A quarta-feira começou igual a todas as outras: pacientes, prontuários, relatórios.
O tipo de dia que passa sem deixar marcas, com o mesmo roteiro de sempre — até o imprevisto decidir me visitar de novo.
Marta entrou no consultório segurando uma caixa envolta em papel azul escuro e uma fita prateada.
— Doutor Duarte, isso chegou pra o senhor — disse, pousando o pacote sobre a mesa com um sorriso curioso. — Foi entregue por um motoboy há pouco.
— Quem enviou?
— Não tinha remetente na etiqueta, só um cartão dentro.
Agradeci, esperando que fosse algo corporativo — uma lembrança de fornecedor, talvez.
Mas, ao abrir, percebi o cuidado.
O perfume suave de lavanda, o embrulho dobrado com perfeição, o toque pessoal que não pertence a empresas.
Dentro, uma garrafa de vinho tinto — francês, safra rara — e um pequeno cartão branco, com caligrafia feminina.
> “Leonardo,
obrigada por ter parado o tempo naquela tarde e transformado um desastre em calmaria.
A conversa me fez bem, mais do que imaginei.
Espero que aceite este vinho como um simples gesto de gratidão.
Ah, e quanto ao carro, por favor me deixe cuidar do conserto.
É o mínimo que posso fazer.
— Manuela.”
A última linha trazia um número de telefone.
No canto inferior, um logotipo discreto: “Vasconcelos Maison – Estética e Bem-Estar”, seguido do endereço e site.
Fechei o cartão devagar.
O gesto dela era elegante, pessoal na medida certa — sem exageros, sem expectativa, apenas um traço de gentileza.
Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me fez sorrir.
Marta, claro, observava com a curiosidade de sempre.
— Vinho francês? — perguntou, inclinando-se. — E com cartão escrito à mão?
— Presente de uma amiga.
— Ah... — ela sorriu, satisfeita. — Uma amiga com bom gosto.
Assenti, tentando esconder o quanto aquele gesto me havia desestabilizado.
Guardei o cartão dentro do paletó, junto ao bolso interno — onde ficam as coisas que não quero perder.
Durante o resto do dia, o pensamento insistia em voltar àquela caligrafia, ao tom leve das palavras.
E, quando a tarde caiu, eu me peguei digitando o número que ela havia deixado.
A tela do celular mostrou uma conta comercial.
Manuela Vasconcelos – Vasconcelos Maison.
Foto de perfil: ela de costas, em uma sacada, o sol refletindo nos cabelos dourados.
Abaixo, o endereço da empresa e o site.
Por um momento, fiquei ali, olhando.
O impulso natural seria responder, agradecer, continuar o gesto.
Mas algo em mim queria mais do que uma mensagem impessoal.
Manuela era o tipo de mulher que merecia gestos, não atalhos.
Peguei o telefone da secretária e pedi uma ligação rápida.
— Marta, preciso que envie um buquê de flores amanhã cedo. —
— Flores? — perguntou, surpresa. — De que tipo?
— Algo clássico, sem exagero. Lírios brancos e rosas champagne.
— E o cartão?
Pensei por alguns segundos.
— Escreva:
> “O pagamento foi a presença agradável.
Não se preocupe com o carro.”
— Leonardo Duarte.
E acrescente meu número pessoal.
Marta anotou, tentando esconder o sorriso.
— É... refinado.
— É sincero.
Quando desliguei, fiquei por um instante olhando para o vinho sobre a mesa.
Era curioso como pequenos gestos podiam mudar o ritmo de um dia inteiro.
Aquela mulher — que até pouco tempo era apenas um rosto entre tantos — agora se tornava uma presença mesmo à distância.
Na manhã seguinte, o sol entrou tímido pela janela do consultório.
Entre uma consulta e outra, a lembrança do buquê que mandei se infiltrava no pensamento como uma expectativa que eu não admitia.
Imaginei a cena: ela chegando ao trabalho, o cheiro das flores, o bilhete simples.
Não era flerte.
Não era conquista.
Era só reciprocidade — o tipo de gentileza rara que se reconhece de longe.
À tarde, entre um atendimento e outro, o celular vibrou discretamente sobre a mesa.
Mensagem nova.
Remetente: Manuela Vasconcelos.
Abri.
> “Leonardo,
o buquê chegou.
As flores são lindas — e o bilhete… ouso dizer, ainda mais elegante que o vinho.
Está me deixando em desvantagem.
Obrigada.
— M.”
Li mais de uma vez, talvez três.
Depois, apenas deixei o celular sobre a mesa, e percebi que sorria sem motivo aparente.
Nathan diria que era o começo da rendição.
Mas, no fundo, parecia algo mais simples: o reconhecimento de que havia alguém, em algum lugar, pensando em mim na mesma medida em que eu pensava nela.
O mundo voltou a girar na mesma velocidade de sempre, mas o dia já não tinha o mesmo som.
E, pela primeira vez em muitos anos, percebi que um gesto pequeno podia ser o início de algo grande — mesmo quando disfarçado de coincidência.