A tarde estava abafada, daquelas em que o ar parece pesado demais até pra respirar.
Eu voltava do hospital depois de uma reunião interminável, o trânsito da cidade se arrastando como uma fila de formigas cansadas.
O som dos motores, as buzinas espaçadas, o reflexo do sol nos vidros — tudo formava uma sinfonia caótica e previsível.
O rádio tocava baixo, apenas ruído de fundo para meus pensamentos dispersos.
Não pensava em nada específico, mas também não estava totalmente ali.
Os dias vinham sendo longos, repetitivos, e o silêncio dentro de mim se tornava mais incômodo.
Mesmo tentando evitar, a lembrança dela ainda me visitava nas horas mais improváveis.
Manuela Vasconcelos.
A imagem dela no vestido vermelho, o riso leve, o perfume sutil — tudo aparecia de repente, como uma nota perdida no meio de uma música que eu acreditava já ter terminado.
Sacudi a cabeça, como quem tenta espantar um pensamento inconveniente, e parei no sinal vermelho.
Olhei o relógio. Quase cinco da tarde.
Mais alguns minutos, e eu estaria em casa.
Foi então que o impacto veio.
Seco, forte, inesperado.
O carro sacudiu com violência, o cinto pressionou meu peito, e o som metálico da batida se misturou ao barulho dos freios e a uma buzina distante.
Instintivamente, apertei o volante, tentando entender o que havia acontecido.
Respirei fundo. Nenhum ferimento, só o susto.
Desliguei o rádio, abri a porta e desci.
Atrás do meu carro, um sedã prateado parado em diagonal, o para-choque amassado.
A porta do motorista se abriu devagar, e uma mulher saiu às pressas.
Os cabelos loiros estavam soltos, bagunçados, e o rosto...
Por um instante, o tempo pareceu recuar.
— Manuela? — chamei, sem acreditar.
Ela levantou o olhar — e o choque nos olhos dela foi tão claro quanto o meu.
Mas ela não respondeu.
A respiração estava acelerada, e lágrimas escorriam sem controle.
— Eu… eu sinto muito! — disse, com a voz trêmula. — Meu Deus, eu não vi o carro, eu... eu estava distraída, eu… — As palavras se atropelavam umas nas outras.
Ela falava, mas parecia longe.
Não era o nervosismo da batida — era outro tipo de dor, mais profunda.
Os olhos dela estavam marejados de um choro antigo, o tipo que não nasce do medo, mas do cansaço.
— Está tudo bem — tentei interromper, mas ela continuava, desorientada.
— Eu juro que vou pagar pelo conserto, eu só… não tive um bom dia, eu... não estou com cabeça pra nada, foi culpa minha, eu sei...
Dei um passo à frente, baixando o tom da voz.
— Manuela, me escute.
Ela parou por um segundo, confusa, como se finalmente percebesse o que eu tinha dito.
— O quê? — perguntou, piscando várias vezes, tentando focar.
— Está tudo bem — repeti. — Foi um susto, só isso. Ninguém se machucou.
Ela respirou fundo, levando uma das mãos ao peito, tentando se recompor.
O choro cedeu, mas os olhos continuavam vermelhos.
— Eu sinto muito mesmo… — murmurou, com a voz embargada. — Eu... —
Parou de repente.
O olhar dela me percorreu, e a lembrança pareceu finalmente se encaixar.
— Leonardo?
Assenti, num meio sorriso.
— Achei que não fosse me reconhecer.
Ela levou a mão à testa, como quem tenta organizar os próprios pensamentos.
— Meu Deus… eu... claro, o evento… o leilão. — A voz saiu mais fraca, quase um sussurro. — Que coincidência absurda.
— Coincidência é uma palavra elegante pra destino — respondi, tentando aliviar o clima.
Ela riu, ainda entre lágrimas.
— Eu devo estar sendo testada pelo destino então.
Olhei em volta.
O trânsito começava a se acumular atrás de nós, alguns motoristas buzinando, outros tentando entender a cena.
O som das buzinas me trouxe de volta ao presente.
— Precisamos tirar os carros daqui — falei, mantendo a voz calma. — Não é um bom lugar pra conversar.
— Eu... — ela hesitou. — Eu realmente estou envergonhada, Leonardo.
— Não precisa. Acontece.
— Mas eu bati no seu carro.
— E eu sobrevivi. — Sorri de leve. — Venha, vamos estacionar ali na esquina.
Ela assentiu, limpando o rosto com um lenço.
Subimos nos carros e dirigimos devagar até um posto logo adiante.
O silêncio dentro do veículo era denso, cheio de pensamentos que eu não sabia decifrar.
Quando estacionei, desci primeiro.
Ela veio logo depois, mais calma, mas ainda com os olhos marejados.
— Desculpe — repetiu, num tom mais baixo. — Eu não devia nem estar dirigindo hoje.
— Está machucada?
— Não. Só… exausta.
Ficamos frente a frente, o barulho dos carros passando ao fundo.
O vento leve movia os fios soltos do cabelo dela, e por um instante, tive a impressão de que aquele reencontro não era coincidência nenhuma.
— Quer me dizer o que houve? — perguntei, num tom mais gentil.
Ela balançou a cabeça.
— Foi um dia difícil, só isso. Eu... prefiro não aborrecer você com isso.
— Manuela, você estava chorando no meio da rua. Não parece “só isso”.
Ela respirou fundo.
— É, talvez não. — Enxugou o rosto. — Mas eu juro que vou resolver tudo. Posso anotar o endereço da oficina, cobrir o conserto, ou o que for preciso...
— Não é sobre o carro. — Fiz uma pausa. — É sobre você.
O olhar dela encontrou o meu de novo.
Por um instante, não houve som algum além do vento.
Então, com um suspiro, ela cedeu:
— Está bem... só não hoje.
Assenti.
— Tudo bem.
— Eu realmente não quero incomodar.
— Não está incomodando. Só acho melhor sair daqui. Você está nervosa, e esse trânsito não vai ajudar.
Ela hesitou, olhando ao redor.
— Não precisa se preocupar.
— Não estou me preocupando. Estou sendo lógico. — Cruzei os braços. — Podemos ir a algum lugar mais calmo. Um café, talvez.
Ela pareceu refletir por um instante.
Depois, sorriu sem força.
— Você ainda tem aquele tom de quem não aceita “não” como resposta, não é?
— Só quando o “não” parece te proteger de algo que você não precisa enfrentar sozinha.
Ela baixou os olhos, respirou fundo e assentiu.
— Está bem. Um café.
E foi assim — simples e inesperado — que o acaso decidiu dar seu segundo passo.
A mulher que eu acreditava nunca mais ver estava ali, diante de mim, vulnerável e diferente.
E, sem entender exatamente por quê, eu sabia que a partir dali, nada mais seria casual.