Conselheiro

1165 Words
O relógio do painel marcava quase nove da noite quando estacionei diante do prédio de Nathan. O carro ainda exibia a marca discreta do amassado na traseira — o tipo de detalhe que passaria despercebido pra qualquer um, menos pra ele. Eu podia imaginar o sarcasmo antes mesmo de ouvir. Subi os degraus devagar, o cansaço da tarde ainda pesando nos ombros. Nathan morava num apartamento espaçoso, no alto de um edifício moderno, com vista pra cidade e uma bagunça que desafiava as leis da física. Toquei a campainha uma vez. A porta se abriu segundos depois, e ele apareceu — descalço, camiseta preta, copo de uísque na mão e aquele sorriso de quem já aprontou alguma. — Santo Deus — disse, antes mesmo de me cumprimentar. — Não acredito que o doutor perfeição veio aqui sem agendar horário. — Boa noite pra você também. — Boa noite é o mínimo, considerando que você estacionou um carro amassado na frente do meu prédio. Eu vi tudo — Ele gesticulou com o copo. — Me diga que é um dublê, que o verdadeiro Leonardo tá em casa lendo relatórios. — Não, infelizmente sou eu. Ele passou por mim, indo direto pra janela. — Posso ver? — É só um arranhão. — Arranhão? — Nathan inclinou o corpo, tentando enxergar. — Leonardo, aquilo é um poema sobre descuido. O que aconteceu? Suspirei. — Um acidente. — Acidente? — Ele me olhou como se eu tivesse confessado um crime. — Você, o homem que não ultrapassa nem em linha pontilhada, se envolveu num acidente? — Sim. — Ok, agora preciso sentar. — Ele se jogou no sofá, rindo. — Me conta devagar, sem metáforas médicas. Sentei na poltrona oposta, tentando encontrar as palavras certas. Mas Nathan era Nathan — e eu sabia que, no fim, ele transformaria qualquer coisa em espetáculo. — Eu estava no trânsito — comecei. — Um carro bateu na minha traseira. — Certo. — Ele ergueu o dedo. — Primeiro: graças aos céus você está bem. Segundo: quem é o infeliz que ousou bater no seu carro? — Manuela Vasconcelos. O copo parou a meio caminho da boca dele. — O quê? — A mulher do leilão. Houve um segundo de silêncio. Depois, ele riu. Riu tanto que o uísque quase caiu do copo. — Isso é genial! — exclamou, entre gargalhadas. — Meu Deus, Leo, você tá num roteiro de cinema! — Eu quase tive um ataque cardíaco, Nathan. — Não importa! — Ele levantou, gesticulando com entusiasmo. — Ela bateu no seu carro! Você entende o que isso significa? — Que eu preciso levar pra oficina. — Não, i****a! — Ele apontou pra mim. — Significa que o universo te deu uma segunda chance com estilo! — Nathan, ela estava chorando. — E daí? Mulher chorando é o prelúdio de toda boa história de amor! Revirei os olhos. — Não foi nada romântico. Ela estava abalada. — Abalada… — Ele estreitou os olhos. — Abalada como? — Pessoalmente. Tinha saído de um encontro horrível. — O cara fez alguma coisa? — Disse coisas piores do que fez. A humilhou. Nathan ficou sério por um momento, balançando a cabeça. — Que tipo de i****a faz isso o com uma mulher como ela? — O tipo de i****a que acha que enganar é sinônimo de poder. — Canalha. — Ele se serviu de mais uísque, ainda indignado. — E aí? O que você fez? — Levei-a pra tomar um café. — Claro que levou. — Ele riu, voltando a seu humor habitual. — Leonardo Duarte, o cavaleiro do século XXI. Aposto que você até abriu a porta pra ela, ofereceu lenço, pagou a conta e deu um sermão de moral. — Eu só tentei ajudá-la a se acalmar. — Ajudar, é? — Ele arqueou a sobrancelha. — Tradução: você está completamente envolvido e não quer admitir. — Eu não estou “envolvido”. — Ah, não? Então por que veio aqui, no meio da noite, pra me contar? Não respondi. Nathan sorriu, vitorioso. — Exatamente. — Sentou-se de novo, animado. — Ok, precisamos traçar uma estratégia. — Estratégia? — Sim, plano de aproximação. O destino já fez a parte difícil, agora cabe a você não estragar. — Eu não vou “aproximar” de ninguém, Nathan. — Claro que vai. — Ele contou nos dedos. — Primeiro: você é um homem inteligente, charmoso e bem-sucedido. Segundo: ela claramente confia em você. Terceiro: ela acabou de ser enganada por um i****a. Logo, a presença de um homem decente será um bálsamo. — Eu não quero ser o bálsamo de ninguém. — Não diga isso, soa ingrato com o universo. — O universo não tem nada a ver com isso. — Ah, tem sim. — Ele sorriu. — E se você não fizer nada, ele vai te punir com outro acidente, e aí quem vai bater no seu carro sou eu. Não contive o riso. Nathan era impossível de levar a sério, mas, de algum modo, sempre conseguia diminuir o peso das coisas. — Você devia escrever autoajuda — comentei. — Eu prefiro praticar — respondeu, com uma piscada. — Mas, sério, Leo… quando foi a última vez que você se interessou de verdade por alguém? — Isso é irrelevante. — Relevante pra mim, que te vejo vivendo como um fantasma. — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos. — Você passou anos se escondendo atrás de consultórios e contratos. A vida te dá uma mulher incrível, e você quer devolver? — Ela está vulnerável. — E você está lúcido. Excelente combinação. — Nathan, eu não quero me aproveitar da dor de ninguém. — Ninguém está falando em aproveitar. — Ele levantou o copo. — Estou falando de cuidar. Às vezes, cuidar é a forma mais bonita de se aproximar. Fiquei em silêncio. Ele me observou por um momento, depois deu um sorriso leve. — Eu sei, você vai negar até o fim. Mas quer saber? Não precisa decidir nada agora. Só… não fuja se ela aparecer de novo. — Aparecer? — Ela vai. — Ele deu um gole no uísque. — E quando isso acontecer, tenta não racionalizar demais. Às vezes, a vida só quer que a gente diga “sim”. Levantei-me, pegando o casaco. — Você devia beber menos. — E você devia viver mais. Sorri, apesar de mim. — Boa noite, Nathan. — Boa noite, doutor destino. E, por favor, deixa o carro amassado como está. Pode ser seu novo amuleto da sorte. Saí rindo, balançando a cabeça. Do lado de fora, o ar estava fresco, o céu ainda úmido da chuva. Olhei pro carro e, pela primeira vez, o amassado não me incomodou. Talvez Nathan tivesse razão. Talvez aquele pequeno acidente tivesse sido, de fato, uma forma estranha de sorte. E, enquanto dirigia de volta pra casa, pensei que havia algo inevitável naquela história. Algo que o controle não podia evitar — e que, no fundo, talvez eu nem quisesse.
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