Capítulo-II. Vergonha
" Não há nada mais r**m do que sofrer com algum tipo de vergonha na frente de alguém a quem gastamos. "
Acélia
Faço a lição na força do ódio. Para ser bem sincera, faço a lição com uma pressa danada. Margoth me olha; normalmente eu faço corpo mole. Sempre faço. Fazer lição de casa é uma coisa chata: você já estuda tanto na escola, são tantos professores, tantos exercícios… para que ainda colocam mais trabalho para casa? Parece que nós não podemos respirar, temos que viver para estudar, estudar… Isso cansa. Os dedos da gente doem também.
Mas minha cabeça está no moço bonito.
Ele desce do carro com o ar de rei, de príncipe, e caminha altivo; eu só vejo meu pai caminhar assim.
É hipnotizante. Meus olhos grudam nele e não querem desviar.
Meu pai sempre recebe alguns amigos aqui em casa; afinal, ele é um homem de negócios. Mas eu não lembro do rosto desse amigo dele, e minha curiosidade é tanta que, quando Margoth precisa descer para auxiliar uma das funcionárias da casa, eu rapidinho mexo minhas perninhas finas de bambu e 'varo' o corredor a correr. Depois, desço as escadas olhando de um lado para o outro; não quero me deparar com ela, sei que se isso ocorrer, Margoth me faria voltar com um quente e dois fervendo.
Desço devagar e, quando vejo que não há ninguém por perto, corro, me escondendo atrás das colunas, até alcançar a direção do escritório do papai. O escritório dele fica numa parte mais ao fundo da casa, um ambiente silencioso perto da sala de música. Minha mãe tocava piano; meu pai adorava. Lembro que ela sentava, tocava, e ele ficava de longe, lendo o jornal e ouvindo. Enquanto isso, eu ficava esparramada no tapete, perdida entre lápis coloridos e folhas de papel. Bons tempos, aqueles tempos que não voltam mais. Agora tem o piano, existe uma sala, mas não temos mais Adélia.
Minha mãe era o coração da casa, que pulsava; e meu pai, o restante do corpo. Mas, de repente, o coração foi arrancado, e o corpo continua sobrevivendo, mesmo sem pulso.
Paro na porta do escritório do papai. São portas de madeira, duas bandeiras lindas de madeira maciça da cor marrom. Adoro o cheiro delas. Os grandes puxadores são de metal dourado, todo trabalhado, riquíssimo em detalhes. Me escoro nelas tentando ouvir alguma coisa e, de repente, dou de cara no chão.
— Ai ai… — é só o que consigo gemer. Minha bochecha é amassada.
“Céus, irei ficar deformada, com o rosto torto! Será que quebrei algum dente? Como vou sorrir agora?”
Estou tão preocupada em ter perdido algum dente e ter ganhado uma janelinha muito feia que nem reparo que há dois pares de olhos na minha direção.
— Acélia, o que significa isso? — pergunta meu pai, e só então me dou conta da besteira que faço. Levanto-me, toda sem graça, bochecha doendo e olhos cheios de lágrimas; afinal, dói, e dói para caramba.
No entanto, quando meus olhos voam na direção do homem que está sentado à frente da mesa de escritório do meu pai, minhas pernas começam a tremer… e muito. O olhar do homem bonito é intenso, com um tom dourado muito bonito, como se fosse o sol; os cabelos estão bem penteados e o terno alinhado. Meu coração pulsa.
— Não brigue com a bebê, Ricardo — fala o moço bonito.
“Agora ele é feio, e não mais bonito! É um sapo com verrugas! Eu não sou bebê, sua uma mocinha. Ele é cego ou o quê?”
Travo meus punhos frágeis com uma irritação crescente dentro de mim. Eu não sou mais bebê! Não uso fraldas, não chupo chupeta, não mamava mamadeira e nem durmo junto com os pais. Arrumo meu vestido, levanto o queixo e me aproximo do homem, olho dentro dos olhos dele:
— Eu não sou mais uma bebê, eu já sou uma mocinha — digo, e dou uma voltinha, jogando meu cabelo igual vejo as meninas do ensino médio da minha escola fazerem. Elas sempre conseguem os olhares dos meninos mais velhos; eles ficam igual a um bando de b***a olhando para elas.
Ouço o som de uma risadinha e olho para o meu pai; ele me chama com a mão e eu me aproximo.
— Deixa-me ver, fofinha, se você se machucou.
Travo os dentes. Justo agora meu pai tem que me chamar de “fofinha”, depois de eu ter dito para o homem bonito que sou uma mocinha. Meu pai analisa meu rosto, dá um beijinho na minha bochecha e diz:
— Vai passar, minha menininha linda.
— Eu não sou uma menininha, papai, eu sou uma mocinha — digo, fazendo bico.
Meu pai me olha estranho, franze a testa, joga um olhar rápido para o amigo e depois para mim. Eu nem me atrevo a olhar para o moço bonito; acho que, se fizer, vou desmaiar.
— O que está acontecendo, minha filha? Até ontem eu te chamava de minha menininha e você aceitava. De onde surge agora que, por ser uma mocinha, eu não posso te chamar de minha menininha?
Como eu iria explicar para meu pai que ele me está envergonhando na frente do moço bonito? Não tenho como; e muito menos dizer que meu coraçãozinho está ali, aos pandarecos, quase saindo do meu peito por causa da presença do moço bonito.
— Eu estou crescendo, papai! Não vê? Não chupo chupetas e nem uso fraldas, então não sou uma menininha.
Meu pai tenta segurar o riso, e aquilo me mata por dentro.
— Tudo bem, linda mocinha, pode me dizer por que razão você entrou daquele jeito e não foi informada que eu estava em reunião?
Travo, sem saber o que responder. Não quero colocar amargor em maus lençóis; afinal, ela fez o trabalho dela direitinho. Preciso de uma desculpa muito bem elaborada. Meu pai é um homem muito inteligente; se porventura eu mentisse, rapidamente descobriria e eu ficaria de castigo.
— Quero sair para comprar maquiagem.
Meu pai arregala os olhos, como se eu tivesse pedido para ele irmos a algum planeta roubar uma nave de algum alienígena.
— Como é, Acélia? Você quer comprar o quê?
— Oras, papai, quero comprar maquiagem. As moças usam batom, aquelas coisas todas que passam na cara. E, sinceramente, achei que fosse tinta de pintura. Queria ficar bonita, mas secou, e quando Margoth viu, perguntou onde era o circo. Expliquei que estava ficando bonita. Ela riu e depois me disse que, os produtos que as mulheres usam, chamam-se cosméticos. Eu tinha passado tinta guache na cara, pai. Pior: a tinta vermelha não tinha um gosto bom.
— Você comeu, Acélia? — pergunta exasperado.
— Ai, não, pai, passei na boca para ficar vermelho que nem os lábios da Margoth. Não gostei; a gente mete a língua e o negócio sai. O que a Margoth usa não sai.
Minha cara vai ao chão. Ouço uma gargalhada ressoando atrás de mim, e congelo; meu pai também não se controla. Os dois caem na gargalhada. Fico com tanta raiva e vergonha que saio do escritório correndo, com os olhos cheios de lágrima, subo a escada feito um relâmpago, esbarro em Margoth bem no início do corredor. Meu corpo treme, estou fria, cara quente de vergonha.
— Menina, onde você estava? — pergunta Margoth.
Não respondo, passo por ela correndo e bato a porta do meu quarto. Não quero ver ninguém. Me jogo em cima da cama e fico abraçada ao travesseiro. Como é que eu ia saber que tinta de pintura não serve para passar no rosto? Ninguém jamais me falou isso. Se eu tivesse minha mãe, ela me explicaria que tipo de produtos podemos usar no rosto para ficarmos coloridas e bonitas, sem parecermos palhaços.
Soluço de raiva, de vergonha, de timidez e também da saudade que sinto da minha mãe. De repente, escuto a porta se abrir, barulho de passos, e alguém se senta bem ao lado da minha cama. Mãos deslizam pelo meu cabelo e pelo cheiro do perfume floral; sei que é minha babá — melhor dizendo, cuidadora. Porque já sou uma mocinha; quem tem babá são criancinhas, bebês. Eu não preciso de babá.
— Ô, minha linda, o que houve para você subir as escadas chorando? O senhor Ricardo chamou a sua atenção? — diz ela, de forma carinhosa, tentando me fazer falar.
— Não quero falar mais, por favor, me deixa sozinha.
Mas suas mãos não param de deslizar pelos meus cabelos.
— Olha, você não precisa me dizer nada agora. Quando se sentir confortável, pode me procurar, e nós duas conversaremos.
Apenas balanço a cabeça e continuo ali, encolhida em cima da cama, abraçada ao travesseiro, chorando. Depois de alguns minutos, Margoth sai do quarto. Não choro mais, porém ainda estou triste e aborrecida. Continuo deitada, olhando para a parede. O silêncio lá fora e aqui dentro não traz tanto conforto.
Outra vez a porta se abre, mas desta vez os passos são mais pesados, e o cheiro do perfume do meu pai inunda o ambiente. Fecho os olhos, apertando firme as pálpebras e meu rosto com as mãos; não quero que ele me olhe. Escuto um respirar profundo; o colchão ao meu lado afunda. Sinto seus olhos sobre mim e, depois, outra respiração profunda, como se ele tomasse coragem para começar a falar.
— Sabe, minha filha… sei que estou em dúvida contigo. Você merece ter uma mãe, uma mulher, para poder instruir acerca dessas coisas do universo feminino. Realmente, você tem razão quando diz que já cresceu, que está uma mocinha, e eu deveria saber que suas curiosidades acerca desse universo surgiriam mais cedo ou mais tarde. Eu te peço desculpas por não ter dado devida atenção a isso.
A voz magoada do meu pai faz meu coração sofrer uma leve contração. Sinto-me m*l; ele já sofre tanto, eu não quero causar mais dor. Por essa razão, volto meu rosto, sento na cama e o abraço pelas costas. No mesmo momento, seus músculos antes tensos relaxam. Ele segura minha mão e me puxa para o colo.
Recebo um beijo na cabeça. Ele me abraça. Ficamos nós dois quietos, presos no momento de pai e filha: ele não sabendo lidar com minhas curiosidades, e eu magoada por ter passado vergonha.
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Até domingo! Abraços