14. O Corpo E O Medo

2222 Words
O verão chegou cedo em Darrow’s Hollow. As flores voltaram a crescer perto das cercas, e o som dos pássaros preenchia as manhãs como se nada tivesse acontecido. Mas o lago permanecia diferente. Calmo demais. Claro demais. Tão imóvel que refletia o céu com perfeição, sem uma única ondulação — como se fosse feito de vidro. As pessoas começaram a chamá-lo de “espelho de Deus”. As crianças, que antes tinham medo de se aproximar, agora brincavam nas margens, atirando pedras que nunca faziam som ao tocar a superfície. E quando alguém se inclinava para olhar, via o reflexo límpido — bonito, tranquilo — mas havia algo estranho. O reflexo sorria. Mesmo quando quem olhava não sorria. ******** Sarah Cole havia desaparecido três meses antes. Nenhum corpo foi encontrado. Nenhum sinal, nenhuma explicação. A cidade a considerava morta, mas havia quem jurasse vê-la na beira do lago nas noites sem lua, parada, observando. Uma mulher de cabelos longos, pálida, calma, com o olhar voltado para a água. E ao redor dela, o lago parecia respirar. Tom Grady, o xerife, também estava desaparecido. A delegacia permanecia trancada, com as paredes cobertas de mofo. O distintivo dele, encontrado na lama, agora descansava sobre o altar da igreja. O padre rezava por ele todos os domingos — mas, nos dias de chuva, ninguém ousava entrar no templo. Diziam que as velas apagavam sozinhas, e o som da água escorria pelas paredes, mesmo sem goteiras. ***** Em uma manhã abafada, um homem apareceu à porta da antiga biblioteca. Henry Calder. Velho, cansado, mas vivo. Tinha os olhos vermelhos de quem não dormia há dias e uma ferida aberta no braço. Sarah havia desaparecido, mas o velho não deixara a cidade. Não podia. Alguém precisava lembrar. Ele entrou, apoiando-se na bengala. A bibliotecária o reconheceu, surpresa. “Senhor Calder… achei que o senhor tivesse ido embora.” Ele apenas sorriu. “O lago não deixa.” Caminhou até o fundo da sala, onde livros mofados e papéis antigos ainda guardavam o cheiro do tempo. Puxou uma caixa empoeirada e retirou de dentro um caderno — pequeno, encapado de couro. As páginas estavam em branco. Mas quando Henry passou o dedo sobre a capa, linhas começaram a surgir, lentas, como se escritas por dentro do papel. E no topo da primeira página, formou-se o título: “O Corpo e o Medo — por Sarah Cole.” A bibliotecária recuou, o rosto pálido. “O que é isso?” Henry fechou o livro devagar. “O começo de outro selo.” ***** Naquela mesma noite, o lago brilhou. Não como antes, não um clarão, mas um brilho suave, constante, como se estrelas se movessem sob a superfície. Os peixes flutuaram mortos pela manhã, com as escamas cobertas por uma camada fina e translúcida, como vidro. As plantas à beira d’água começaram a secar. E então vieram os sonhos. Os moradores começaram a sonhar com a mesma coisa: Estavam de pé, no meio do lago, sobre a água. Tudo era silencioso, e no reflexo abaixo, viam não seus próprios rostos, mas o de Sarah. Ela os encarava sem expressão e dizia apenas uma frase: "O lago está dentro de vocês." Os sonhos se repetiam todas as noites. Alguns começaram a adoecer — febres altas, calafrios, marcas de água nos lençóis pela manhã. Outros acordavam com o cheiro do lago impregnado na pele. E alguns… simplesmente não acordavam. ******** Henry sabia o que estava acontecendo. Ele via os sinais. Os olhos das pessoas começaram a mudar, um brilho discreto, reflexivo. A água tentando se lembrar. O selo havia se fechado, mas o preço do esquecimento estava sendo pago. Sarah estava lá embaixo, no coração do lago, guardando o que restou da criatura. Mas o medo, esse, nunca morria. Ele encontrava outro corpo. E agora, Darrow’s Hollow respirava medo novamente — só que o som não vinha mais das águas. Vinha de dentro das casas. De dentro das pessoas. E toda noite, sob o céu sem vento, o lago permanecia quieto, refletindo o mundo com perfeição. Mas se alguém olhasse fundo o bastante, veria que o reflexo piscava. Devagar. Observando. ************* Os primeiros sinais apareceram discretos. Olhos mais úmidos que o normal. Pupilas que refletiam demais, mesmo em ambientes escuros. Mãos frias. Um tremor leve, quase imperceptível, sempre que alguém mencionava o lago. Henry Calder foi o primeiro a perceber. Estava sentado no banco da praça, observando as pessoas, quando notou uma mulher — Margaret Holloway — inclinada sobre o poço central. Ela murmurava algo em voz baixa, o rosto muito próximo da superfície. Quando Henry se aproximou, viu que a água do poço tremia. Mas não havia vento. “Senhora Holloway?” Ela se virou devagar, o rosto calmo demais. Os olhos… refletiam o céu. Literalmente. Como se fossem espelhos. “Ele está crescendo” disse ela, sorrindo. “Quem está crescendo?” perguntou Henry, mantendo a voz firme. Ela piscou, e uma única lágrima escorreu. Mas não era água. Era uma gota espessa, translúcida, quase viscosa. “Ele” respondeu, e mergulhou de volta no poço, sem hesitar. Henry gritou, tentou alcançá-la, mas só viu o reflexo distorcido. A superfície se fechou como vidro. Quando os moradores chegaram, nada restava além da água parada. ********** Nas semanas seguintes, o mesmo aconteceu com outros. Um pescador foi encontrado na margem, de joelhos, os olhos abertos, o corpo rígido, o rosto coberto por uma camada fina de água sólida. Uma criança desapareceu no banho. O espelho do quarto de um homem se partiu sozinho e, do outro lado, ele viu o próprio reflexo sorrindo antes do vidro virar líquido e engoli-lo. Darrow’s Hollow voltou a respirar medo. Mas agora o lago não era o inimigo. Ele estava em todos. ******** Henry passou a noite revirando livros antigos, papéis que restaram das escavações, páginas que o tempo não apagou. As mãos tremiam enquanto lia, o som das gotas do telhado o acompanhando. Entre símbolos e anotações, encontrou uma frase quase apagada, escrita em latim antigo. Traduziu com cuidado, sussurrando: “Quando o corpo lembrar, o selo se tornará carne.” Ele parou. O corpo. O medo. Tudo fazia sentido agora. A criatura — ou o que restou dela — não estava mais presa à água. Ela havia aprendido. O lago a ensinara a refletir, e o reflexo encontrou abrigo nos humanos. O selo não dormia. Ele caminhava. Dentro de cada um. ******* Na mesma noite, Henry ouviu batidas na porta. Três, lentas, firmes. Ele se levantou com dificuldade, a bengala ecoando no chão de madeira. Quando abriu, viu uma mulher ensopada, o rosto pálido, o olhar distante. “Entre” disse ele. “Está chovendo?” Ela balançou a cabeça. “Não.” A água escorria do cabelo dela, caindo aos pés, formando uma poça que se movia levemente. “Eu… eu o vi” sussurrou. “No espelho.” Henry assentiu. “O que ele disse?” Ela respirou fundo. “Disse que é hora de lembrar.” O velho sentiu o peito apertar. “A lembrança traz o selo de volta.” A mulher ergueu o olhar. “E você, Henry? Você lembra?” Ele congelou. O som da chuva cessou. O relógio parou. E, por um instante, o silêncio pareceu vivo. “Eu lembro” respondeu. Ela sorriu — e o sorriso não era humano. A pele dela começou a brilhar, fina como água sob luz. Os olhos tornaram-se espelhos perfeitos. “Então ele virá por você.” Henry deu um passo atrás. Mas quando olhou para o chão, viu que a poça aos pés dela agora se espalhava em todas as direções, subindo pelas paredes, como veias líquidas. A casa começou a respirar. E do teto, gotas começaram a cair — espessas, frias, em espiral. O velho ergueu o olhar e murmurou: “Ele encontrou o corpo.” A mulher deu um passo à frente, estendendo a mão. “Não tenha medo, Henry. Você foi o guardião. Agora, será o espelho.” A água se ergueu atrás dela como uma onda silenciosa. E, quando a luz apagou, só o som das gotas permaneceu. ****** Na manhã seguinte, o sol voltou. Os vizinhos encontraram a casa de Henry vazia. No chão, um livro aberto — o mesmo diário de Sarah, agora com novas páginas escritas. A última frase dizia: “A carne lembra. O lago respira.” E ao lado do livro, uma marca circular no chão — perfeita, lisa, brilhante. Como se um espelho tivesse se formado e desaparecido. **-*** Naquela noite, uma criança acordou com sede. Foi até a pia, abriu a torneira e esperou a água cair. Mas a água não caiu. Ela subiu. Formou uma gota suspensa no ar. E dentro dela, um olho. O menino ficou parado, hipnotizado. Até ouvir a voz suave, familiar, que vinha de dentro da gota: "Durma, pequeno. Eu estou aqui." A gota estourou. E o som do lago voltou a ecoar em Darrow’s Hollow. ************************* No início, parecia uma doença. Pele fria, olhos marejados, febre noturna. Os médicos — os poucos que ainda restavam — chamavam de “febre do reflexo”. Mas ninguém melhorou. E todos que olhavam muito tempo para a água, ou para o próprio espelho, começavam a mudar. A pele tornava-se translúcida, quase vidrada. O suor escorria espesso, como condensação. E, em certos ângulos, o rosto parecia duplo — um reflexo ligeiramente atrasado, acompanhando cada movimento. *****- A cidade tentou seguir, fingindo normalidade. A feira reabriu, o sino da igreja tocava, e as crianças voltavam a correr pelas ruas. Mas havia algo errado em cada olhar. As pessoas não piscavam com a mesma frequência. Os reflexos nas vitrines pareciam olhar para direções diferentes. E o som da água voltará — não mais vindo do lago, mas de dentro das paredes, dos canos, dos corpos. ***** Na velha casa de Sarah Cole, o diário repousava sobre a mesa, aberto. As páginas secas pareciam vibrar levemente, como se alguém respirasse nelas. E à noite, quando o vento soprava, as palavras mudavam sozinhas. Letras se movendo, formando novas frases, escritas por uma mão invisível: “O selo dorme. O corpo sonha. O medo lembra.” ******** Em uma tarde cinzenta, três homens foram encontrados parados no meio da estrada. Imóveis. De costas para a cidade. As roupas secas, mas os rostos molhados. Quando o delegado interino tentou chamá-los, nenhum respondeu. E, ao tocá-los, percebeu que a pele deles era fria, dura, e refletia a luz como vidro polido. Dentro dos olhos, um brilho pálido. Como o reflexo do lago sob a lua. Ele recuou, assustado, e os três viraram-se ao mesmo tempo. O movimento foi lento, sincronizado. Os lábios se abriram em uníssono, e uma voz — não três, mas uma só — falou, com o som de água escorrendo: "Ela ainda lembra." Depois disso, a cidade parou de fingir. As casas foram lacradas. Os poços, cobertos. Os espelhos, quebrados. Mas nada adiantava. A água encontrava caminho — pelas paredes, pelas veias, pelos sonhos. Os moradores começaram a ouvir vozes à noite. Nem gritos, nem murmúrios — apenas respirações próximas, calmas, dentro dos quartos. Alguns diziam sentir o peso de uma mão fria sobre o peito enquanto dormiam. Outros acordavam molhados, como se tivessem sido arrastados até o lago e devolvidos. E, em cada casa, um mesmo som se repetia: ping... ping... ping... Gotas caindo sem fonte, marcando o ritmo lento de algo que se movia por baixo da cidade. ******* Certa noite, um grupo pequeno se reuniu na igreja. O padre Matthews lia as Escrituras com as mãos trêmulas. “Deus nos prova” dizia ele. “E talvez o lago seja a prova.” Uma mulher respondeu do fundo, a voz rouca: “O lago é lembrança, padre. E Deus esqueceu.” O padre se virou. A mulher — Helen Grady, prima distante do xerife — estava de pé, os olhos refletindo a luz das velas. “Ele dorme dentro de nós” continuou ela. “Cada um é uma gota.” As pessoas começaram a recuar, mas Helen deu mais um passo. A pele dela brilhava, transparente, as veias escuras pulsando como pequenos rios. Quando abriu a boca, o som que saiu não era humano. Era o som do lago. Um murmúrio profundo, arrastado, cheio de ecos e vozes. As velas se apagaram. E, por um instante, todos viram — não com os olhos, mas na mente — a imagem de Sarah, flutuando sob a água, serena, os olhos abertos. Ela sussurrava algo, impossível de entender. Depois, o silêncio voltou. Quando as velas reacenderam, Helen havia sumido. Mas no chão, havia uma poça escura, pulsando. E no centro dela, o reflexo de um olho. ******* Henry Calder foi o primeiro guardião. Sarah, a última seladora. Mas agora não havia mais guardiões, nem selos. Havia apenas o corpo — o novo lar do medo. O lago deixará de ser um lugar. Agora era parte das pessoas. Parte da carne, do sangue, da lembrança. Enquanto Darrow’s Hollow tentava existir sob um céu sem estrelas, o som das gotas continuava, vindo de todos os lados. Devagar. Constante. Como um coração. Ping... Ping... Ping... E no meio da noite, alguém sussurrou, em voz baixa, de dentro da água que agora vivia em todos: "O olho nunca fecha."
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