Acaso em Movimento

1086 Words
A tarde estava abafada, daquelas em que o ar parece pesado demais até pra respirar. Eu voltava do hospital depois de uma reunião interminável, o trânsito da cidade se arrastando como uma fila de formigas cansadas. O som dos motores, as buzinas espaçadas, o reflexo do sol nos vidros — tudo formava uma sinfonia caótica e previsível. O rádio tocava baixo, apenas ruído de fundo para meus pensamentos dispersos. Não pensava em nada específico, mas também não estava totalmente ali. Os dias vinham sendo longos, repetitivos, e o silêncio dentro de mim se tornava mais incômodo. Mesmo tentando evitar, a lembrança dela ainda me visitava nas horas mais improváveis. Manuela Vasconcelos. A imagem dela no vestido vermelho, o riso leve, o perfume sutil — tudo aparecia de repente, como uma nota perdida no meio de uma música que eu acreditava já ter terminado. Sacudi a cabeça, como quem tenta espantar um pensamento inconveniente, e parei no sinal vermelho. Olhei o relógio. Quase cinco da tarde. Mais alguns minutos, e eu estaria em casa. Foi então que o impacto veio. Seco, forte, inesperado. O carro sacudiu com violência, o cinto pressionou meu peito, e o som metálico da batida se misturou ao barulho dos freios e a uma buzina distante. Instintivamente, apertei o volante, tentando entender o que havia acontecido. Respirei fundo. Nenhum ferimento, só o susto. Desliguei o rádio, abri a porta e desci. Atrás do meu carro, um sedã prateado parado em diagonal, o para-choque amassado. A porta do motorista se abriu devagar, e uma mulher saiu às pressas. Os cabelos loiros estavam soltos, bagunçados, e o rosto... Por um instante, o tempo pareceu recuar. — Manuela? — chamei, sem acreditar. Ela levantou o olhar — e o choque nos olhos dela foi tão claro quanto o meu. Mas ela não respondeu. A respiração estava acelerada, e lágrimas escorriam sem controle. — Eu… eu sinto muito! — disse, com a voz trêmula. — Meu Deus, eu não vi o carro, eu... eu estava distraída, eu… — As palavras se atropelavam umas nas outras. Ela falava, mas parecia longe. Não era o nervosismo da batida — era outro tipo de dor, mais profunda. Os olhos dela estavam marejados de um choro antigo, o tipo que não nasce do medo, mas do cansaço. — Está tudo bem — tentei interromper, mas ela continuava, desorientada. — Eu juro que vou pagar pelo conserto, eu só… não tive um bom dia, eu... não estou com cabeça pra nada, foi culpa minha, eu sei... Dei um passo à frente, baixando o tom da voz. — Manuela, me escute. Ela parou por um segundo, confusa, como se finalmente percebesse o que eu tinha dito. — O quê? — perguntou, piscando várias vezes, tentando focar. — Está tudo bem — repeti. — Foi um susto, só isso. Ninguém se machucou. Ela respirou fundo, levando uma das mãos ao peito, tentando se recompor. O choro cedeu, mas os olhos continuavam vermelhos. — Eu sinto muito mesmo… — murmurou, com a voz embargada. — Eu... — Parou de repente. O olhar dela me percorreu, e a lembrança pareceu finalmente se encaixar. — Leonardo? Assenti, num meio sorriso. — Achei que não fosse me reconhecer. Ela levou a mão à testa, como quem tenta organizar os próprios pensamentos. — Meu Deus… eu... claro, o evento… o leilão. — A voz saiu mais fraca, quase um sussurro. — Que coincidência absurda. — Coincidência é uma palavra elegante pra destino — respondi, tentando aliviar o clima. Ela riu, ainda entre lágrimas. — Eu devo estar sendo testada pelo destino então. Olhei em volta. O trânsito começava a se acumular atrás de nós, alguns motoristas buzinando, outros tentando entender a cena. O som das buzinas me trouxe de volta ao presente. — Precisamos tirar os carros daqui — falei, mantendo a voz calma. — Não é um bom lugar pra conversar. — Eu... — ela hesitou. — Eu realmente estou envergonhada, Leonardo. — Não precisa. Acontece. — Mas eu bati no seu carro. — E eu sobrevivi. — Sorri de leve. — Venha, vamos estacionar ali na esquina. Ela assentiu, limpando o rosto com um lenço. Subimos nos carros e dirigimos devagar até um posto logo adiante. O silêncio dentro do veículo era denso, cheio de pensamentos que eu não sabia decifrar. Quando estacionei, desci primeiro. Ela veio logo depois, mais calma, mas ainda com os olhos marejados. — Desculpe — repetiu, num tom mais baixo. — Eu não devia nem estar dirigindo hoje. — Está machucada? — Não. Só… exausta. Ficamos frente a frente, o barulho dos carros passando ao fundo. O vento leve movia os fios soltos do cabelo dela, e por um instante, tive a impressão de que aquele reencontro não era coincidência nenhuma. — Quer me dizer o que houve? — perguntei, num tom mais gentil. Ela balançou a cabeça. — Foi um dia difícil, só isso. Eu... prefiro não aborrecer você com isso. — Manuela, você estava chorando no meio da rua. Não parece “só isso”. Ela respirou fundo. — É, talvez não. — Enxugou o rosto. — Mas eu juro que vou resolver tudo. Posso anotar o endereço da oficina, cobrir o conserto, ou o que for preciso... — Não é sobre o carro. — Fiz uma pausa. — É sobre você. O olhar dela encontrou o meu de novo. Por um instante, não houve som algum além do vento. Então, com um suspiro, ela cedeu: — Está bem... só não hoje. Assenti. — Tudo bem. — Eu realmente não quero incomodar. — Não está incomodando. Só acho melhor sair daqui. Você está nervosa, e esse trânsito não vai ajudar. Ela hesitou, olhando ao redor. — Não precisa se preocupar. — Não estou me preocupando. Estou sendo lógico. — Cruzei os braços. — Podemos ir a algum lugar mais calmo. Um café, talvez. Ela pareceu refletir por um instante. Depois, sorriu sem força. — Você ainda tem aquele tom de quem não aceita “não” como resposta, não é? — Só quando o “não” parece te proteger de algo que você não precisa enfrentar sozinha. Ela baixou os olhos, respirou fundo e assentiu. — Está bem. Um café. E foi assim — simples e inesperado — que o acaso decidiu dar seu segundo passo. A mulher que eu acreditava nunca mais ver estava ali, diante de mim, vulnerável e diferente. E, sem entender exatamente por quê, eu sabia que a partir dali, nada mais seria casual.
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