Cartas

792 Words
A quarta-feira começou igual a todas as outras: pacientes, prontuários, relatórios. O tipo de dia que passa sem deixar marcas, com o mesmo roteiro de sempre — até o imprevisto decidir me visitar de novo. Marta entrou no consultório segurando uma caixa envolta em papel azul escuro e uma fita prateada. — Doutor Duarte, isso chegou pra o senhor — disse, pousando o pacote sobre a mesa com um sorriso curioso. — Foi entregue por um motoboy há pouco. — Quem enviou? — Não tinha remetente na etiqueta, só um cartão dentro. Agradeci, esperando que fosse algo corporativo — uma lembrança de fornecedor, talvez. Mas, ao abrir, percebi o cuidado. O perfume suave de lavanda, o embrulho dobrado com perfeição, o toque pessoal que não pertence a empresas. Dentro, uma garrafa de vinho tinto — francês, safra rara — e um pequeno cartão branco, com caligrafia feminina. > “Leonardo, obrigada por ter parado o tempo naquela tarde e transformado um desastre em calmaria. A conversa me fez bem, mais do que imaginei. Espero que aceite este vinho como um simples gesto de gratidão. Ah, e quanto ao carro, por favor me deixe cuidar do conserto. É o mínimo que posso fazer. — Manuela.” A última linha trazia um número de telefone. No canto inferior, um logotipo discreto: “Vasconcelos Maison – Estética e Bem-Estar”, seguido do endereço e site. Fechei o cartão devagar. O gesto dela era elegante, pessoal na medida certa — sem exageros, sem expectativa, apenas um traço de gentileza. Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me fez sorrir. Marta, claro, observava com a curiosidade de sempre. — Vinho francês? — perguntou, inclinando-se. — E com cartão escrito à mão? — Presente de uma amiga. — Ah... — ela sorriu, satisfeita. — Uma amiga com bom gosto. Assenti, tentando esconder o quanto aquele gesto me havia desestabilizado. Guardei o cartão dentro do paletó, junto ao bolso interno — onde ficam as coisas que não quero perder. Durante o resto do dia, o pensamento insistia em voltar àquela caligrafia, ao tom leve das palavras. E, quando a tarde caiu, eu me peguei digitando o número que ela havia deixado. A tela do celular mostrou uma conta comercial. Manuela Vasconcelos – Vasconcelos Maison. Foto de perfil: ela de costas, em uma sacada, o sol refletindo nos cabelos dourados. Abaixo, o endereço da empresa e o site. Por um momento, fiquei ali, olhando. O impulso natural seria responder, agradecer, continuar o gesto. Mas algo em mim queria mais do que uma mensagem impessoal. Manuela era o tipo de mulher que merecia gestos, não atalhos. Peguei o telefone da secretária e pedi uma ligação rápida. — Marta, preciso que envie um buquê de flores amanhã cedo. — — Flores? — perguntou, surpresa. — De que tipo? — Algo clássico, sem exagero. Lírios brancos e rosas champagne. — E o cartão? Pensei por alguns segundos. — Escreva: > “O pagamento foi a presença agradável. Não se preocupe com o carro.” — Leonardo Duarte. E acrescente meu número pessoal. Marta anotou, tentando esconder o sorriso. — É... refinado. — É sincero. Quando desliguei, fiquei por um instante olhando para o vinho sobre a mesa. Era curioso como pequenos gestos podiam mudar o ritmo de um dia inteiro. Aquela mulher — que até pouco tempo era apenas um rosto entre tantos — agora se tornava uma presença mesmo à distância. Na manhã seguinte, o sol entrou tímido pela janela do consultório. Entre uma consulta e outra, a lembrança do buquê que mandei se infiltrava no pensamento como uma expectativa que eu não admitia. Imaginei a cena: ela chegando ao trabalho, o cheiro das flores, o bilhete simples. Não era flerte. Não era conquista. Era só reciprocidade — o tipo de gentileza rara que se reconhece de longe. À tarde, entre um atendimento e outro, o celular vibrou discretamente sobre a mesa. Mensagem nova. Remetente: Manuela Vasconcelos. Abri. > “Leonardo, o buquê chegou. As flores são lindas — e o bilhete… ouso dizer, ainda mais elegante que o vinho. Está me deixando em desvantagem. Obrigada. — M.” Li mais de uma vez, talvez três. Depois, apenas deixei o celular sobre a mesa, e percebi que sorria sem motivo aparente. Nathan diria que era o começo da rendição. Mas, no fundo, parecia algo mais simples: o reconhecimento de que havia alguém, em algum lugar, pensando em mim na mesma medida em que eu pensava nela. O mundo voltou a girar na mesma velocidade de sempre, mas o dia já não tinha o mesmo som. E, pela primeira vez em muitos anos, percebi que um gesto pequeno podia ser o início de algo grande — mesmo quando disfarçado de coincidência.
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