O preço da escolha
A noite descia pesada sobre a pequena comunidade onde Bela vivia. As luzes amareladas dos postes piscavam, falhando como se também carregassem o peso da pobreza e do abandono. O vento soprava leve, mas a tensão no ar parecia cortar a respiração. Bela caminhava de um lado para o outro dentro da casa simples, os olhos cheios de preocupação. A notícia tinha chegado horas antes: seu irmão, Lucas, estava jurado de morte.
Ela não queria acreditar. Lucas sempre fora inconsequente, mas nunca imaginara que ele tivesse coragem de mexer com o homem mais temido do Chapadão. Alex Silveira, o A.S., era mais do que um nome – era uma sombra que dominava cada viela, cada esquina, cada olhar.
— Lucas, me fala que isso é mentira, pelo amor de Deus! — Bela pediu, quase implorando, quando o irmão entrou em casa, suado e com o olhar perdido.
Ele se jogou no sofá, passando as mãos pelo rosto. — Eu tentei, Bela… mas o jogo virou contra mim. Eu devia pro A.S., e você sabe como é… ninguém fica devendo pra ele.
— Quanto? — ela perguntou, a voz embargada.
— Cinquenta mil.
As pernas de Bela quase cederam. — Cinquenta mil? Você enlouqueceu? Como você pegou esse dinheiro?
Lucas baixou os olhos. — Eu entrei em uma jogada errada. Achei que dava pra multiplicar, mas… perdi tudo.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Bela encostou-se na parede, sentindo a respiração falhar. Cinquenta mil era uma quantia inalcançável. Ela m*l tinha dinheiro para pagar as contas de casa. O salário do pequeno emprego no mercado m*l dava para a sobrevivência.
— E agora? — ela murmurou, já sabendo a resposta.
— Agora… ou eu pago, ou eu morro. — Lucas respondeu com uma frieza que a matou por dentro.
As lágrimas escorreram pelo rosto de Bela, mas junto delas veio a fúria. — Como você pôde ser tão irresponsável? Você não pensou em mim? Na gente?
— Eu pensei em mudar nossa vida, Bela! — ele rebateu, a voz trêmula. — Cansei de viver nessa miséria. Eu achei que dessa vez ia dar certo…
Ela queria gritar, mas apenas respirou fundo, tentando encontrar uma saída. Não havia tempo. O prazo que o A.S. dera era curto, e todos sabiam o que acontecia com quem não cumpria.
Naquela noite, Bela não dormiu. Ficou sentada, encarando o teto, ouvindo os tiros distantes que cortavam o silêncio da madrugada. Cada estampido lembrava o quanto a morte rondava o lugar.
E foi no meio desse tormento que uma decisão nasceu dentro dela. Se não tinha dinheiro, daria o que tinha de mais valioso: a própria vida.
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O sol da manhã iluminava a comunidade, mas o brilho parecia não alcançar Bela. Ela vestiu uma calça jeans simples, uma blusa preta e prendeu os cabelos em um coque apressado. O coração batia acelerado, mas seus olhos estavam firmes.
Lucas percebeu. — Onde você vai?
— Resolver o que você não teve coragem. — respondeu, com a voz firme.
— Não! — ele se levantou, desesperado. — Você não vai se meter nisso, Bela!
Ela o encarou com dureza. — Eu não tenho escolha, Lucas. Se você morrer, eu morro junto. Pelo menos assim… eu compro sua vida.
Ele tentou segurá-la, mas Bela se desvencilhou. Saiu de casa com passos rápidos, ignorando os olhares dos vizinhos, que a observavam como se já soubessem para onde ela ia.
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O caminho até o alto do morro parecia interminável. As vielas estreitas, cheias de crianças correndo e mulheres carregando sacolas, se transformavam pouco a pouco em ruas mais silenciosas, guardadas por olhares desconfiados. Os homens armados observavam cada movimento dela.
— Pra onde vai, princesa? — um deles perguntou, o fuzil pendurado no ombro.
— Quero falar com o A.S. — ela disse sem titubear.
O homem riu, mas seus olhos avaliaram a coragem dela. — Sabe o que tá pedindo?
— Sei. — respondeu, com firmeza.
Ele deu de ombros e fez um sinal para outro rapaz. — Leva ela.
Bela foi conduzida até uma grande casa no alto, uma das poucas construções bem cuidadas da comunidade. O coração dela parecia querer pular pela boca. A cada passo, lembrava-se das histórias que ouvira sobre Alex Silveira — o homem que não perdoava, que mandava matar sem piscar.
A porta foi aberta, e o cheiro de charuto invadiu suas narinas. O ambiente era luxuoso, contrastando com a miséria do lado de fora. Sofás de couro, televisões grandes, quadros caros.
E então, ela o viu.
Alex estava sentado numa poltrona, cercado por dois homens armados. Usava uma camiseta branca, bermuda preta e um cordão grosso de ouro. O olhar frio, quase entediado, pousou sobre ela como uma lâmina.
— Quem é? — ele perguntou, sem se levantar.
— A irmã do Lucas. — o rapaz respondeu.
Alex ergueu uma sobrancelha. — A irmã do devedor?
Bela respirou fundo, encarando-o de frente. — Sim.
Ele soltou uma risada curta. — E o que a princesinha veio fazer aqui? Pedir perdão?
— Vim pagar a dívida. — ela disse, a voz firme, mesmo com o corpo tremendo por dentro.
O silêncio caiu como um soco. Os homens riram em deboche, mas Alex permaneceu sério, analisando-a de cima a baixo.
— Pagar? Você tem cinquenta mil guardados no cofrinho? — ele provocou.
— Não tenho dinheiro. — Bela respondeu.
— Tenho a mim.
As palavras ecoaram na sala. Os risos cessaram. Até mesmo os homens armados a encararam, surpresos. Alex inclinou-se para frente, intrigado.
— Você sabe o que tá falando, garota? —
— Sei. — ela sustentou o olhar. — Se for pra salvar a vida do meu irmão, eu me entrego.
Alex ficou em silêncio por alguns segundos, como se processasse a ousadia dela. Então, um sorriso torto surgiu em seus lábios.
— Você é corajosa… ou burra.
— Talvez os dois. — ela rebateu.
Ele se levantou, aproximando-se lentamente. Sua presença era sufocante, e Bela sentiu as pernas tremerem, mas não recuou.
— Ninguém fala assim comigo — ele murmurou, quase divertido. — Mas gostei do seu jeito.
Alex a analisou como quem observa uma peça rara. — Tá bem. Seu irmão vive. Mas você… é minha agora.
Bela sentiu o coração gelar, mas manteve a cabeça erguida. — Eu já sabia.
Ele sorriu, satisfeito. — Vai ser interessante.
Naquela noite, Bela voltou para casa apenas para avisar Lucas. Ele chorou, implorou, tentou convencê-la a desistir, mas ela já tinha tomado sua decisão.
— Eu fiz por você, Lucas. Não estraga isso. — disse, abraçando-o com força. — Vive a sua vida. Eu vou viver a minha… de outro jeito.
Quando saiu pela porta novamente, Bela sabia que nunca mais voltaria a ser a mesma.
O morro a esperava. O A.S. a esperava.
E o preço da escolha acabava de ser pago.