Capítulo-III. Pelos
" Se te caem os pelos, imagina os cabelos quando souberes o que irei aprontar."
Acélia
Um dia depois do meu fatídico acidente no escritório do meu pai, quando caí de cara no chão, ele trouxe para mim uma caixa de couro escuro, fechada com cadeado. Eu tinha acabado de acordar, ainda estava meio sonolenta, com preguiça de me levantar da cama, pior ainda com preguiça de ir para a escola. O dia estava chuvoso e eu queria continuar abraçada com meu amorzinho: a minha girafinha de pelúcia.
Ele sentou-se, deu-me um beijo e disse:
— Bom dia, princesa. Antes de sair, o papai quer te dar um presente.
Estranhei. No entanto, abracei-o, dei um beijo em seu rosto e me sentei, coçando os olhos. Estava difícil mantê-los abertos.
— Presente, papai? Hoje é meu aniversário e eu me esqueci?
Sua mão grande bagunçou o meu cabelo, que se encontrava todo embaraçado. Tinha a leve sombra de um sorriso nos lábios. Tomou uma respiração ruidosa e só então colocou a caixa em meu colo. Apesar de mediana, a caixa não pesava muito. Meu pai fez surgir do bolso interno do seu paletó uma chave, que veio junto com um chaveiro. Na ponta, havia um coração de metal, e dentro deste, a gravação da letra “A”, centralizada.
Eu já tinha visto aquela chave, aquele chaveiro, na gaveta da penteadeira da mamãe. Meu coração apertou. Segurei a chave com muito carinho e olhei para meu pai.
— Era da mamãe? — perguntei com a voz um pouco embargada, tanto pelo sono quanto pela emoção.
Depois que minha mãe faleceu, meu pai simplesmente não deixava ninguém tocar em nada do que era dela, especialmente eu. Os sapatos, as roupas, as joias… tudo ele mantém guardado e arrumado como se ela fosse retornar, como se fosse passar pela porta com um sorriso lindo e chamar por nossos nomes. Coisa que nunca iria acontecer. No entanto, meu pai conserva viva a existência fantasmagórica dela. Fez dos seus objetos um altar, onde chora suas saudades e cultiva, mesmo que de um modo mórbido, a memória de Adélia.
— Sim, minha princesa. Ontem eu percebi que você está crescendo, e acredito que sua mãe ficaria muito feliz se eu te entregasse isso. Abre e vê se você gosta.
Rapidamente, introduzi a chave no cadeado. Girei e o clique foi como um despertar. Retirei a pequena peça e, quando abri a tampa, meus olhos brilharam, ficaram esgazeados. Foi difícil conter o sorriso, que era tão largo que doía meu maxilar.
— É para mim? É tudo meu? — perguntei, com o coração pulsando de alegria.
Era maquiagem. Muita maquiagem. Vários pincéis, batons, estojos, algumas coisas que eu nem sabia direito para que serviam. Mas a felicidade em mim não cabia.
— Sim, minha querida, são todos seus. Agora o papai precisa ir trabalhar. Se comporta direitinho e não dê trabalho para Margot.
Apenas balancei a cabeça em confirmação. Estava em êxtase. Eu tinha maquiagem! Não precisava mais pintar a minha cara com tinta guache. Meu pai cruzou a porta e eu deslizei meus dedos pelos cosméticos. Eu já era uma mulher grande. Tinha batons e aquele negócio que fazia a bochecha ficar vermelha, parecendo que levou uma chinelada na cara.
— Agora quero ver se aquele amigo bonitão do papai não vai olhar para mim e perceber que sou grande, e não um bebê, como falou.
Tratei de ir à minha penteadeira organizar tudo. Estava em êxtase, esperando pelo momento certo de usar aquelas coisas todas. Minha mãe sempre fazia uso em ocasiões especiais: jantares, festas, ou quando ia sair a sós com meu pai. No dia a dia, preferia ficar de rosto limpo. Dizia que a pele precisava respirar.
Estava fechando a gaveta quando Margot entrou, me apressando para o banho. Eu já estava atrasada, dizia ela, batendo palmas e apontando a direção do banheiro do meu quarto. Saí apressada e resmungando. Eu não queria ir para a escola, queria ficar em casa. Estudar é muito chato, principalmente quando tem na sala de aula aqueles alunos que implicam com você.
Mas não teve remédio. Fui para o banheiro, tirei a roupa e entrei na banheira. Iniciei meu banho sozinha, com Margot falando alto que não era para eu molhar os cabelos. Depois do banho, me troquei, desci, tomei meu café, peguei a mochila e fui com o motorista para a escola. Pelo meio do caminho, eu ficava me recordando de todos os produtos de cosmético que herdei da minha mãe.
Na minha mão, eu buscava no celular vídeos sobre pincéis e como aplicar os produtos. Acontece que tudo era muito complicado e difícil. Desisti e deixei quieto.
— Prontinho, chegamos, senhorita. — a voz de Arjemiro soou, tirando-me do torpor.
— Infelizmente, Arjemiro. Tenho vontade de atirar todos ao mar. Eles implicam muito comigo. Eu me defendo, e no final sou taxada de culpada. Pior: meu pai não quer que eu me defenda.
— Quer sim, mas que não uses os punhos — replicou Arjemiro.
— Mas assim nunca ficarão quietos!
— Vais aprontar alguma hoje, senhorita?
— Não, Arjemiro. — menti, e menti feio. Eu estava com uma caixa de baratas na mochila, para colocar nas mochilas das bonitas que se acham, só porque têm mãe.
Entrei na escola correndo meus olhos pelo local bem familiar. Construção feita de pedra clara e janelas largas. O cheiro salgado do vento adentra os corredores. Paredes em tom creme, com detalhes em azul profundo, lembrando o azulejo que corre nas veias deste país. As colunas são altas, erguidas com a soberba de quem a construiu para ser notada. E cada vidro dos vitrais reflete o sol dourado que a cobre ao amanhecer. Do lado de fora, os jardins são impecavelmente podados, com magnólias e oliveiras que guardam em silêncio as histórias que por aqui aconteceram.
No pátio, o som dos meus passos ecoava como se fossem compassos de uma música antiga. Subi as escadarias de mármore que me conduziam ao segundo pavimento. Estava atrasada, iria levar uma bronca daquelas do professor que estivesse em sala. Me perdi olhando o teto pintado com afrescos delicados, emoldurados por lustres de cristal que descem do alto feito cachoeiras de luz.
Parei de frente para a porta fechada. Dei dois toques com os nós dos meus dedos e a porta abriu. Para meu desprazer, fui recebida pelo professor de matemática. Odeio matemática! O negócio é difícil de aprender e como se apenas os números não fossem suficientes, um infeliz para complicaram mais, adicionou letras, fórmulas e a tal descoberta do valor de raízes, áreas de figuras e números incógnitos. Ninguém merece! Sequer vamos usar equações ao longo da vida. Tínhamos que aprender o básico e só.
A porta abriu-se e lá estava o senhor Manoel, com seus óculos ameaçadores. Seus olhos azuis se estreitaram em minha direção. A pele do pescoço foi ficando vermelha.
— Acélia, por favor, podes explicar-me como é que a matemática da pontualidade não se aplica a ti? A aula começou às oito horas e, como bem sabes, o tempo é uma constante que não espera por ninguém. O que estás a fazer aqui a esta hora? Se não aprendes a gerir o teu tempo, como esperas resolver problemas mais complexos? Vamos lá, que temos muito conteúdo para cobrir, e o relógio não para! — apontou na direção de uma mesa vazia.
Atravessei a sala, envergonhada, aturando os risinhos desgraçados dos demais alunos.
— O que podia se esperar de uma órfã? Crianças que não têm mães ficam preguiçosas — escutei um sussurro vindo de Ana.
— E o pai só pensa em trabalho e não gosta dela — disse Joaquim.
Travei os punhos. Abri a mochila e retirei os meus cadernos, enquanto a ponta do giz na mão do professor Manoel riscava a lousa escura. Eles iriam me pagar por falar de mim pelas costas.
O tempo passou e chegou o intervalo. Fiquei para trás, terminando os exercícios de matemática, e como sempre, bem complicados. Por mais que o professor Manoel explicasse várias e várias vezes para mim, parecia que estava falando em qualquer outro idioma difícil, como o alemão, por exemplo.
E o pior era que o grupinho que não gostava de mim sempre passava pelo corredor onde ficava minha mesa, fazendo questão de esbarrar nela ou no meu braço, fazendo com que eu rabiscasse o caderno. Eles olhavam para trás e riam com maldade. Montei um bico enorme, franzindo as sobrancelhas. Eles gargalharam ao passar pela porta. Mas quem ia rir por último seria eu.
Vendo que todos já tinham saído, peguei minha mochila, abri e retirei a pequena caixa que continha as baratas. Ana não suportava baratas e Joaquim tinha pavor delas. Clarissa vivia dizendo que morria de nojo desses insetos. Marília ficava com ânsia de vômito só de ouvir a palavra barata. Eu sou do tipo que combate o m*l com o m*l — e eles teriam um pouquinho do próprio veneno.
Vinha planejando isso há algum tempo. Juntei todos os euros que pude e depois fiz meu pai me levar a uma loja de animais exóticos. Disse a ele que queria começar a criar baratas porque achava interessante a forma delas de viver.
— Vais ser uma entomóloga, filha? — perguntou ele, com uma cara de imparcialidade.
— Não, vou criá-las por estrita curiosidade.
Mal sabia meu pai que eu tinha um planinho diabólico em mente. Afinal, se não posso bater, posso pregar sustos. Peguei as baratas de Madagascar e separei cinco para cada mochila. Sorri quando as coloquei em suas novas casas.
A barata de Madagascar pode alcançar até 10 centímetros de comprimento, tornando-se uma das maiores baratas do mundo. Significativamente maior que as baratas comuns, que geralmente medem entre 2 a 4 centímetros — e já causam estrago o suficiente. Essa espécie tem um corpo robusto, uma coloração mais escura e brilhante, enquanto as comuns podem ter cores variadas e um corpo mais esguio. Algumas baratas comuns têm asas e podem voar, mas a de Madagascar, embora possua asas, não voa bem, preferindo se locomover correndo. O que tornava tudo ainda mais interessante.
Retornei para minha mesa, terminei de fazer os exercícios (embora soubesse que estavam todos errados), fechei o caderno, guardei meu material, peguei minha lancheira e desci para o pátio principal. Escolhi um dos bancos para me sentar. Logo minha única amiga, Júlia, que cursava a mesma série que eu, mas em salas diferentes, se aproximou. Sentou ao meu lado e começamos a conversar sobre banalidades.
Júlia era um ano mais velha do que eu. Resolvi contar para ela sobre o moço bonito. Assim que falei, ela arregalou os olhos e ficou de boca escancarada.
— Estás doida? É um homem mais velho. Homem, não menino. E tu és uma menina!
— Menina não! Sou uma moça. Ganhei até maquiagem do papai.
— E daí? Isso não importa. Continua sendo uma menina, e ele, um homem. Pensas que ele vai fazer o quê? Beijar-te?
Fiz cara de nojo. Esse negócio de língua com língua, boca com boca, saliva com saliva não era para mim.
— Nossa, que nojo, Júlia! — reclamei, perdendo até a vontade de morder a maçã.
— Bem sabes que casais se beijam, se abraçam… namorar é isso.
Gelei. Porque, no fundo, minha amiga estava certa. Então olhei na direção dela.
— Júlia, tu já beijaste? Como é?
Júlia riu faceira, colocou uma mecha de cabelo liso atrás da orelha e balançou a cabeça em afirmação.
— Beijei sim. Foi o filho de um vizinho. Ele tem a mesma idade que eu. Foi estranho, nossos dentes se bateram, mas depois eu gostei.
Fiquei de olhos arregalados. Júlia tem 13 anos e já tinha beijado, enquanto eu sentia nojo dos beijos. Logo o sinal tocou, o intervalo terminou. Fechei minha lancheira, puxei Júlia pela mão e fomos correndo ao banheiro. Eu precisava fazer xixi, mas também queria ganhar tempo para que a turminha do inferno entrasse e cada um abrissem suas mochilas. Assim, as baratas os atormentariam.
Fiquei cerca de cinco minutos no banheiro. Júlia já tinha lavado as mãos e saiu correndo em direção à sua sala. Subi as escadas devagar, fiz o percurso lentamente. Assim que pisei no corredor, ouvi os gritos. Quando cheguei à porta, vi que tinha ido longe demais.
As baratas estavam espalhadas pela sala, ando no chão por cima de mesas e inclusive na parede; como esse bicho não se estatela no piso? Uma vez fui tentar fazer essa proesa, terminou com um baita tombo– aquelas ventosas de borrachas são culpadas.
Olhei para todos e suas caras de pavor estava deverás aflitas.
Ana e Joaquim estavam desmaiados no chão. Clarissa pulava e gritava, com as baratas subindo pelas pernas. Os demais alunos estavam em cima das cadeiras, gritando horrores, enquanto minhas lindas baratinhas circulavam apressadas pelo chão. Para minha surpresa, até o senhor Manoel estava trepado em cima de uma cadeira.
Minha pequena vingança tinha saído de controle, fiz meia-volta. Quando dei o primeiro passo, escutei a voz de trovão do professor:
— Tu pensas que vais aonde, Acélia? Sei bem que tens teus dedos nisso!
A gritaria chamou a atenção de outros professores. Logo o coordenador estava cheio de pessoas, com os olhos arregalados, vendo as baratas correndo para lá e para cá, enquanto as crianças gritavam. Uma delas inclusive estava no rosto da Ana, que permanecia caída no chão.
Não deu outra: o professor Manoel apontou para mim, e o coordenador saiu me levando para a direção.
E, nesse momento, cá estou, levando uma bronca tremenda do meu pai. Nem parecia que era o mesmo homem doce e afável de mais cedo, aquele o qual me entregará uma caixa de maquiagem de presente. Como as pessoas mudam, e como o tempo também muda.
— Você aprontou uma das grandes, Acélia. Das grandes! Estão pedindo para que, gentilmente, eu te retire da escola. Sabe o que isso significa?
Logo respondi:
— Que vou me livrar daquele bando de gente chata.
Meu pai deu um soco na mesa. Nunca o vi tão bravo, tão furioso. Estremeci no lugar. Seus olhos esgazeados apontam para mim, os dentes travados. Ele toma uma respiração profunda.
— Isso significa, mocinha, que você está sendo expulsa da escola! Está entendendo a dimensão do problema que causou para si mesma?
— Não. A culpa é do senhor! Eu gostava de resolver tudo no punho, mostrando para eles que precisam me respeitar. Então o senhor me proibiu. Eu só dei um susto, papai. Não tenho culpa se eles desmaiaram.
Meu pai passou a mão pelo rosto, visivelmente nervoso. Abaixou a cabeça por alguns instantes e depois olhou em minha direção.
— Estou atrás de outra escola para você, Acélia. Por favor, controle esse seu gênio, esse seu ímpeto. Se tiver qualquer problema, venha conversar comigo. Sabe muito bem que preciso ter atenção no trabalho, e você não está colaborando, minha filha.
Apenas balancei a cabeça em afirmação.
— Posso me retirar? — perguntei, doida para sair da presença dele e dar pulos de alegria, porque não iria mais estudar naquela instituição. Não teria que ficar olhando para a cara daquelas pessoas que não gostam de mim e sempre fazem bullying comigo.
— Sim. Mas antes, fique ciente: hoje terei alguns amigos no jantar. Você estará presente.
Me senti importante. Abri um sorriso, doida para perguntar quem eram os amigos. Mas não podia, seria dar muito na vista. Era um jantar: a oportunidade perfeita para usar maquiagem. Subi para o meu quarto correndo.
No meio do caminho, escutei, vindo de um quarto de hóspedes, a conversa entre duas funcionárias. Parei para ouvir. Adultos têm essa mania de não permitir que moças como eu escutem conversas alheias. Então me aproximei mais da a******a da porta e fiquei quieta, apenas escutando.
— Aquele bonitão vai estar no jantar desta noite, Cláudia. Ouvi o senhor Ricardo pedindo para Inês aumentar o número de lagostas que serão servidas.
— Sério? Não posso perder! Nunca o vi por aqui. Deve ser estrangeiro, Patrícia. Que homem lindo! Os olhos dourados, a forma como fala, como sorri… e o rosto? Que perfeição!
— Qual o nome dele, tu sabes, Cláudia?
— Inês estava de posse da lista. Espiei e vi o último nome: Rovani. É o dele. Aparentemente, não tinha confirmado presença ainda. Por isso o patrão pediu para aumentar o número de lagostas e outros pratos. Ouvi Inês comentando com Nilce.
— Pensas em fazer o quê, Patrícia?
— Ora, irei me oferecer para servir o jantar.
As duas gargalharam, e eu só conseguia pensar que o moço bonito tinha um nome lindo.
— Pretendes ser a miúda do senhor Rovani?
— Quem sabe? Vai que aqueles pares de olhos belíssimos se voltem para mim.
— Aquele giro tens cara de que gosta de crica cheia de pelos. E a tua deve ser lisa, feito este chão depois de limpo.
— Ora, é evidente que sim. Não sou uma porca.
— Darás adeus a ser a pequena do giro, moça bonita.
— Deixarei meus pelos por crescer? Não darei adeus coisa nenhuma.
Meu pequeno coração disparou. Minha crica não tinha pelos, só uma penugem, algo pouco, m*l se percebia. Corri para o quarto, peguei minha mochila e procurei pelo estojo. Precisava dar um jeito nisso. Não podia ficar pensando que o giro olharia para Patrícia e não para mim.
Retirei os cadernos, joguei-os no chão e, no fundo da bolsa, encontrei o estojo cor de rosa choque. Peguei o objeto em desespero, abri e espalhei o conteúdo sobre a cama. Peguei a caneta preta e corri para o banheiro.
— Se o problema é pelo na crica, não sofrerei! — falei para mim mesma.
Fiz uma porção de rabiscos, um do lado do outro, até que tudo estivesse preenchido.
— Ficou bom — disse ao olhar no espelho o resultado do trabalho.
Deixei o banheiro pensando na roupa que iria usar no jantar. Outro problema me ocorreu: não tinha sapatos de salto. Acho que teria que sequestrar algum do acervo que pertenceu à minha mãe.