15. A Criatura

2394 Words
O silêncio que tomou Darrow’s Hollow naquela semana era diferente de qualquer outro. Não era ausência de som, mas uma escuta constante. Como se algo — ou alguém — estivesse prestando atenção. Os cães pararam de latir. As aves não voltaram a sobrevoar o lago. E mesmo o vento parecia evitar a cidade, contornando-a com cuidado, como se soubesse que o ar ali não lhe pertencia mais. Nas margens, o lago se mantinha imóvel. Nem uma folha se movia sobre sua superfície. Mas, debaixo dele, a vida pulsava. ************ Henry Calder havia desaparecido, mas deixara anotações espalhadas pela biblioteca e pela igreja. Entre as páginas de velhos livros, moradores começaram a encontrar mensagens curtas, escritas com tinta borrada — algumas em latim, outras em inglês antigo. Todas falavam da mesma coisa. “A criatura nunca dorme. A carne é seu espelho. E quando o espelho se encher, ela atravessará.” ********** Naquele mesmo dia, o corpo de Margaret Holloway emergiu do poço. Mas não era um corpo comum. A pele era translúcida, a carne sem cor, e os olhos... Os olhos eram espelhos. Refletiam tudo — menos o céu. Os moradores o retiraram em silêncio, ninguém se atreveu a tocar. E quando o padre tentou rezar, a boca dela se abriu sozinha, murmurando uma frase que não era dela: "O lago anda. O selo sangra." O corpo se desfez em água diante de todos. E onde caiu, o chão escureceu. ************ Sarah Cole estava morta, disso, todos sabiam. Mas ela voltara. Não em corpo, nem em espírito. Em reflexo. A cidade inteira via seu rosto em superfícies polidas: nas janelas, nas poças, até nas panelas de metal. Alguns diziam que, se olhassem tempo demais, o reflexo sorria. Outros juravam que ela os chamava pelo nome. Crianças começaram a desaparecer novamente. As casas amanheciam com marcas circulares de umidade nas paredes. E, nas noites de neblina, o lago brilhava de dentro para fora, como se respirasse. ******** O velho diário de Sarah, agora guardado na biblioteca, continuava mudando sozinho. Páginas em branco se preenchiam, e os símbolos se reescreviam. Na manhã em que a neblina cobriu toda a cidade, uma nova frase surgiu na última página: “A criatura precisa de corpo. O corpo precisa de medo.” A partir daquele dia, as pessoas começaram a se mover diferente. Menos humanas. Os gestos eram lentos, fluidos, quase aquáticos. E a pele — mesmo seca — brilhava sob a luz. Ninguém mais olhava nos olhos de ninguém. Porque quando dois olhares se cruzavam, o reflexo continuava, mesmo depois que um deles desviava. ******* Na casa de número 17, próxima à antiga escola, um menino chamado Caleb começou a gritar durante a madrugada. A mãe correu ao quarto e o encontrou encolhido no canto, coberto de suor. “O que foi, meu amor?” Ele tremia. “O homem do lago.” Ela tentou acalmá-lo. “Não existe homem no lago, Caleb.” Mas o menino apontou para o espelho da parede. A superfície ainda vibrava, como se tivesse sido tocada por dentro. E lá estava — uma sombra alta, magra, sem rosto definido. No peito, milhares de olhos abertos, girando, como se observassem tudo e nada ao mesmo tempo. A mãe pegou o filho nos braços e o espelho rachou — não para fora, mas para dentro. Como se algo o puxasse do outro lado. Do corredor, um som baixo ecoou. Água escorrendo. Um passo. Outro. E, antes que pudesse correr, ouviu a voz do próprio filho sussurrar ao ouvido dela: "Ele está acordando." ********* Na manhã seguinte, os sinos da igreja tocaram sozinhos. A névoa era tão espessa que ninguém via além de três metros. As ruas estavam vazias, exceto por pegadas molhadas que vinham da direção do lago e se espalhavam pela cidade, entrando em casas, cruzando portas, subindo escadas. E no centro da praça, onde antes havia uma estátua, havia agora uma forma nova — grande, informe, feita de lama, carne e espelhos quebrados. Os reflexos dentro dela se moviam como olhos. A criatura estava nascendo. ********** No fim da tarde, o lago começou a ferver. Pequenas bolhas, depois ondas baixas. E, sob a superfície, algo se movia — uma sombra imensa, viva, respirando. O som era inconfundível. Não rugido. Não voz. Respiração. A cada exalação, a neblina crescia. A cada inspiração, o chão vibrava. E na última lufada, todos os espelhos da cidade se partiram ao mesmo tempo. Do meio do lago, ergueu-se uma forma. Não feita de água, nem de carne, mas de reflexos — um corpo que mudava a cada segundo, formado pelas imagens de todos que o olhavam. Milhares de rostos fundidos, girando em torno de um vazio central. O Olho estava de volta. Aberto. Acordado. E Darrow’s Hollow, pela primeira vez, entendeu o que realmente morava sob a água. O lago já não era mais água. Era espelho. E o espelho estava vivo. A superfície refletia o céu, mas o céu refletido não era o mesmo acima da cidade. No reflexo, o sol girava devagar, como se tentasse fugir. As nuvens moviam-se ao contrário. E, bem no centro, onde antes havia apenas profundidade, um olho gigantesco se abria e fechava, ritmado, lento, respirando. Darrow’s Hollow silenciou. Não havia gritos, nem correria, nem preces. Apenas a sensação compartilhada de que todos — vivos ou mortos — estavam sendo observados. ******* Sarah despertou. Ou acreditou ter despertado. Não havia chão sob seus pés, nem ar nos pulmões. Ela flutuava em uma imensidão líquida, densa, que não era água e não era ar. As luzes ao redor eram lembranças: fragmentos da cidade, rostos conhecidos, vozes antigas. Tudo misturado, tudo confuso. “Sarah…” A voz veio de todos os lados. Suave, mas profunda o bastante para fazer a água vibrar. Ela girou lentamente, e ali estava Ethan. Ou o que restava dele. O rosto sereno, os olhos translúcidos, as veias cheias de luz. “Você não devia estar aqui,” disse ela, a voz abafada. “Eu nunca fui embora.” Ele se aproximou, o corpo quase se desfazendo em partículas líquidas. “Ela despertou. O que dormia no lago… agora sonha através de nós.” “Ela?” “A criatura. O que veio antes de nós. O que lembra o mundo.” Sarah sentiu o frio crescer. “O selo falhou.” “Não” respondeu Ethan. “O selo funcionou. Só que agora, ele é você.” Ela tentou entender, mas a consciência se distorcia — cada pensamento vinha com mil vozes sussurrando. Lá dentro, ela sentia o medo de todos. As dores. As culpas. O desespero. Darrow’s Hollow vivia dentro dela, e ela dentro do lago. “O que ela quer?” “Lembrar” disse Ethan. “Tudo o que o mundo tentou esquecer. O que enterrou. O que matou para continuar existindo.” ********** Do lado de fora, a cidade se curvava. As ruas se dobravam como se o solo fosse líquido. As casas se inclinavam, os postes se derretiam. A Criatura — agora visível para todos — erguia-se sobre o centro da cidade, uma torre viva de rostos fundidos, espelhos quebrados e carne úmida. Cada rosto gritava, chorava, sorria. Alguns eram de vivos. Outros, de mortos. No topo, algo brilhava — um olho imenso, pulsando como uma estrela suja. A criatura não andava. Ela se arrastava. E cada passo deixava para trás uma poça perfeita, redonda, que refletia apenas uma coisa: o rosto de Sarah. ******** Dentro do espelho vivo, Sarah sentia tudo. Cada respiração da cidade. Cada batimento cardíaco. Ela via pelas janelas, pelos copos, pelos olhos das pessoas. Era onipresente e impotente. Até que o lago — ou o que vivia dentro dele — falou. "Você é o selo. Eu sou o reflexo. Juntas, lembramos." “Você não precisa destruir” respondeu ela. "Não destruo. Reflito. O medo é apenas a imagem do que existe." Sarah começou a entender. A criatura não era maldade pura. Era memória — e memória é neutra. O m*l vinha do que o reflexo mostrava. Mas algo havia mudado. Ela sentia o reflexo crescer. A Criatura não queria apenas lembrar Darrow’s Hollow. Queria lembrar o mundo. Sair do lago. Usar cada corpo, cada gota, cada reflexo como passagem. E, em meio à escuridão líquida, Sarah viu — o céu, as montanhas, os rios, as cidades distantes — tudo ligado pela água. O mundo inteiro era um espelho esperando ser acordado. “Não” murmurou ela. “Isso não pode acontecer.” "Não pode ser contido" respondeu a voz. "Mas pode ser guiado." ****** Acima da terra, o ar começou a vibrar. Os vidros das casas se estilhaçaram, e uma chuva de cacos refletiu a criatura por todos os ângulos. O som era ensurdecedor — um coro de vozes humanas, chorando, rindo e rezando ao mesmo tempo. E então, do lago, ergueu-se uma nova figura. Humana. Feminina. Translúcida. Sarah. Ela flutuava diante da criatura, o olhar fixo no olho central. “Sou sua guardiã” disse, e sua voz se espalhou como um trovão. “Mas não sou sua serva.” A Criatura rugiu — um som profundo, que não era fúria, mas memória se revoltando. O chão tremeu. O lago ferveu. Sarah estendeu os braços. As espirais em suas mãos começaram a brilhar. “Você quer lembrar o mundo? Então lembre tudo. Lembre o m*l. Lembre o esquecimento. Lembre o que o medo fez de nós.” A Criatura hesitou. As vozes dentro dela começaram a se confundir, a gritar, a implorar. O reflexo tremeu. E, por um instante, o olho se fechou. Sarah aproveitou. Concentrou tudo que restava de si — a culpa, a dor, a lembrança — e empurrou de volta. A água subiu, engolindo ambas. E o lago voltou a silenciar. -********** Por três dias, Darrow’s Hollow ficou sob névoa espessa. Ninguém entrou, ninguém saiu. Quando o sol enfim rompeu as nuvens, o lago estava calmo novamente. As margens secas. A cidade quieta. Mas onde antes havia reflexos, agora não havia mais. Os espelhos estavam mortos. A água, opaca. E, no centro do lago, uma mancha luminosa girava lentamente, como um coração de luz submerso. ********* Naquela noite, o diário voltou a escrever sozinho. A última página dizia: “O lago dorme. A criatura lembra. E eu… a vejo sonhar.” E, ao longe, no espelho tranquilo da água, algo respirou. ****************************** Na primeira manhã após o silêncio, o sol rompeu a névoa como se a cidade tivesse dormido por um século. O ar estava limpo, frio, e o lago — agora imóvel e sem brilho — refletia apenas o céu cinzento. Nenhum pássaro pousava perto. Nenhum som de água vinha das margens. Era como se o mundo inteiro prendesse a respiração. Os poucos que restaram em Darrow’s Hollow andavam pelas ruas como sonâmbulos, olhando o chão. As casas, as árvores e até as pedras pareciam mais leves, lavadas, mas vazias. E, à noite, todos sonhavam o mesmo sonho: Um campo infinito de espelhos, e no centro dele, uma mulher de pé — pálida, imóvel, os olhos abertos. Sarah Cole. Ela não falava. Apenas olhava para eles, como se esperasse que lembrassem de algo que nunca viveram. ******** Três dias depois, um pescador chamado Paul Reddick decidiu quebrar o silêncio. Pegou seu barco velho e foi até o meio do lago. A água estava espessa, opaca, mas lisa como vidro. Quando mergulhou o remo, o som não veio. Nenhum movimento, nenhum eco. Era como empurrar o ar. Ele remou até o centro, onde a luz sempre parecia mais forte, e ali viu — sob a superfície — algo pulsando. Uma forma circular, viva, respirando. E no meio dela, dois olhos abertos. Paul prendeu o fôlego. Os olhos se moveram. O olhar era humano. Calmo. Triste. “Sarah…” murmurou. A superfície do lago vibrou, formando pequenas ondas ao redor do barco. E uma voz, quase imperceptível, atravessou o ar: "Ela dorme. Mas lembra." Paul soltou o remo, e o barco girou lentamente. O sol começou a se pôr, e pela primeira vez em meses, o reflexo do céu parecia real. Mas o pescador não percebeu que, ao olhar para a água, o reflexo dele não o seguia mais. O reflexo sorria. Devagar. Tranquilo. ***** Na biblioteca, o diário continuava a se escrever. As páginas novas falavam de um equilíbrio — uma trégua entre o humano e o que veio antes. Sarah havia se fundido à Criatura. Não como vítima, nem como prisioneira, mas como consciência. Ela não deixaria o lago acordar de novo. Mas, para isso, precisava lembrar. E, ao lembrar, ela se tornava o lago. As palavras que surgiram na última página eram simples, firmes, serenas: “O olho vê. O corpo sente. O medo passa. Mas a lembrança fica.” ***** O tempo voltou a correr em Darrow’s Hollow. O mercado reabriu. As crianças voltaram à escola. As pessoas riam outra vez, mas nunca muito alto. E todos evitavam olhar diretamente para a água. Era uma regra não escrita. Um instinto. Os mais velhos, porém, ainda ouviam. Diziam que, em certas noites — quando a lua era cheia e o vento não soprava — era possível escutar o som da respiração sob o lago. Baixa, compassada, calma. E, se alguém se aproximasse demais, via o reflexo de Sarah, flutuando sob a superfície, vigiando. Um símbolo foi esculpido na praça central, sobre o antigo poço. Três espirais entrelaçadas, idênticas às do diário. Ninguém sabia quem o fez. Mas o padre dizia que representava o ciclo da cidade: o medo, o corpo e o reflexo. Anos depois, Darrow’s Hollow se tornou apenas uma história contada em sussurros. Um lugar que existiu, mas que ninguém sabia dizer onde. Os mapas não o mostravam mais. Os documentos sumiram. E quem tentava encontrá-lo, voltava com a mesma lembrança vaga — de uma estrada que terminava em névoa. Mas, às vezes, viajantes diziam ver algo. Um lago. Imenso. Perfeitamente imóvel. E no reflexo da água, o céu piscava. ***** Em algum ponto, no fundo do espelho líquido, Sarah continuava lá. Nem viva, nem morta. Nem humana, nem criatura. Guardando. Lembrando. O olho do lago permanecia fechado. Mas, dentro dele, uma respiração suave mantinha o mundo em equilíbrio. E, se alguém se aproximasse o bastante, podia ouvir a última frase sussurrada pelas águas: "Enquanto alguém lembrar, o lago dorme."
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD