O silêncio tem um som peculiar.
É quase como um eco distante de tudo o que já foi — uma lembrança que insiste em permanecer, mesmo quando a vida parece ter seguido em frente.
Eu me acostumei a ele. Aos poucos, ele deixou de ser incômodo para se tornar familiar.
Talvez porque, no fundo, fosse a única companhia que nunca me deixou.
Meu nome é Leonardo Duarte.
Tenho trinta e nove anos, e há mais de uma década aprendi o que significa perder algo que nenhuma conquista posterior pode substituir.
Sou médico, dono de uma empresa de vigilância e segurança que herdei do meu pai — uma herança que ele construiu com o suor de uma vida inteira e que eu transformei em um império sólido, estável, respeitado.
Mas o sucesso tem um preço: o vazio.
A morte da minha esposa foi o ponto de virada que dividiu minha vida em duas partes — o antes e o depois.
Antes, eu era o homem que acreditava no amor, que enxergava sentido nas pequenas coisas. Depois, aprendi que o tempo não cura tudo. Ele apenas ensina a disfarçar a dor.
Ela se chamava Helena.
Tinha o sorriso calmo de quem acreditava no amanhã.
Lembro-me da última vez que a vi, ainda no hospital, antes de ser levada para a cirurgia que nunca terminaria. Eu, médico, impotente diante daquilo que jurei entender.
Há ironia nisso. A medicina me ensinou a salvar vidas, mas nunca me preparou para perder uma.
E desde aquele dia, me fechei.
Trabalho passou a ser meu refúgio.
Passei a ocupar cada segundo do meu tempo com algo que me impedisse de pensar.
Consultas, reuniões, relatórios, viagens.
O mundo não parava, então eu também não podia.
A rotina virou anestesia.
E eu me tornei especialista em fingir que estava bem.
Minha casa é grande demais para um homem só.
Vidros impecavelmente limpos, móveis simetricamente dispostos, ausência de qualquer traço humano.
Quando chego à noite, a luz fria da sala reflete em superfícies que nunca foram tocadas.
Os retratos de família que antes ocupavam o aparador foram guardados em uma caixa.
As flores que Helena cuidava morreram uma a uma, e eu nunca as substituí.
Há quem diga que o lar é onde o coração está.
O meu, há muito tempo, deixou de morar aqui.
Tenho poucos amigos.
Os de verdade desistiram de me tirar da concha que criei; os superficiais se contentam em me chamar para eventos sociais que recuso educadamente.
Aprendi a ser cordial, mas distante.
A sorrir quando o protocolo exige.
E a manter o controle — sempre.
O controle é o único poder que ainda me resta.
Às vezes, me pego observando as pessoas nas ruas.
Casais que discutem, pais que seguram os filhos pelas mãos, jovens rindo alto como se o mundo fosse deles.
E por um instante, sinto inveja.
Não daquela felicidade tola e momentânea, mas da leveza que eles ainda têm.
A leveza que perdi quando comecei a medir cada passo, cada palavra, cada emoção.
Ser racional é o que me manteve de pé.
Transformei a dor em método.
A saudade em lógica.
E o amor… em lembrança.
Nunca mais me senti atraído por ninguém, não por falta de oportunidade, mas por falta de vontade.
Mulheres se aproximaram — colegas, pacientes, empresárias.
Todas belas, interessantes, mas nenhuma capaz de despertar algo real.
Talvez porque, no fundo, eu já tivesse me convencido de que o amor é um equívoco que o tempo corrige.
No hospital, sou conhecido pela precisão.
Na empresa, pela frieza.
Dizem que sou um homem difícil de ler — e gosto disso.
É mais fácil ser respeitado do que compreendido.
E respeito, pelo menos, não exige que você se exponha.
Hoje em dia, meus dias seguem um roteiro previsível.
Acordo às seis.
Café preto, sem açúcar.
Leio os jornais, reviso relatórios, atendo pacientes.
O resto do tempo é dividido entre reuniões e decisões.
Nada novo, nada surpreendente.
A vida se tornou uma sucessão de repetições que me mantêm distante do que um dia senti.
Mas, por mais que eu tente me convencer de que estou completo, há sempre um instante — breve, quase imperceptível — em que o passado sussurra.
Pode ser ao ouvir uma música que ela gostava, ou ao sentir o cheiro de chuva no fim da tarde.
É nesses momentos que a ausência de Helena se faz presente.
E é quando eu percebo que a saudade, assim como o amor, nunca morre.
Apenas muda de forma.
O consultório fica no mesmo prédio da sede da minha empresa.
Gosto da sensação de controle que isso me dá — a proximidade das duas coisas que dominam minha vida: a medicina e o negócio.
No meu andar, tudo é planejado: iluminação suave, silêncio absoluto, cheiro de café fresco e desinfetante leve.
Há uma calma artificial ali, quase perfeita, que me faz esquecer o caos do mundo lá fora.
Às vezes, penso que me tornei um homem que vive de aparências.
De terno impecável, expressão neutra, fala contida.
Mas por dentro, há um deserto.
E é curioso como as pessoas olham para mim e veem estabilidade, quando o que eu carrego é apenas cansaço.
Minha secretária, Marta, costuma dizer que eu preciso de férias.
Sorrio, apenas.
Não há destino capaz de curar aquilo que viaja comigo.
Nos raros momentos em que não estou trabalhando, gosto de dirigir sem rumo.
Pego a estrada à noite, coloco uma música instrumental qualquer e deixo os faróis cortarem o escuro.
É o único instante em que me sinto livre, porque não preciso ser nada além de um homem no volante.
Sem expectativas, sem passado, sem futuro.
Apenas o agora — e o som do motor.
Já faz anos que não falo sobre Helena com ninguém.
As pessoas têm medo de tocar no assunto, e eu as deixo acreditar que é melhor assim.
Mas a verdade é que há algo de c***l em não poder lembrar.
É como se o silêncio apagasse a existência dela pouco a pouco, até restar apenas um nome, uma sombra.
Certa noite, voltei para casa depois de um plantão de doze horas.
A chuva caía pesada, e o som das gotas batendo nas janelas parecia ecoar dentro de mim.
Sentei-me no sofá, ainda de terno, e fiquei ali, olhando para o nada.
A televisão ligada sem som, a xícara de café fria nas mãos.
Foi quando percebi que fazia anos que ninguém me esperava acordado.
E que a solidão havia deixado de ser visitante — ela morava ali comigo.
É curioso como a dor se adapta.
No começo, ela grita.
Depois, aprende a sussurrar, até que um dia você se acostuma à presença dela como quem se acostuma a uma cicatriz.
De vez em quando, ainda arde.
Mas já não sangra.
Eu me tornei especialista em esconder o que sinto.
A perfeição das coisas ao meu redor é meu disfarce.
Cada detalhe ordenado, cada decisão pensada, cada palavra medida.
As pessoas confundem isso com equilíbrio.
Mas a verdade é que se eu parar, desabo.
Ainda assim, há algo em mim que não morreu.
Um resquício de humanidade, talvez.
Uma fagulha que insiste em existir, mesmo que eu tente sufocá-la.
E, por mais que eu negue, há uma parte de mim que ainda espera — mesmo sem saber o quê.
Naquela noite, adormeci no sofá, com o som da chuva como trilha.
E, pela primeira vez em muito tempo, sonhei com Helena.
Ela estava de branco, sorrindo, e dizia que a vida ainda me devia uma segunda chance.
Acordei com o coração acelerado e uma estranha sensação de paz.
Não sou do tipo que acredita em sinais, mas algo naquela lembrança me acompanhou pelos dias seguintes.
Como se fosse o prelúdio de algo novo — algo que eu ainda não conseguia compreender.
Mal sabia eu que o destino, paciente e silencioso, já preparava o reencontro com a vida — e com tudo o que eu julgava adormecido dentro de mim.