A música agora era apenas um eco distante, uma melodia suave que servia de moldura para o silêncio confortável que se formava entre nós.
O salão, antes repleto de vozes e aplausos, começava a se esvaziar.
Pares elegantes caminhavam em direção à saída, garçons recolhiam taças e guardanapos de linho, e o relógio marcava uma hora em que o mundo lá fora já dormia.
Mas ali, diante do balcão de madeira escura, o tempo parecia suspenso.
Manuela girava lentamente o copo nas mãos, observando o líquido dourado como se estudasse o reflexo das luzes.
— Engraçado — disse ela, após um breve silêncio. — Eu venho a esses eventos há anos, e nunca reparei em quanto eles são… repetitivos.
— O altruísmo também tem suas rotinas — respondi. — Cada gala tem seu público fiel, seu discurso e suas taças de champanhe.
Ela riu, e o som foi leve, quase íntimo.
— E ainda assim, algo diferente aconteceu hoje.
— A senhora se refere à disputa no leilão?
— “Senhora” me faz sentir na fila de um banco — interrompeu ela, sorrindo. — Prefiro Manuela.
— Tudo bem… Manuela. — Deixei o nome dela escapar devagar, testando o som na minha voz.
Ela pareceu perceber.
— E o senhor? — perguntou. — Leonardo Duarte… o médico, o empresário. Já o ouvi mencionado em algumas entrevistas, mas confesso que o homem por trás dos artigos é bem mais… intrigante.
— Intrigante pode significar muitas coisas.
— No seu caso, significa que é difícil entender onde termina a racionalidade e começa o mistério.
Sorri.
— Mistério é apenas silêncio m*l interpretado.
— Ou uma forma de controle.
— Está me analisando?
— Velho hábito — respondeu. — Trabalho com pessoas há tanto tempo que às vezes esqueço de desligar essa curiosidade natural.
— Trabalha com moda, não é?
— Com mulheres — corrigiu ela, divertida. — Dirijo uma rede de clínicas e lojas voltadas à estética e bem-estar. Sempre gostei de ver o poder que uma mulher tem quando se sente confiante. A moda é só a ferramenta.
— Interessante. — Inclinei a cabeça. — Então, de certo modo, seu trabalho também é terapêutico.
— Exatamente. — Os olhos dela brilharam por um instante. — A diferença é que meus pacientes saem de salto alto e batom.
Rimos juntos.
O riso dela era natural, sem o tom forçado que dominava o salão momentos antes.
Era o tipo de som que tornava o ambiente mais leve sem precisar de esforço.
Ela me observou em silêncio por alguns segundos.
— E o senhor? Quero dizer… o Leonardo sem terno, sem o crachá de médico, sem os leilões beneficentes. O que sobra?
A pergunta me pegou desprevenido.
Pensei antes de responder.
— Trabalho demais, leio pouco, durmo m*l. Tenho uma casa grande demais pra um homem só. E às vezes, dirijo à noite sem destino.
— Isso soa poético e triste ao mesmo tempo.
— A vida tem suas ironias.
Ela inclinou o corpo, apoiando o queixo na mão.
— E nunca pensou em mudar o roteiro?
— Mudar exige vontade. Eu aprendi a sobreviver bem dentro do meu.
— Isso é o que dizem os homens que ainda estão se recuperando de alguma perda.
O olhar dela encontrou o meu, firme, sem curiosidade invasiva — apenas compreensão.
Respirei fundo.
— Talvez tenha razão.
— Talvez?
— Digamos que sou especialista em evitar o que me tira o controle.
Ela sorriu de novo, como se entendesse mais do que eu estava disposto a admitir.
— Controle é bom. Mas, às vezes, é no imprevisto que a vida volta a fazer sentido.
— E a senhora costuma deixar o imprevisto decidir por você?
— Às vezes. — Ela girou a taça mais uma vez. — Quando o instinto fala mais alto, costumo ouvi-lo.
O silêncio voltou, e dessa vez não era desconfortável.
Havia algo no ar — uma espécie de trégua entre duas solidões que se reconheciam.
O relógio marcava quase meia-noite, mas o tempo parecia dilatado.
Ela brincava com o anel no dedo.
— É curioso — disse —, mas achei que esse evento seria igual a todos os outros.
— E não foi?
— Não. — Ela ergueu os olhos. — Teve uma disputa inesperada, um vencedor generoso e uma conversa agradável no final.
— Parece um bom resumo da noite.
— Ou o começo dela.
O comentário pairou entre nós, carregado de algo que nenhum dos dois nomeou.
Ela se recostou no banco alto, observando o salão.
As mesas estavam vazias, os garçons recolhiam as últimas garrafas.
A orquestra se despedia com um último acorde.
— Acho que fomos os últimos a perceber que a festa acabou — comentou, divertida.
— Ou os únicos que ainda estavam aproveitando.
— Prefiro a segunda opção. — Ela deslizou o olhar de volta pra mim. — E, se não se importa, vou acreditar que foi o acaso que me trouxe até o bar na hora certa.
— Eu não costumo discutir com o destino.
— Ainda bem. — O sorriso dela era calmo, mas havia faísca nos olhos. — Gosto de homens que sabem quando não discutir.
Deixei escapar um riso contido.
— E costuma encontrar muitos assim?
— Quase nunca. — Ela se levantou, ajustando o vestido com um movimento gracioso. — Mas admito que quando encontro, gosto de ver até onde o autocontrole deles vai.
Havia desafio no tom — sutil, elegante, mas inegável.
Ela sabia jogar, e eu, por algum motivo, não queria encerrar o jogo.
— Cuidado — disse, ainda sentado. — Provocar pode ser perigoso.
— Só se o outro lado não souber reagir. — Ela parou ao meu lado, apoiando-se de leve no balcão. — O senhor parece saber.
O salão agora estava quase vazio.
O bar, iluminado apenas pelas luzes baixas, refletia tons dourados na pele dela.
Por um instante, pensei em dizer algo, qualquer coisa, só para prolongar aquele momento.
Mas ela quebrou o silêncio primeiro.
— Obrigada pela conversa, doutor Duarte. — O jeito como pronunciou meu nome soou mais pessoal do que formal. — Foi… inesperadamente agradável.
— O prazer foi meu, Manuela.
Ela sorriu, aquele mesmo sorriso enigmático que carregava desde o início da noite.
— Tenho a sensação de que ainda vamos nos ver por aí.
E antes que eu pudesse responder, ela se afastou, o som dos saltos ecoando sobre o piso de mármore.
O perfume dela ficou — discreto, persistente, impossível de ignorar.
Fiquei ali, observando enquanto ela desaparecia entre as luzes do saguão, e pela primeira vez em muitos anos, percebi que algo em mim tinha despertado.
Não era paixão, nem desejo imediato.
Era curiosidade — genuína, intensa, incontrolável.
E eu, que sempre soube lidar com o controle, percebi que, naquela noite, ele começava a escapar silenciosamente pelas mãos.