O relógio marcava pouco mais de sete da manhã quando Bela abriu os olhos. O quarto em que estava era amplo, diferente de tudo que já conhecera dentro da comunidade. A cama era grande, coberta por lençóis brancos que exalavam perfume caro. O chão brilhava, e cortinas pesadas bloqueavam parte da luz.
Ela se levantou devagar, sentindo o peso da decisão que mudara sua vida. Já não estava em sua casa simples, já não era dona de si. Agora pertencia ao homem mais temido do Chapadão.
Um nó apertou sua garganta, mas ela respirou fundo. Não choraria. Não daria esse gosto a ele.
A porta se abriu sem aviso, e uma mulher entrou carregando uma bandeja com café, pão e frutas. Vestia roupas justas, cabelo preso em coque. O olhar, no entanto, era frio.
— Café da manhã. — disse, colocando a bandeja sobre a mesa.
— Obrigada. — Bela murmurou.
A mulher a encarou de cima a baixo, o desprezo explícito. — Você é a nova, né?
— Nova? — Bela franziu a testa.
— Do A.S. — respondeu seca. — Ele sempre arruma uma novidade. Mas não se empolga, não. Nenhuma dura muito.
O coração de Bela apertou, mas ela manteve a calma. — Qual o seu nome?
— Tainá. — respondeu, arqueando uma sobrancelha. — E eu não vou com a sua cara.
Sem esperar resposta, Tainá saiu, batendo a porta.
Bela respirou fundo, sentindo o estômago embrulhar. A comida diante dela parecia apetitosa, mas seu apetite tinha desaparecido. Tudo era diferente demais, ameaçador demais.
Mais tarde, dois homens bateram na porta.
— O patrão quer falar contigo. — disseram.
Bela os seguiu, o coração acelerado. O caminho a levou até uma ampla varanda, de onde era possível ver boa parte do morro. Alex estava ali, sentado em uma cadeira de madeira, charuto aceso entre os dedos. O olhar fixo no horizonte, como se comandasse o mundo.
— Dormiu bem, princesa? — ele perguntou, sem se virar.
— Dormi. — respondeu, seca.
Ele riu baixo. — Gostei da sua coragem ontem. Mas aqui… as regras são minhas. Se quiser sobreviver, vai ter que aprender rápido.
— Eu não pedi pra estar aqui. — ela rebateu.
Alex girou a cabeça devagar, o olhar frio pousando sobre ela. — Você veio porque quis. Ninguém botou uma arma na sua cabeça.
— Eu vim pra salvar meu irmão. —
— Então aprenda logo: o preço foi você. — ele disse, tragando o charuto. — E agora, é minha.
Bela cerrou os punhos. — Você acha que pode comprar tudo, não é?
— Não. — ele respondeu, um sorriso torto nos lábios. — Mas posso tomar.
O silêncio se instalou. Ela sentiu a raiva ferver, mas também algo que não queria admitir: havia uma força magnética naquele homem.
Os dias seguintes foram um turbilhão. Bela descobriu que sua rotina não seria simples. Não poderia sair sozinha, sempre acompanhada por homens armados. A casa era grande, cheia de corredores, quartos, salas de reunião onde Alex discutia com seus comparsas. Ela não participava, mas ouvia os murmúrios, os planos, as tensões.
As noites eram piores. O som de tiros ecoava distante, às vezes perto. Ela se encolhia na cama, o coração acelerado, lembrando que agora fazia parte daquele mundo.
Alex, por outro lado, parecia se divertir em testá-la. Às vezes se aproximava, lançava olhares provocadores, dizia frases curtas apenas para ver sua reação.
— Tá com medo, princesa? — ele perguntou certa vez, quando os estampidos de balas invadiram a madrugada.
— Não. — ela respondeu, mentindo.
Ele riu. — Vai aprender a conviver com isso. Aqui, a bala canta mais que passarinho.
Uma tarde, Bela estava na cozinha ajudando uma das funcionárias quando Tainá apareceu.
— Olha só, a princesinha sabe cozinhar. — disse em tom debochado.
Bela ignorou, mas Tainá se aproximou, cutucando-a. — Escuta aqui, garota… você pode ter caído nas graças dele agora, mas não se engane. O A.S. não ama ninguém. Pra ele, você é só mais uma diversão.
Bela virou-se, encarando-a firme. — Se é isso que você pensa, então não tem motivo pra se incomodar comigo.
Tainá estreitou os olhos, raivosa. — Você vai se arrepender de estar aqui.
As duas se encararam em silêncio até que Tainá saiu, bufando.
Naquela noite, Alex entrou no quarto dela sem bater.
— Tava ouvindo uma confusão aí fora. — disse, aproximando-se. — Algum problema?
— Nenhum que você já não saiba. — Bela respondeu, cruzando os braços.
Ele sorriu. — A Tainá é ciumenta. Mas relaxa, eu não tô interessado nela.
— E deveria estar em mim? — ela provocou.
Alex se aproximou, tão perto que ela pôde sentir o cheiro de seu perfume misturado ao tabaco. — Eu não deveria estar interessado em ninguém. Mas você me intriga.
Bela sentiu a respiração falhar, mas manteve o olhar firme. — Então se acostume. Eu não sou brinquedo.
Ele riu baixo, se afastando. — Veremos.
Os dias foram se transformando em semanas. Bela já conhecia os rostos dos soldados, os códigos de cada esquina, o olhar desconfiado dos moradores quando passava. A comunidade a observava como se fosse um mistério — uns com pena, outros com inveja, muitos com desprezo.
Mas, apesar da dor de estar ali, algo inesperado começou a nascer dentro dela. Por trás da frieza de Alex, ela percebia lampejos de humanidade. Uma vez, o viu ajudar discretamente uma senhora da comunidade, entregando dinheiro para comprar remédios.
Em outra, percebeu o cuidado silencioso que tinha com as crianças, garantindo que nunca faltasse comida na escola improvisada no morro.
Era como se duas faces vivessem dentro dele: o criminoso implacável e o homem que, talvez, pudesse sentir.
E isso a confundia.
Numa noite chuvosa, enquanto relâmpagos iluminavam o céu, Alex entrou em seu quarto outra vez.
— Tá com medo? — ele perguntou, vendo-a encolhida na cama.
— Da chuva? Não. — ela respondeu, tentando parecer firme.
Ele se aproximou devagar. — Não é da chuva que eu tô falando.
Bela o encarou, o coração acelerado. — Então do quê?
— De mim. —
O silêncio foi cortado apenas pelo trovão que sacudiu as janelas.
Bela respirou fundo. — Talvez.
Alex sorriu, sentando-se na beira da cama. — Bom. É melhor me temer do que me amar.
— Quem disse que eu poderia amar alguém como você? — ela provocou.
Ele a olhou fundo, e por um instante, ela jurou ver dor em seus olhos. Mas logo desapareceu, substituída pelo cinismo habitual.
— Veremos, princesa. —
E saiu, deixando-a sozinha com o coração em chamas.
Naquele momento, Bela percebeu uma verdade dolorosa: por mais que tentasse resistir, algo dentro dela já começava a ceder ao poder magnético de Alex Silveira.
E essa fraqueza, sabia, poderia ser a sua ruína.