O tempo apagou o nome, mas não o lugar.
Nas cartas antigas, nas histórias sussurradas em bares, Darrow’s Hollow ainda existia — uma cidade que ninguém encontrava, mas todos pareciam lembrar.
Alguns diziam que ficava no Maine.
Outros, que nunca esteve em lugar algum.
Mas o lago… o lago ainda estava lá.
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Vinte e cinco anos depois, o mundo seguiu.
As estradas mudaram, os mapas se atualizaram, e as pessoas aprenderam a esquecer.
Mas, em noites de chuva, algumas cidades relatavam um fenômeno estranho:
Lagos formados da noite para o dia.
Espelhos d’água perfeitos em terrenos secos.
E, ao amanhecer, o reflexo de uma mulher parada à beira, com os olhos abertos.
Os cientistas chamavam de “anomalias hídricas localizadas”.
Mas os que viam — os que realmente viam — sabiam que havia algo vivo nas águas.
Algo antigo.
Algo paciente.
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Eleanor Brooks era jornalista.
Trinta e nove anos, voz firme, cética, mas cansada de reportar tragédias previsíveis.
Quando recebeu uma ligação sobre “o lago que nasceu da chuva” numa cidade que não constava em nenhum mapa, achou que fosse delírio.
Mas algo na voz do homem ao telefone a fez ouvir.
“Ele apareceu ontem” dizia ele. “No meio da estrada. Um lago. Perfeito.
E há algo nele, senhora.
Algo que… olha de volta.”
Ela pegou o carro na manhã seguinte.
O GPS enlouqueceu a vinte quilômetros da entrada.
O rádio chiava.
E o ar começou a mudar — mais frio, mais denso, com cheiro de terra molhada, mesmo sob o sol.
A placa enferrujada dizia apenas:
DARROW’S HOLLOW.
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A cidade parecia abandonada, mas não velha.
As casas estavam intactas, as portas entreabertas, o relógio da torre marcando o mesmo horário em todos os mostradores: 03h15.
Eleanor caminhou até a praça.
O ar era pesado.
O silêncio absoluto.
No centro, um espelho d’água circular refletia o céu com perfeição.
Sem ondulações.
Sem vento.
Sem som.
Ela se abaixou, observando o próprio reflexo.
Tudo normal… até piscar.
O reflexo não piscou.
Ela recuou, o coração acelerando.
Pegou o gravador e falou baixo:
“Eleanor Brooks, 17 de agosto, Darrow’s Hollow.
Algo está errado aqui.
O ar vibra.
O reflexo é... independente.”
Um som cortou o silêncio.
Longe.
Fraco.
Como passos sobre madeira molhada.
Eleanor girou o corpo.
Ninguém.
Mas o som continuava… mais perto.
Plash.
Plash.
Plash.
Vinha do lago.
Ela se aproximou devagar, respirando fundo.
No reflexo, uma sombra se movia atrás dela.
Mas quando virou, nada havia.
A sombra, porém, continuava ali.
No espelho.
E, aos poucos, foi tomando forma.
Primeiro um rosto.
Depois ombros.
Depois um corpo inteiro — o dela.
O reflexo sorriu.
E falou.
“Você lembra?”
Eleanor caiu de costas, o gravador escapando da mão.
A voz era a sua, mas mais velha, mais profunda.
“Não tenha medo” disse o reflexo. “Você está voltando.”
“Voltando?”
O espelho tremeu.
O som das gotas começou — pingos lentos, ritmados, ecoando nas paredes da praça.
Eleanor correu até o carro, mas as ruas eram todas iguais.
Virava e caía sempre no mesmo lugar.
A praça.
O lago.
O reflexo.
O céu escureceu, e o relógio da torre moveu o ponteiro um minuto.
03h16.
O reflexo agora estava de pé, fora da água.
Não molhado.
Não sólido.
Mas real.
E a voz que veio, dessa vez, não era dela.
Era a voz de uma mulher.
Calma.
Serena.
Familiar.
"Não tema o espelho, Eleanor.
Você apenas lembra o que o mundo esqueceu."
O nome soou estranho.
Como se alguém o tivesse escolhido por ela.
“Quem é você?”
A mulher sorriu.
“Sarah Cole.”
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A água se moveu pela primeira vez.
Ondulações suaves, precisas.
E o som que veio do lago era o mesmo que outrora fez uma cidade desaparecer:
respiração.
Baixa.
Constante.
O vento soprou, e as janelas bateram.
A neblina subiu, encobrindo tudo.
Quando Eleanor tentou dar mais um passo, sentiu o chão ceder.
Olhou para baixo.
A grama se transformava em água.
O lago estava crescendo.
Respirando.
Acordando.
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Horas depois, um motorista que cruzava a estrada jurou ver uma mulher de pé no meio da névoa, coberta de água até a cintura.
Ela olhava para algo invisível à sua frente.
E, quando ele diminuiu a velocidade, percebeu que não havia estrada — apenas um lago perfeito, circular, refletindo o céu.
No centro, duas silhuetas imóveis.
Uma jovem.
Outra, mais velha.
De mãos dadas.
E ambas, sorrindo.
***********"
O motorista foi o último a ver Darrow’s Hollow.
Dias depois, quando a equipe de resgate chegou, encontrou apenas terra seca e rachada.
Nenhum sinal de água.
Nenhum sinal de cidade.
Mas, no solo, espirais marcadas — as mesmas do selo antigo.
E, sob a luz do entardecer, o som distante de uma gota caiu.
Ping.
O reflexo retornara.
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O som da água era constante.
Não o barulho de um rio, nem de chuva.
Era um som interno, como o próprio coração.
Eleanor abriu os olhos.
Não havia céu, nem chão.
Apenas um espaço infinito feito de reflexos — superfícies líquidas que se curvavam, flutuavam e se tocavam como paredes vivas.
Em cada uma delas, imagens.
Rostos.
Lugares.
Fragmentos de vida.
Ela flutuava, mas sentia peso.
O ar era espesso, frio.
Quando tentou falar, a voz ecoou mil vezes, voltando de todas as direções.
“Alô? Há alguém aqui?”
Uma resposta veio de imediato, calma, feminina:
“Há muitos aqui, Eleanor. Você apenas não se lembra deles.”
A voz era inconfundível.
Sarah Cole.
Eleanor girou, e à sua frente, a figura se formou — translúcida, serena, com olhos que refletiam a própria paisagem.
Não havia sombra, nem luz.
Tudo emanava dela.
“Você é real?”
Sarah sorriu.
“Sou o que resta. A lembrança que mantém o lago adormecido.”
Eleanor olhou ao redor.
“Então… isso é o lago?”
“É o que ele se tornou. O reflexo do que o mundo esqueceu. E agora, ele usa você para lembrar.”
Eleanor respirou fundo, sentindo o ar vibrar.
“Lembrar o quê?”
“Tudo o que foi apagado para que o medo sobreviva.”
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As imagens começaram a se mover nas paredes líquidas.
Ela viu pessoas que nunca conheceu.
Viu o rosto de Henry Calder, idoso, escrevendo algo em um livro que queimava sem fogo.
Viu o xerife Tom Grady caminhando por uma estrada submersa, com os olhos abertos e as mãos cobertas de espirais.
Viu crianças brincando na água, rindo, até que os reflexos delas paravam de rir.
E então, viu Sarah.
A mesma mulher diante dela, em outro tempo, mergulhando no lago e desaparecendo sob a superfície.
E entendeu.
“Você nunca saiu daqui.”
“Nem podia e não posso” respondeu Sarah. “Eu me tornei o selo. O que me mantém viva é o que mantém o mundo esquecido.”
Eleanor se aproximou.
“E por que eu? Por que me trouxe?”
“Porque o selo precisa ser lembrado, não apenas temido. Você escreve, Eleanor. As palavras são portas. E o lago quer ser contado… Não esquecido.”
**********
Ela tocou a superfície mais próxima.
A água ondulou, e uma imagem surgiu: a cidade.
Mas não como estava — e sim como seria.
Ruínas cobertas por musgo, árvores crescendo sobre as casas, o lago ainda ali, imóvel, como o olho de um deus adormecido.
E, nas bordas, pessoas.
Muitas.
Estranhas, com olhos brilhantes, observando o reflexo.
“Quem são eles?”
“Os novos espelhos” disse Sarah. “O reflexo se espalhou. Cada pessoa que olha para a água carrega um fragmento do lago agora.”
Eleanor recuou.
“Então o que eu vi, aquele lago no meio da estrada, era o lago tentando voltar?”
“Não” respondeu Sarah. “Era ele lembrando onde esteve. Cada lembrança cria uma nova margem.”
O chão começou a vibrar.
Ondas de luz se formaram sob os pés de Eleanor.
A água reagia a cada respiração dela, moldando o ambiente ao redor.
“O que está acontecendo?”
“Você está começando a lembrar,” disse Sarah.
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As visões tornaram-se mais intensas.
Eleanor viu a criação da criatura — o culto antigo, o sangue derramado, o primeiro selo.
Viu o momento em que Ethan Cole selou o lago com o próprio corpo, e o instante em que Sarah o substituiu.
Viu tudo, de forma tão clara que o medo se tornou familiar.
E então, algo mudou.
Entre as imagens, havia agora coisas que não pertenciam a Darrow’s Hollow:
Cidades modernas, cheias de espelhos e luzes.
Arranha-céus refletindo o céu.
Ruas cobertas de chuva.
E, em cada reflexo, o mesmo brilho.
O mesmo olhar.
“Meu Deus…” sussurrou Eleanor. “Ele se espalhou.”
Sarah assentiu.
“O lago não precisa mais de Darrow’s Hollow. O mundo se tornou o espelho.”
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De repente, tudo escureceu.
A água começou a ferver, e o chão se abriu sob elas.
Sarah olhou para baixo, séria.
“Ela está vindo.”
“Quem?”
“A Criatura. Aquela que nunca dorme.”
Eleanor tentou correr, mas a água a puxava.
Sarah segurou seu braço.
“Escute-me, Eleanor.
O lago precisa lembrar, mas não precisa dominar.
Se quiser conter o reflexo, escreva.
Conte o que viu.
A palavra é o novo selo.”
E então, a superfície se rompeu.
Uma força colossal emergiu do fundo — a Criatura, feita de milhares de reflexos humanos, olhos girando em espirais, bocas abertas sem som.
Sarah empurrou Eleanor para cima.
“Suba. Saia daqui… Vai, vai, vai.”
“E você?”
“Eu já sou o lago.”
A água a engoliu antes que Eleanor pudesse fazer algo.
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Eleanor acordou na margem, sozinha.
A cidade ao redor havia desaparecido novamente.
O lago permanecia imóvel, o céu espelhado.
Nas mãos dela, um caderno — o mesmo diário que pertencera a Sarah, mas agora em branco.
Na capa, uma frase gravada em letras d’água:
“Escreva o que lembra, antes que o mundo se olhe no reflexo.”
Ela olhou o horizonte.
O reflexo sorriu.
E, pela primeira vez, Eleanor sentiu que a história ainda não tinha acabado.
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O amanhecer chegou pesado.
O céu era de um cinza pálido, e o lago, mais uma vez, parecia vidro sólido.
Nenhum vento.
Nenhum som.
Apenas Eleanor Brooks sentada na margem, o diário de Sarah aberto sobre os joelhos.
Ela não sabia quanto tempo havia se passado.
Horas, dias, talvez semanas.
O relógio quebrado em seu pulso ainda marcava 03h16.
O mesmo horário da última batida da criatura.
Quando abriu o diário, as páginas começaram a se mover sozinhas.
Não havia tinta, mas as palavras surgiam como condensação, se formando na superfície do papel molhado:
“Toda lembrança busca corpo.
Toda memória quer forma.
E todo olhar é um convite.”
Eleanor respirou fundo, a garganta seca.
Lentamente, pegou uma caneta e começou a escrever.
“Meu nome é Eleanor Brooks.
Fui jornalista.
Agora sou testemunha.
O lago se move.”
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As primeiras gotas caíram do céu sem nuvem.
Pingos isolados, densos, gelados.
Cada um deixava uma marca redonda no chão, como pequenos espelhos líquidos.
Ela continuou escrevendo, o som das gotas marcando o ritmo da narrativa.
“Sarah Cole não morreu.
Ela se fundiu.
Ela é o lago… e o lago é tudo o que lembra.
Cada espelho, cada reflexo, cada gota d’água é um fragmento dela.
O selo não foi quebrado.
Ele se espalhou.”
Quando parou para respirar, notou o reflexo da própria mão no papel.
Mas a imagem não a seguia.
A mão refletida escrevia sozinha, mais rápido, as letras distorcidas se multiplicando até preencherem todas as páginas.
Ela tentou fechar o diário, mas o caderno pulsava como um coração.
E, no centro da página, uma nova frase se formou — não escrita, mas gravada por dentro da fibra:
“O corpo do lago é o mundo.”
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Eleanor levantou os olhos.
A água do lago não estava mais imóvel.
Ondulações suaves, regulares, percorriam a superfície como respiração.
O reflexo do céu tremia.
E, por um instante, ela viu — não a si mesma — mas Sarah.
De pé, sob a água.
Sorrindo.
Os lábios se movendo em silêncio.
Eleanor se aproximou, ajoelhando-se à beira.
“Eu escrevi” disse.
“Agora você lembra.”
A imagem de Sarah assentiu.
“E você vive.”
“Por quê eu?”
“Porque o mundo precisa de quem conte, não de quem tema.”
As ondas se intensificaram.
A água subiu lentamente, tocando as pontas dos dedos de Eleanor.
Estava morna, viva.
E, ao toque, ela viu — cidades distantes, mares, rios, chuva caindo sobre telhados.
Em cada reflexo, um lampejo dourado.
Um olho.
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De repente, o ar vibrou.
O diário brilhou e se dissolveu, transformando-se em filetes de luz que subiram para o céu.
Eleanor ficou imóvel, sentindo o peso de algo antigo passar através dela.
Não dor.
Não medo.
Apenas lembrança.
Quando abriu os olhos novamente, o lago estava calmo.
O diário havia desaparecido.
Mas na terra, onde antes estavam suas pegadas, surgiram espirais marcadas — três, entrelaçadas, idênticas ao selo antigo.
Ela sorriu, exausta.
Sabia o que aquilo significava.
O lago dormia.
Mas o reflexo agora vivia em outro lugar.
Nas águas.
Nos olhos.
Nas telas.
Sem perceber, Eleanor tirou o celular do bolso.
A tela preta refletiu seu rosto.
Por um instante, tudo parecia normal.
Depois, o reflexo piscou — um movimento atrasado.
E o sorriso que veio depois não era o dela.
A voz de Sarah ecoou dentro da mente dela:
"Enquanto houver reflexo, haverá lembrança."
O telefone caiu no chão.
A tela rachou.
E nas linhas de rachadura, pequenos olhos se formaram — centenas, girando lentamente, observando.
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Dias depois, caminhoneiros relataram ver um lago novo na estrada que levava a Bangor.
Um círculo perfeito, formado durante a madrugada.
Na margem, um caderno encharcado.
E dentro dele, uma frase única, escrita à mão:
“O Olho na Água nunca fecha.”
Quando o sol se pôs naquela noite, os reflexos do mundo começaram a mudar.
Em espelhos, telas, janelas e poças, uma mesma imagem surgia por segundos antes de desaparecer:
um olho.
Calmo.
Vigilante.
E sob ele, o reflexo de uma mulher — ora Sarah, ora Eleanor.
O ciclo havia começado de novo.
O lago estava em toda parte.
E dessa vez, ninguém perceberia até ser tarde demais.