A segunda-feira amanheceu com o céu pesado, de um cinza que parecia refletir o cansaço do fim de semana.
O som constante da chuva contra os vidros do quarto me serviu de despertador.
Abri os olhos antes mesmo do alarme tocar — o corpo fiel à disciplina, mesmo quando a mente parecia distante.
Fazia tempo que uma noite não me deixava tão... inquieto.
Não no sentido comum da palavra, mas em algo mais sutil, mais silencioso.
Aquela conversa no bar ainda ressoava dentro de mim — não pelas palavras, mas pelo que ficou nas entrelinhas.
O som do riso dela, o olhar demorado, o modo como pronunciou meu nome.
“Tenho a sensação de que ainda vamos nos ver por aí.”
A frase voltou à memória com nitidez, como se tivesse sido dita segundos atrás.
Não era comum que alguém deixasse esse tipo de impressão em mim.
E, justamente por isso, era incômodo.
Levantei, seguindo o mesmo roteiro de sempre: café preto, camisa branca, silêncio.
Mas, enquanto ajustava a gravata diante do espelho, percebi que havia algo diferente no reflexo.
Não era a aparência — era o olhar.
Um vestígio de curiosidade, talvez.
Ou apenas o reconhecimento de que, por uma noite, eu tinha esquecido de ser o homem que vive no controle.
No hospital, o dia corria dentro da normalidade.
Pacientes, diagnósticos, conversas.
O tipo de rotina que costuma me absorver completamente, mas que agora parecia funcionar como um pano de fundo.
Eu ouvia as pessoas, respondia, prescrevia, mas uma parte de mim estava em outro lugar — no salão iluminado, no perfume leve de jasmim, na voz que soava como música.
Durante o intervalo, sentei-me no escritório anexo ao consultório.
Marta entrou com alguns relatórios em mãos.
— O senhor parece cansado — observou, colocando os papéis sobre a mesa.
— Noite longa — respondi.
— O evento, não é? Vi as fotos no site do hospital. — Ela sorriu, animada. — O senhor foi aplaudido de pé!
Revirei o olhar.
— Faz parte da encenação.
— Encenação ou não, ficou ótimo na foto. — Ela me mostrou a tela do celular: eu no centro da imagem, palmas ao redor, e ela — Manuela — no fundo, sorrindo.
— Quem é a mulher de vermelho? — perguntou Marta. — Linda, não?
Fechei o semblante antes de responder.
— Uma das doadoras.
— Ah... — ela disse, em tom curioso. — Parece que ela estava olhando para o senhor.
— Deve ser impressão sua.
Ela riu, balançando a cabeça.
— O senhor devia sorrir mais, doutor. Fica mais humano.
— Humanos cometem erros demais — retruquei, encerrando o assunto.
Ela entendeu o limite e se retirou.
Fiquei sozinho, olhando por alguns segundos para a foto antes de apagá-la da mente.
Mas, por mais que tentasse, não conseguia negar o fato: havia algo em Manuela Vasconcelos que me deixara em estado de alerta.
No final do dia, fui até o prédio da empresa.
Precisava assinar contratos e revisar relatórios de segurança.
Tudo estava em ordem, como sempre.
Mas a eficiência do sistema contrastava com o caos discreto dentro da minha cabeça.
Não era comum que alguém ultrapassasse as defesas que eu construí.
E, no entanto, bastaram algumas horas de conversa para que aquela mulher ocupasse mais espaço do que deveria.
Enquanto observava a cidade pela janela, a porta se abriu sem aviso.
Nathan entrou, com o mesmo sorriso de quem nunca leva nada a sério.
— Vim verificar se o homem de ferro ainda está de pé — anunciou, jogando o guarda-chuva encharcado no canto. — Chove lá fora, mas parece que o sol te visitou por dentro.
— O que quer dizer com isso?
— Que faz tempo que não te vejo tão... distraído.
— Estou apenas cansado.
— Cansado ou pensando em alguém?
Não respondi.
Nathan sorriu.
— Ah, ótimo. Silêncio confirmativo. Então é alguém.
— Você está imaginando demais.
— E você, negando de menos. — Ele se sentou na cadeira à frente da mesa. — Conta, Leonardo. A mulher de vermelho — ela existe mesmo ou foi minha imaginação?
Suspirei, passando a mão no rosto.
— O que exatamente quer saber?
— Tudo. — Ele apoiou o queixo na mão. — Você ficou com ela?
— Claro que não.
— Mas conversou.
— Sim.
— E?
— E nada. Foi apenas uma conversa.
— Uma conversa que te deixou assim? — Ele apontou pra mim, com um gesto teatral. — Com esse olhar de quem ouviu música e não consegue mais desligar.
Ri, sem vontade.
— Você é insuportável.
— E você é péssimo mentiroso. — Nathan riu. — Ela mexeu com você, não é?
— Não conheço essa mulher.
— Às vezes, é exatamente por isso que elas mexem.
Fiquei em silêncio, olhando para o copo de café sobre a mesa.
Nathan me observava como quem estuda um animal raro.
— Faz quanto tempo que não sente isso, Leo?
— Isso o quê?
— Essa inquietação. Esse interesse. Essa curiosidade que você finge não ter.
— Não sei.
— Eu sei. Desde Helena.
O nome dela cortou o ar.
Nathan percebeu o peso e mudou o tom.
— Não estou dizendo que é igual — falou, mais calmo. — Só acho que, talvez, seja bom deixar o coração lembrar que ainda funciona.
— E você acha que eu deveria... o quê? Procurá-la?
— Eu acho que você deveria parar de correr de si mesmo. — Ele sorriu. — Se o destino te colocou diante de uma mulher interessante, pelo menos descubra o nome completo antes de fugir.
— Já sei o nome.
— Então comece por aí.
Olhei pra ele com um misto de irritação e gratidão.
Nathan tinha o talento raro de dizer as coisas certas do jeito errado.
Mas, naquela noite, o incômodo que suas palavras deixaram era o mesmo que a voz dela havia deixado dois dias antes.
Depois que ele foi embora, fiquei mais algum tempo no escritório, com as luzes apagadas e o som distante da chuva batendo no vidro.
Pensei nela.
Em como era raro encontrar alguém que falasse com tanta leveza e, ao mesmo tempo, deixasse o ar mais denso.
Em como o destino parecia brincar comigo, oferecendo exatamente o tipo de desafio que eu sempre evitei.
E, pela primeira vez em muito tempo, percebi que estava curioso.
Curioso pra saber se ela também pensava em mim.
Curioso pra descobrir o que havia por trás daquele olhar calmo e da voz que parecia esconder mais do que dizia.
Talvez fosse apenas curiosidade.
Ou talvez, sem perceber, algo em mim já estivesse se movendo — lento, inevitável, perigoso.
A chuva continuava lá fora, insistente, lavando a cidade.
E eu, encostado na janela, percebi que a lembrança dela já era um som que eu não conseguia mais silenciar.