sequer cumprimentar.
— Marta me convenceu.
— Corrigindo: eu te convenci.
— Ela apenas transmitiu a mensagem.
— Ótimo. Já que vai, quero garantir que não vai aparecer com aquela cara de quem foi arrastado por caridade.
— É um leilão beneficente, Nathan. Caridade faz parte do tema.
Ele riu alto.
— O humor está voltando, veja só. Isso é quase um milagre.
— Não crie expectativas.
— Nenhuma. Só quero que se lembre de que o mundo ainda tem mais a oferecer do que planilhas e bisturis.
Fiquei em silêncio por um instante, ouvindo o som da respiração dele do outro lado.
Nathan sempre soube equilibrar a leveza com o incômodo — era seu talento.
— Você acredita mesmo que uma noite muda alguma coisa? — perguntei.
— Eu acredito em encontros, Leonardo. E às vezes, um único olhar muda o rumo inteiro de uma vida.
A frase ficou ecoando por segundos após a ligação cair.
Era o tipo de coisa que ele diria sem pensar, mas que se infiltrava na mente como uma semente.
Um olhar que muda o rumo de uma vida.
Eu já tinha vivido algo assim, uma vez — e custou caro demais.
Os dias seguintes passaram depressa.
A rotina do hospital se misturava às exigências da empresa.
A cada paciente curado, havia outro que me lembrava da impotência de ser humano.
No meio disso, o convite repousava sobre a mesa, como um lembrete silencioso de que eu havia concordado em sair da bolha.
Não por vontade, mas talvez por curiosidade — ou por lealdade a Nathan.
Na sexta à tarde, cheguei em casa exausto.
O sol se escondia por trás dos prédios, e a casa mergulhava em um silêncio familiar.
Subi as escadas e parei diante do espelho do closet.
O reflexo me encarou de volta: terno preto, gravata de seda, expressão impassível.
Um homem pronto para mais uma noite de aparências.
No fundo, sabia que o evento não seria diferente de tantos outros.
Brindes, sorrisos ensaiados, promessas de generosidade.
Mas havia algo em mim — talvez a lembrança da risada de Nathan — que insistia em acreditar que algo poderia ser diferente.
Quando estacionei o carro no hotel onde aconteceria o leilão, o céu já estava tingido de azul profundo.
Os seguranças recebiam os convidados com cordialidade, e os flashes de fotógrafos cortavam a entrada como relâmpagos breves.
Reconheci rostos conhecidos: médicos renomados, empresários da região, políticos disfarçados de benfeitores.
O tipo de cenário que sempre me pareceu previsível.
Do outro lado do salão, o brilho dos lustres se refletia nas taças de cristal.
O som de uma orquestra suave preenchia o ar, e garçons circulavam com bandejas prateadas.
Havia um cheiro de perfume caro misturado a flores brancas — um aroma que me lembrou o casamento de um paciente, há anos.
Tudo ali era cuidadosamente elegante, como se o luxo tentasse dar forma à compaixão.
Nathan me encontrou perto do bar, com aquele mesmo sorriso confiante.
— Eu sabia que você viria — disse, erguendo a taça. — Não há como resistir a um evento com uísque de vinte anos e mulheres de quarenta que parecem ter trinta.
— Seu senso de prioridade é admirável.
— Meu senso de sobrevivência, Leonardo. — Ele me olhou de cima a baixo. — E devo admitir, está impecável. Falta só o sorriso.
— Isso custa caro demais.
Ele riu.
— Hoje eu pago.
Conversamos por alguns minutos, enquanto o mestre de cerimônias anunciava o início do leilão.
Obras de arte, viagens internacionais, experiências exclusivas — tudo apresentado com pompa e discursos sobre empatia e solidariedade.
Nathan comentava cada item com ironia afiada, e eu, entre um gole e outro, deixava escapar sorrisos discretos.
Mas em meio àquele desfile de luxo, algo começou a mudar.
Um movimento sutil no salão, uma presença que ainda não tinha nome.
Não sabia o que era, mas o ar pareceu diferente.
Como se o destino, paciente e calculado, estivesse prestes a dar seu primeiro passo.
Eu apenas não sabia — ainda — que aquela noite, tão comum em aparência, seria o início de tudo.
O prelúdio silencioso daquilo que viraria minha vida do avesso.