Manuela

1141 Words
A música agora era apenas um eco distante, uma melodia suave que servia de moldura para o silêncio confortável que se formava entre nós. O salão, antes repleto de vozes e aplausos, começava a se esvaziar. Pares elegantes caminhavam em direção à saída, garçons recolhiam taças e guardanapos de linho, e o relógio marcava uma hora em que o mundo lá fora já dormia. Mas ali, diante do balcão de madeira escura, o tempo parecia suspenso. Manuela girava lentamente o copo nas mãos, observando o líquido dourado como se estudasse o reflexo das luzes. — Engraçado — disse ela, após um breve silêncio. — Eu venho a esses eventos há anos, e nunca reparei em quanto eles são… repetitivos. — O altruísmo também tem suas rotinas — respondi. — Cada gala tem seu público fiel, seu discurso e suas taças de champanhe. Ela riu, e o som foi leve, quase íntimo. — E ainda assim, algo diferente aconteceu hoje. — A senhora se refere à disputa no leilão? — “Senhora” me faz sentir na fila de um banco — interrompeu ela, sorrindo. — Prefiro Manuela. — Tudo bem… Manuela. — Deixei o nome dela escapar devagar, testando o som na minha voz. Ela pareceu perceber. — E o senhor? — perguntou. — Leonardo Duarte… o médico, o empresário. Já o ouvi mencionado em algumas entrevistas, mas confesso que o homem por trás dos artigos é bem mais… intrigante. — Intrigante pode significar muitas coisas. — No seu caso, significa que é difícil entender onde termina a racionalidade e começa o mistério. Sorri. — Mistério é apenas silêncio m*l interpretado. — Ou uma forma de controle. — Está me analisando? — Velho hábito — respondeu. — Trabalho com pessoas há tanto tempo que às vezes esqueço de desligar essa curiosidade natural. — Trabalha com moda, não é? — Com mulheres — corrigiu ela, divertida. — Dirijo uma rede de clínicas e lojas voltadas à estética e bem-estar. Sempre gostei de ver o poder que uma mulher tem quando se sente confiante. A moda é só a ferramenta. — Interessante. — Inclinei a cabeça. — Então, de certo modo, seu trabalho também é terapêutico. — Exatamente. — Os olhos dela brilharam por um instante. — A diferença é que meus pacientes saem de salto alto e batom. Rimos juntos. O riso dela era natural, sem o tom forçado que dominava o salão momentos antes. Era o tipo de som que tornava o ambiente mais leve sem precisar de esforço. Ela me observou em silêncio por alguns segundos. — E o senhor? Quero dizer… o Leonardo sem terno, sem o crachá de médico, sem os leilões beneficentes. O que sobra? A pergunta me pegou desprevenido. Pensei antes de responder. — Trabalho demais, leio pouco, durmo m*l. Tenho uma casa grande demais pra um homem só. E às vezes, dirijo à noite sem destino. — Isso soa poético e triste ao mesmo tempo. — A vida tem suas ironias. Ela inclinou o corpo, apoiando o queixo na mão. — E nunca pensou em mudar o roteiro? — Mudar exige vontade. Eu aprendi a sobreviver bem dentro do meu. — Isso é o que dizem os homens que ainda estão se recuperando de alguma perda. O olhar dela encontrou o meu, firme, sem curiosidade invasiva — apenas compreensão. Respirei fundo. — Talvez tenha razão. — Talvez? — Digamos que sou especialista em evitar o que me tira o controle. Ela sorriu de novo, como se entendesse mais do que eu estava disposto a admitir. — Controle é bom. Mas, às vezes, é no imprevisto que a vida volta a fazer sentido. — E a senhora costuma deixar o imprevisto decidir por você? — Às vezes. — Ela girou a taça mais uma vez. — Quando o instinto fala mais alto, costumo ouvi-lo. O silêncio voltou, e dessa vez não era desconfortável. Havia algo no ar — uma espécie de trégua entre duas solidões que se reconheciam. O relógio marcava quase meia-noite, mas o tempo parecia dilatado. Ela brincava com o anel no dedo. — É curioso — disse —, mas achei que esse evento seria igual a todos os outros. — E não foi? — Não. — Ela ergueu os olhos. — Teve uma disputa inesperada, um vencedor generoso e uma conversa agradável no final. — Parece um bom resumo da noite. — Ou o começo dela. O comentário pairou entre nós, carregado de algo que nenhum dos dois nomeou. Ela se recostou no banco alto, observando o salão. As mesas estavam vazias, os garçons recolhiam as últimas garrafas. A orquestra se despedia com um último acorde. — Acho que fomos os últimos a perceber que a festa acabou — comentou, divertida. — Ou os únicos que ainda estavam aproveitando. — Prefiro a segunda opção. — Ela deslizou o olhar de volta pra mim. — E, se não se importa, vou acreditar que foi o acaso que me trouxe até o bar na hora certa. — Eu não costumo discutir com o destino. — Ainda bem. — O sorriso dela era calmo, mas havia faísca nos olhos. — Gosto de homens que sabem quando não discutir. Deixei escapar um riso contido. — E costuma encontrar muitos assim? — Quase nunca. — Ela se levantou, ajustando o vestido com um movimento gracioso. — Mas admito que quando encontro, gosto de ver até onde o autocontrole deles vai. Havia desafio no tom — sutil, elegante, mas inegável. Ela sabia jogar, e eu, por algum motivo, não queria encerrar o jogo. — Cuidado — disse, ainda sentado. — Provocar pode ser perigoso. — Só se o outro lado não souber reagir. — Ela parou ao meu lado, apoiando-se de leve no balcão. — O senhor parece saber. O salão agora estava quase vazio. O bar, iluminado apenas pelas luzes baixas, refletia tons dourados na pele dela. Por um instante, pensei em dizer algo, qualquer coisa, só para prolongar aquele momento. Mas ela quebrou o silêncio primeiro. — Obrigada pela conversa, doutor Duarte. — O jeito como pronunciou meu nome soou mais pessoal do que formal. — Foi… inesperadamente agradável. — O prazer foi meu, Manuela. Ela sorriu, aquele mesmo sorriso enigmático que carregava desde o início da noite. — Tenho a sensação de que ainda vamos nos ver por aí. E antes que eu pudesse responder, ela se afastou, o som dos saltos ecoando sobre o piso de mármore. O perfume dela ficou — discreto, persistente, impossível de ignorar. Fiquei ali, observando enquanto ela desaparecia entre as luzes do saguão, e pela primeira vez em muitos anos, percebi que algo em mim tinha despertado. Não era paixão, nem desejo imediato. Era curiosidade — genuína, intensa, incontrolável. E eu, que sempre soube lidar com o controle, percebi que, naquela noite, ele começava a escapar silenciosamente pelas mãos.
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