Capítulo-I. O estranho
" Coração não escolhe ele apenas abre as portas e acolhe quem agrada os olhos "
Acélia
Início de tudo.... 5 anos antes....
Eu não gosto da escola e detesto as meninas que sempre implicam comigo por tudo. Sou aquela típica menina que todos os outros alunos olham com soberba. Eu sou a esquisita da sala.
Ontem papai foi chamado pela diretora porque dei um chute no meio das pernas de uma garota. Em minha defesa, a Matilda puxou minhas trancinhas e me chamou de sonsa.
Não gostei. Não sou sonsa, ela que é.
Levei aquela bronca.
— Quantas vezes já te disse que precisa reprimir os seus impulsos, Acélia?
— Muitas, papai.
— Então por que bateu na Matilda?
— Ela vive implicando comigo, puxou o meu cabelo.
— Isso é razão suficiente, minha filha?
Nem cheguei a abrir a boca, porque a resposta veio dele:
— Não, Acélia. Seja prudente, meu anjo.
Olhei para seus olhos azuis, tão diferentes dos meus, que são escuros como os da minha mãe. As lembranças que tenho dela me fazem chorar e sorrir. A saudade que me invade é intensa. O que nos restou foram as fotos. Às vezes pego meu pai com uma delas em mãos, suspirando. Ele acha que não vejo, mas vejo, e fico quieta, porque em mim também dói.
— Promete que não fará mais isso? — pediu, atendendo ao telefone que não parava de tocar. Era chato demais. Meu pai vivia dentro do escritório, no meio de papéis e telefonemas.
— Prometo — disse, cruzando os dedinhos atrás das minhas costas.
— Você me lembra muito a sua mãe — falou, chamando-me para perto com um gesto feito com a mão.
Fui correndo e abracei meu pai, enquanto ele dizia “alô” para quem estava ligando.
— Te amo, pai.
— Também, princesa — respondeu, tampando o microfone do aparelho.
Saí do escritório correndo e trombei com Margoth, minha babá. Mas prefiro dizer cuidadora, afinal tenho doze anos, não sou nenhum bebê.
— Acélia, o que sempre falo? — me repreendeu.
— Não correr pelo corredor. Mas se o nome é corredor, é porque foi feito para correr.
A mulher estreitou o olhar em minha direção.
— Banho, Acélia. Vamos lavar os cabelos.
— Outra vez? — bati o pé no chão.
— Claro, quer pegar piolhos?
Arregalei os olhos, assustada. Não queria de forma alguma aqueles monstrinhos na minha cabeça. Da última vez que fui infestada, quase arranquei os dedos de tanto coçar. Balancei a cabeça em negação, olhando para Margoth.
— Então vamos, mocinha. Hora do banho.
Caminhei pela casa até a escada. Subimos os degraus em silêncio.
— Margoth, você namora? — perguntei, curiosa.
— Que pergunta é essa, Acélia?
— Ora, uma pergunta. Algumas meninas do oitavo ano estavam falando sobre namorados. Achei nojento. Falavam sobre beijos e abraços, essas coisas de casal.
— Falavam somente sobre isso, Acélia? — perguntou com certa preocupação, que não entendi.
— Sim.
— Você ainda é pequena, mas algum dia seu coração vai pulsar por um menino, e ele será o seu primeiro amor. O primeiro amor é lindo, mágico. Depois tudo acontece com suavidade, sem pressa. Mas não agora, porque você é uma menina e precisa apenas focar nos estudos.
— E o seu, já pulsou por alguém?
— Pulsou, Acélia. Rômulo é o meu marido.
— Ah, não sabia.
— Casamos há pouco, nem todos sabem.
Entramos em meu quarto. Margoth separou a roupa para eu vestir e, paciente, desfez minhas tranças.
— Seu pai falou que brigou na escola outra vez, Acélia.
— Elas não gostam de mim, Margoth. Falam que sou sonsa, órfã de mãe... outro dia chutaram minha mochila. Não vou ficar quieta, Margoth.
— Conte tudo ao seu pai. Ele precisa saber o que anda enfrentando na escola.
— Papai já sofre com a perda da mamãe. Não quero trazer mais sofrimento.
— Ah, menina, você é o tesouro do senhor Ricardo. Nada que venha de ti o fará sofrer.
— Mas se ele souber que sofro nas mãos das meninas, vai sofrer por saber que sofro.
Entrei na banheira e Margoth começou a lavar meu cabelo. O banho durou alguns minutos. Depois de pronta e devidamente vestida, desci para o almoço e segui com o motorista para o curso de idiomas.
As ruas de Cascais seguiam com a temperatura em 23 graus. Pessoas caminhavam para todos os lados e eu seguia com a minha vidinha de engolir sapos.
— Muito calada, mocinha. Costuma falar bastante — Arjemiro comentou, olhando-me pelo espelho interno do carro.
— Está chegando o aniversário do papai. Ele não gosta de festa. Estou pensando em um presente. Me ajuda a escolher?
— Ah, senhorita, o que acha de um relógio de pulso?
— Dei no ano passado.
— Gravata?
— Aquela cheia de borboletas ele nunca usou.
— Perfume?
— Ele tem vários frascos cheios, Arjemiro.
— Compre uma camisa, ele vai gostar.
— Isso! Uma camisa cor de rosa. Eu gosto de rosa.
— Menina Acélia, compre uma cor que o senhor Ricardo goste.
— Preto?
Arjemiro balançou a cabeça em afirmação.
Meu pai adotou o luto eterno desde que minha mãe partiu, faz três anos. Nem música ele ouve mais. Dançar, nunca mais dançou. Eles dançavam juntos, os risos dos dois enchiam nossa casa na Colômbia. Tenho saudades de lá. Tudo era muito colorido, cheio de vida. Aqui em Cascais — que é uma vila portuguesa da Área Metropolitana de Lisboa, pertencente ao Distrito de Lisboa — apesar de ser lindo e com paisagens belíssimas, não tem a mesma alegria que ficou para trás na Colômbia.
Creio que meu pai nos trouxe para Portugal porque aqui é a terra da minha mãe, onde eles se conheceram e onde nasci. Meu pai é ítalo-americano, e minha mãe era portuguesa de sangue puro, com raízes inteiras nesta terra.
Eu nasci em Lisboa, mas aos quatro anos nos mudamos para a Colômbia, onde meu pai gerenciava alguns negócios. Até que o sol das nossas vidas foi roubado... e retornamos para a terra dela, da Adélia.
— Não sei, Arjemiro... vou pensar.
— Faça isso, mocinha.
O motorista encostou o carro, desceu e me escoltou até a entrada do imóvel enorme, com fachada pintada de branco e cheia de janelas.
— Venho te buscar no final da aula — avisou, e eu apenas balancei a cabeça em afirmação.
Subi as escadas até o segundo andar e procurei a sala de número nove. A porta de madeira, pintada de marrom, estava aberta. Entrei, recebendo olhares rápidos de alguns alunos que não implicam comigo. Apenas ignoram a minha presença.
Escolhi uma mesa para sentar, abri meu caderno e retomei o desenho que havia iniciado. Mas o raspar de garganta de alguém que adentrava na sala me fez fechar o caderno de desenhos e pegar outro.
Senhor Francisco começou a preencher a lousa com os verbos to be do maldito inglês que tanto me esforço para aprender.
As horas correram, e eu agradeci por isso.
Juntei minhas coisas, apressada.
— Não esqueça da redação em inglês, com mil e quinhentas palavras.
Olhei para o homem com meus olhos quase saltando das órbitas. Eu não sou boa com redação em português, quem dirá em inglês. A vida gosta de complicar tudo para mim.
Peguei minha mochila, coloquei no ombro e desci as escadas, louca para ir embora e me trancar no quarto. Queria jogar o joguinho de colecionar monstros — faltava um.
Saí pela porta no meio dos alunos, ouvindo as conversas sobre festas e passeios. Tudo tão cheio de vida, enquanto a minha era em branco e preto.
Pulei os dois últimos degraus e Arjemiro quase teve uma síncope. Notei que ele estava pálido e não estava sozinho: Pedro, um dos seguranças do meu pai, estava junto.
Estranho. Papai sempre fala que Arjemiro é meu guarda-costas.
— Aconteceu alguma coisa, Arjemiro? Por que Pedro está aqui?
— Nada, senhorita. Pedro veio apenas me acompanhar.
Segui com os dois “guarda-roupas com pernas” atrás de mim até o carro. Entrei, e Pedro sentou na frente. Coloquei o cinto de segurança, apertei os lábios ressecados.
O carro seguiu pela rua Birre. O silêncio dentro dele era estranho, e eu não gostava nem um pouco.
Durante o percurso, me concentrei em olhar a paisagem. A volta foi mais rápida que a ida para o curso.
Assim que o portão se abriu automaticamente, estranhei a movimentação de homens pelo jardim. Arjemiro encostou o carro. No momento em que fui abrir a porta, outro veículo entrou com tudo. Levei um susto, arregalei os olhos. Minhas mãos tremeram.
Olhei com curiosidade para o veículo escuro que parou. Apoiei minhas mãos no vidro. Minha boca se abriu ao ver um homem descer, após o motorista abrir a porta para ele.
Saí do torpor quando Pedro abriu a porta para mim. Só não caí de boca no chão porque ele me amparou.
— Cuidado, senhorita.
Minha cara ardeu de tanta vergonha. Arrumei a postura, passei pelo espaço entre o corpo de Pedro e a coluna do carro.
Olhei para o estranho, vendo-o movimentar-se com desenvoltura. Meu coração disparou. Coloquei a mão na boca, com medo de ele sumir.
O homem entrou na minha casa.
— Quem é? — perguntei a Pedro.
— Amigo do senhor Ricardo.
A resposta me fez pensar. Nunca o vi.
Passei a mão na mochila e entrei em casa às pressas, querendo saber quem era aquele homem com ar de soberano.
Recebi olhares dos homens que o acompanhavam. Não me incomodou, minha atenção estava em outra pessoa.
Escutei a voz do meu pai e, em seguida, outra soou, fazendo minhas pernas de minhoca seca bambearem.
Dei alguns passos pela sala, indo ao corredor. Esticando o pescoço na direção, minha mochila estava pendurada em um ombro.
— Sobe, mocinha. Seu pai está em reunião. Não pode atrapalhar.
Tive um sobressalto ao ouvir Margoth.
— Não vou, Margoth. Só quero dizer que cheguei. Vai ser rápido, eu prometo.
Mentira queria ver o moço giro ( moço bonito).
— Acélia, sobe agora. Vá fazer as tarefas da escola.
Subi frustrada, sem saber como explicar que queria apenas descobrir quem era o estranho que fez meu coração pulsar.