O verão chegou cedo em Darrow’s Hollow.
As flores voltaram a crescer perto das cercas, e o som dos pássaros preenchia as manhãs como se nada tivesse acontecido.
Mas o lago permanecia diferente.
Calmo demais.
Claro demais.
Tão imóvel que refletia o céu com perfeição, sem uma única ondulação — como se fosse feito de vidro.
As pessoas começaram a chamá-lo de “espelho de Deus”.
As crianças, que antes tinham medo de se aproximar, agora brincavam nas margens, atirando pedras que nunca faziam som ao tocar a superfície.
E quando alguém se inclinava para olhar, via o reflexo límpido — bonito, tranquilo — mas havia algo estranho.
O reflexo sorria.
Mesmo quando quem olhava não sorria.
********
Sarah Cole havia desaparecido três meses antes.
Nenhum corpo foi encontrado.
Nenhum sinal, nenhuma explicação.
A cidade a considerava morta, mas havia quem jurasse vê-la na beira do lago nas noites sem lua, parada, observando.
Uma mulher de cabelos longos, pálida, calma, com o olhar voltado para a água.
E ao redor dela, o lago parecia respirar.
Tom Grady, o xerife, também estava desaparecido.
A delegacia permanecia trancada, com as paredes cobertas de mofo.
O distintivo dele, encontrado na lama, agora descansava sobre o altar da igreja.
O padre rezava por ele todos os domingos — mas, nos dias de chuva, ninguém ousava entrar no templo.
Diziam que as velas apagavam sozinhas, e o som da água escorria pelas paredes, mesmo sem goteiras.
*****
Em uma manhã abafada, um homem apareceu à porta da antiga biblioteca.
Henry Calder.
Velho, cansado, mas vivo.
Tinha os olhos vermelhos de quem não dormia há dias e uma ferida aberta no braço.
Sarah havia desaparecido, mas o velho não deixara a cidade.
Não podia.
Alguém precisava lembrar.
Ele entrou, apoiando-se na bengala.
A bibliotecária o reconheceu, surpresa. “Senhor Calder… achei que o senhor tivesse ido embora.”
Ele apenas sorriu.
“O lago não deixa.”
Caminhou até o fundo da sala, onde livros mofados e papéis antigos ainda guardavam o cheiro do tempo.
Puxou uma caixa empoeirada e retirou de dentro um caderno — pequeno, encapado de couro.
As páginas estavam em branco.
Mas quando Henry passou o dedo sobre a capa, linhas começaram a surgir, lentas, como se escritas por dentro do papel.
E no topo da primeira página, formou-se o título:
“O Corpo e o Medo — por Sarah Cole.”
A bibliotecária recuou, o rosto pálido. “O que é isso?”
Henry fechou o livro devagar.
“O começo de outro selo.”
*****
Naquela mesma noite, o lago brilhou.
Não como antes, não um clarão, mas um brilho suave, constante, como se estrelas se movessem sob a superfície.
Os peixes flutuaram mortos pela manhã, com as escamas cobertas por uma camada fina e translúcida, como vidro.
As plantas à beira d’água começaram a secar.
E então vieram os sonhos.
Os moradores começaram a sonhar com a mesma coisa:
Estavam de pé, no meio do lago, sobre a água.
Tudo era silencioso, e no reflexo abaixo, viam não seus próprios rostos, mas o de Sarah.
Ela os encarava sem expressão e dizia apenas uma frase:
"O lago está dentro de vocês."
Os sonhos se repetiam todas as noites.
Alguns começaram a adoecer — febres altas, calafrios, marcas de água nos lençóis pela manhã.
Outros acordavam com o cheiro do lago impregnado na pele.
E alguns… simplesmente não acordavam.
********
Henry sabia o que estava acontecendo.
Ele via os sinais.
Os olhos das pessoas começaram a mudar, um brilho discreto, reflexivo.
A água tentando se lembrar.
O selo havia se fechado, mas o preço do esquecimento estava sendo pago.
Sarah estava lá embaixo, no coração do lago, guardando o que restou da criatura.
Mas o medo, esse, nunca morria.
Ele encontrava outro corpo.
E agora, Darrow’s Hollow respirava medo novamente — só que o som não vinha mais das águas.
Vinha de dentro das casas.
De dentro das pessoas.
E toda noite, sob o céu sem vento, o lago permanecia quieto, refletindo o mundo com perfeição.
Mas se alguém olhasse fundo o bastante, veria que o reflexo piscava.
Devagar.
Observando.
*************
Os primeiros sinais apareceram discretos.
Olhos mais úmidos que o normal.
Pupilas que refletiam demais, mesmo em ambientes escuros.
Mãos frias.
Um tremor leve, quase imperceptível, sempre que alguém mencionava o lago.
Henry Calder foi o primeiro a perceber.
Estava sentado no banco da praça, observando as pessoas, quando notou uma mulher — Margaret Holloway — inclinada sobre o poço central.
Ela murmurava algo em voz baixa, o rosto muito próximo da superfície.
Quando Henry se aproximou, viu que a água do poço tremia.
Mas não havia vento.
“Senhora Holloway?”
Ela se virou devagar, o rosto calmo demais.
Os olhos… refletiam o céu.
Literalmente.
Como se fossem espelhos.
“Ele está crescendo” disse ela, sorrindo.
“Quem está crescendo?” perguntou Henry, mantendo a voz firme.
Ela piscou, e uma única lágrima escorreu.
Mas não era água.
Era uma gota espessa, translúcida, quase viscosa.
“Ele” respondeu, e mergulhou de volta no poço, sem hesitar.
Henry gritou, tentou alcançá-la, mas só viu o reflexo distorcido.
A superfície se fechou como vidro.
Quando os moradores chegaram, nada restava além da água parada.
**********
Nas semanas seguintes, o mesmo aconteceu com outros.
Um pescador foi encontrado na margem, de joelhos, os olhos abertos, o corpo rígido, o rosto coberto por uma camada fina de água sólida.
Uma criança desapareceu no banho.
O espelho do quarto de um homem se partiu sozinho e, do outro lado, ele viu o próprio reflexo sorrindo antes do vidro virar líquido e engoli-lo.
Darrow’s Hollow voltou a respirar medo.
Mas agora o lago não era o inimigo.
Ele estava em todos.
********
Henry passou a noite revirando livros antigos, papéis que restaram das escavações, páginas que o tempo não apagou.
As mãos tremiam enquanto lia, o som das gotas do telhado o acompanhando.
Entre símbolos e anotações, encontrou uma frase quase apagada, escrita em latim antigo.
Traduziu com cuidado, sussurrando:
“Quando o corpo lembrar, o selo se tornará carne.”
Ele parou.
O corpo.
O medo.
Tudo fazia sentido agora.
A criatura — ou o que restou dela — não estava mais presa à água.
Ela havia aprendido.
O lago a ensinara a refletir, e o reflexo encontrou abrigo nos humanos.
O selo não dormia.
Ele caminhava.
Dentro de cada um.
*******
Na mesma noite, Henry ouviu batidas na porta.
Três, lentas, firmes.
Ele se levantou com dificuldade, a bengala ecoando no chão de madeira.
Quando abriu, viu uma mulher ensopada, o rosto pálido, o olhar distante.
“Entre” disse ele. “Está chovendo?”
Ela balançou a cabeça.
“Não.”
A água escorria do cabelo dela, caindo aos pés, formando uma poça que se movia levemente.
“Eu… eu o vi” sussurrou. “No espelho.”
Henry assentiu. “O que ele disse?”
Ela respirou fundo. “Disse que é hora de lembrar.”
O velho sentiu o peito apertar.
“A lembrança traz o selo de volta.”
A mulher ergueu o olhar.
“E você, Henry? Você lembra?”
Ele congelou.
O som da chuva cessou.
O relógio parou.
E, por um instante, o silêncio pareceu vivo.
“Eu lembro” respondeu.
Ela sorriu — e o sorriso não era humano.
A pele dela começou a brilhar, fina como água sob luz.
Os olhos tornaram-se espelhos perfeitos.
“Então ele virá por você.”
Henry deu um passo atrás.
Mas quando olhou para o chão, viu que a poça aos pés dela agora se espalhava em todas as direções, subindo pelas paredes, como veias líquidas.
A casa começou a respirar.
E do teto, gotas começaram a cair — espessas, frias, em espiral.
O velho ergueu o olhar e murmurou:
“Ele encontrou o corpo.”
A mulher deu um passo à frente, estendendo a mão.
“Não tenha medo, Henry. Você foi o guardião. Agora, será o espelho.”
A água se ergueu atrás dela como uma onda silenciosa.
E, quando a luz apagou, só o som das gotas permaneceu.
******
Na manhã seguinte, o sol voltou.
Os vizinhos encontraram a casa de Henry vazia.
No chão, um livro aberto — o mesmo diário de Sarah, agora com novas páginas escritas.
A última frase dizia:
“A carne lembra. O lago respira.”
E ao lado do livro, uma marca circular no chão — perfeita, lisa, brilhante.
Como se um espelho tivesse se formado e desaparecido.
**-***
Naquela noite, uma criança acordou com sede.
Foi até a pia, abriu a torneira e esperou a água cair.
Mas a água não caiu.
Ela subiu.
Formou uma gota suspensa no ar.
E dentro dela, um olho.
O menino ficou parado, hipnotizado.
Até ouvir a voz suave, familiar, que vinha de dentro da gota:
"Durma, pequeno. Eu estou aqui."
A gota estourou.
E o som do lago voltou a ecoar em Darrow’s Hollow.
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No início, parecia uma doença.
Pele fria, olhos marejados, febre noturna.
Os médicos — os poucos que ainda restavam — chamavam de “febre do reflexo”.
Mas ninguém melhorou.
E todos que olhavam muito tempo para a água, ou para o próprio espelho, começavam a mudar.
A pele tornava-se translúcida, quase vidrada.
O suor escorria espesso, como condensação.
E, em certos ângulos, o rosto parecia duplo — um reflexo ligeiramente atrasado, acompanhando cada movimento.
*****-
A cidade tentou seguir, fingindo normalidade.
A feira reabriu, o sino da igreja tocava, e as crianças voltavam a correr pelas ruas.
Mas havia algo errado em cada olhar.
As pessoas não piscavam com a mesma frequência.
Os reflexos nas vitrines pareciam olhar para direções diferentes.
E o som da água voltará — não mais vindo do lago, mas de dentro das paredes, dos canos, dos corpos.
*****
Na velha casa de Sarah Cole, o diário repousava sobre a mesa, aberto.
As páginas secas pareciam vibrar levemente, como se alguém respirasse nelas.
E à noite, quando o vento soprava, as palavras mudavam sozinhas.
Letras se movendo, formando novas frases, escritas por uma mão invisível:
“O selo dorme.
O corpo sonha.
O medo lembra.”
********
Em uma tarde cinzenta, três homens foram encontrados parados no meio da estrada.
Imóveis.
De costas para a cidade.
As roupas secas, mas os rostos molhados.
Quando o delegado interino tentou chamá-los, nenhum respondeu.
E, ao tocá-los, percebeu que a pele deles era fria, dura, e refletia a luz como vidro polido.
Dentro dos olhos, um brilho pálido.
Como o reflexo do lago sob a lua.
Ele recuou, assustado, e os três viraram-se ao mesmo tempo.
O movimento foi lento, sincronizado.
Os lábios se abriram em uníssono, e uma voz — não três, mas uma só — falou, com o som de água escorrendo:
"Ela ainda lembra."
Depois disso, a cidade parou de fingir.
As casas foram lacradas.
Os poços, cobertos.
Os espelhos, quebrados.
Mas nada adiantava.
A água encontrava caminho — pelas paredes, pelas veias, pelos sonhos.
Os moradores começaram a ouvir vozes à noite.
Nem gritos, nem murmúrios — apenas respirações próximas, calmas, dentro dos quartos.
Alguns diziam sentir o peso de uma mão fria sobre o peito enquanto dormiam.
Outros acordavam molhados, como se tivessem sido arrastados até o lago e devolvidos.
E, em cada casa, um mesmo som se repetia:
ping... ping... ping...
Gotas caindo sem fonte, marcando o ritmo lento de algo que se movia por baixo da cidade.
*******
Certa noite, um grupo pequeno se reuniu na igreja.
O padre Matthews lia as Escrituras com as mãos trêmulas.
“Deus nos prova” dizia ele. “E talvez o lago seja a prova.”
Uma mulher respondeu do fundo, a voz rouca:
“O lago é lembrança, padre. E Deus esqueceu.”
O padre se virou.
A mulher — Helen Grady, prima distante do xerife — estava de pé, os olhos refletindo a luz das velas.
“Ele dorme dentro de nós” continuou ela. “Cada um é uma gota.”
As pessoas começaram a recuar, mas Helen deu mais um passo.
A pele dela brilhava, transparente, as veias escuras pulsando como pequenos rios.
Quando abriu a boca, o som que saiu não era humano.
Era o som do lago.
Um murmúrio profundo, arrastado, cheio de ecos e vozes.
As velas se apagaram.
E, por um instante, todos viram — não com os olhos, mas na mente — a imagem de Sarah, flutuando sob a água, serena, os olhos abertos.
Ela sussurrava algo, impossível de entender.
Depois, o silêncio voltou.
Quando as velas reacenderam, Helen havia sumido.
Mas no chão, havia uma poça escura, pulsando.
E no centro dela, o reflexo de um olho.
*******
Henry Calder foi o primeiro guardião.
Sarah, a última seladora.
Mas agora não havia mais guardiões, nem selos.
Havia apenas o corpo — o novo lar do medo.
O lago deixará de ser um lugar.
Agora era parte das pessoas.
Parte da carne, do sangue, da lembrança.
Enquanto Darrow’s Hollow tentava existir sob um céu sem estrelas, o som das gotas continuava, vindo de todos os lados.
Devagar.
Constante.
Como um coração.
Ping...
Ping...
Ping...
E no meio da noite, alguém sussurrou, em voz baixa, de dentro da água que agora vivia em todos:
"O olho nunca fecha."