Capítulo -IV. Alergia
" A pupa é feia antes de se tornar formiga e a largarta é horripilante antes de criar asas."
Acélia
Nervosa é o que define. Estou na janela do meu quarto espiando os moços chegando — todos muito bonitos, alguns acompanhados. Nunca vi algo assim, nem quando minha mãe era viva.
— Algo não está certo! Cadê ele? — pergunto alto demais, espichando os olhos pela janela.
— Ele quem, senhorita? — levo um susto com a voz de Margoth; meu grito fino antecede o tombo que levo da cadeira.
Minha cabeça bate no chão; o som de tuc é audível, acho que chegou até a esquina.
— Acélia! Está bem? Machucou? — as mãos de Margoth pegam-me pelos braços e ajudam-me a ficar de pé.
— Acho que quebrei a cabeça; a senhora ouviu o som de tuc? — estou meio desorientada por causa do tombo.
— Criaste um g**o na testa. Mas sua franja vai cobrir. Anda para o banho que seu pai lhe aguarda. Agradeço por Margoth não insistir na pergunta sobre quem eu estava procurando.
Na hora tudo passou: não tinha mais vertigem ou dor. Jamais Margoth poderia saber dos pelos falsos que fiz na p*peca; ela iria apagá-los com água e sabão.
— Me banhei sozinha, Margoth. Como podes perceber, sou uma moça.
A mulher sorri e faz um gesto com a mão no ar.
— Separei o vestido que vais usar e os sapatos também.
Observei Margoth ir até o guarda-roupas e retirar um vestido rosa cheio de babados; depois pegou na sapateira uma sandália fechada na frente, de fivela, e meias para combinar, cheias de babado na parte superior.
Olhei horrorizada — eu iria parecer um bolo de noiva! Eu não poderia descer vestida com aquilo; o moço bonito iria me achar uma aberração. Moças não andam por aí parecendo um bolo. Sorrio para disfarçar a minha raiva.
— Agradeço, Margoth; pode sair, irei me vestir sozinha. — a mulher girou nos calcanhares e virou-se em minha direção.
— Vais aprontar, Acélia? — reviro os olhos diante da indagação. Mas que carambolas! Por que todos olhavam para mim com desconfiança? Esses adultos parecem que vêm com um tipo de sensor embutido que capta o cheiro de artimanha de longe.
— Que ideia, Margoth! Oras, quero me arrumar sozinha; preciso preservar minha i********e. — De onde eu tirei essa frase? Ah, sim, das telenovelas.
— Sei, irei deixar, mas se aprontar alguma, lembre-se que seu pai está muito bravo com a história das baratas.
Aff! Tinha que lembrar disso?
— Não se preocupe, meus ouvidos ainda ardem das broncas.
— Ótimo, juízo, Acélia.
— Tenho todo juízo do mundo.
— Não tem. Seus cisos, dentes do juízo, ainda não nasceram.
Margoth sai, deixando-me sozinha. Pego meu celular, coloco uma música e começo o preparo do meu look. Primeiro jogo o vestido e tudo mais dentro do guarda-roupa.
— Não sou bebê para usar babados.
Corro até a janela, fico nas pontas dos pés observando as moças que chegam acompanhadas.
— Nossa, aqueles vestidos parecem ser muito apertados; como conseguem respirar? E os saltos são absurdamente altos e… — minha boca emudece. Vejo o moço bonito descer do carro, totalmente elegante, cabelos bem penteados. Ele olha para cima; eu me escondo rapidamente recostando-me na parede, com o coração aos pulos e o rosto quente. Minhas pernas estão trêmulas.
— Será que ele me viu? E se me viu espiando e contar para o meu pai? Não vou fazer mais isso! Não vou olhar, não vou olhar, não vou... — tento ser forte, mas cá estou eu, agarrada à janela, olhando o moço bonito.
Ele sorri falando com alguém ao celular; eu também sorrio. “Como é bonito!” Estou suspirando, quando meus olhos veem algo que não gosto: ele se aproxima de um casal, olha para a mulher e a cumprimenta com um beijo no rosto. Que ódio! Ele tinha que falar com a lombriga esticada! Estreito meu olhar na direção dos dois.
Vou mostrar para esse moço que eu posso ficar tão bonita quanto as mulheres dessa festa. Corro porta afora, indo em direção ao quarto do meu pai. Ele que vá me desculpar por mecher no acervo de roupas e sapatos da mamãe, mas estou precisando.
Entrar no closet dela é como estar numa loja; ando pelos corredores à procura do vestido perfeito e, de repente, meus olhos se encantam com um modelo de veludo vermelho. “Quer chamar a atenção de um homem? Use vermelho”, ouvi Margoth dizer para Fábrica — uma das faxineiras que cuida aqui da casa. Pego o cabide, me viro para o espelho, colocando a peça à frente do meu corpo. — Perfeito! Falta os sapatos.
Caminho olhando os sapatos e encontro um alto, bico fino, com pequenos detalhes de metal. Meus olhos saltam de felicidade. Nesse jantar não vai ter para ninguém: serei o centro das atenções. Pego o par de sapatos que parecem gritar: “Me levem para passear em seus pequenos pés.”
Depois sigo até o cofre que fica atrás de uma parede falsa espelhada. Eu sei a senha — não sei por qual motivo, meu pai me fez memorizar depois que a mamãe faleceu. Entro pela porta que possui um segredo; bem atrás da parede falsa está o cofre chumbado. Digito a senha e a porta emite o som da tranca sendo recolhida. Abro a porta e me deparo com muitas pastas, maços de dinheiro e uma caixa enorme de couro que mais parece uma mala. É: as joias da mamãe.
Abro e escolho as peças: um colar de pérolas enorme que dá para dar umas três voltas no pescoço, brincos de rubi e uma pulseira de diamantes. Coloco tudo dentro do bolso do meu casaco, devolvo a maleta, fecho a porta e saio do quarto sem deixar rastros. Corro feito uma louca para o meu quarto, com medo de alguém me flagrar; assim que fecho a porta consigo respirar. Tranco a chave e começo a me preparar.
Começo pelo vestido: sobra bastante tecido. Definitivamente mamãe era bem maior do que eu. Procuro minha tesourinha de escola e corto metade do tecido — não fica muito certo, mas dá para usar. Pego um cinto preto e passo pela cintura; enrolo as mangas que ficam enormes nos meus braços finos. Olho-me no espelho; gosto do resultado. Sorrio encantada.
— Nesse jantar não vai ter para ninguém.
Sento na penteadeira e começo a maquiagem: passo líquidos esquisitos na cara e esfrego uma esponja estranha; depois tento um esfumado preto. Olho para o espelho e quase levo um susto. — Nossa, parece que esfreguei um pedaço de carvão em volta dos olhos, acho que vou... — o som de batidas na porta faz minha boca fechar-se.
— Acélia, filha, só falta você. — ouço a voz do meu pai.
Ai, carambolas! A hora — não posso perder tempo.
— Estou indo, só falta o cabelo!
— Tudo bem, princesa, mais cinco minutos.
— Sim!
Me desespero; cinco minutos é pouco! Como irei fazer um penteado? Puxo a gaveta da penteadeira, pego uma escova e uma ideia explode na minha cabeça. Corro até meu guarda-roupa e pego uma caixa onde guardei o que sobrou do material que usei para o trabalho de ciências. Pego uma esponja de lã de aço. Dois elásticos.
— É fácil: só separar uma pequena mecha do meu cabelo, colocar a lã, cobrir com os fios e depois prender bem. Tem que dar certo.
Faço tudo às pressas; o resultado não é bem o que eu esperava, mas não tenho muito tempo para elaborar um penteado mais glamouroso. Apressada, coloco o colar de pérolas — dou duas voltas para ele ficar grande, porque hoje em dia está na moda o maxi colar; penso que, dessa forma, o moço bonito vai saber que eu sou uma moça antenada na moda. Leva um tempo para colocar a pulseira sozinha; a joia fica um pouco larga, mas penso que devo me policiar para não deixá-la cair no chão. Depois coloco os brincos de rubi, que combinam perfeitamente com a cor do vestido, e chego à etapa principal: colocar o salto. Eu nunca usei um salto na vida, mas acho que não deve ser difícil andar em cima dessas coisas altas. Tomo uma respiração e enfi o pé no sapato — e o pior acontece: meus pés escorregam; falta um baita pedaço na parte de trás do calcanhar. Entro em desespero: eu não posso andar com esse sapato de menina com essa roupa e essa maquiagem. Corro até o banheiro, pego o rolo de papel higiênico e faço um monte de bolinhas; coloco na ponta do sapato. Certa vez, num filme, vi a personagem fazendo isso e deu super certo. Por que comigo não daria? Enfio bolinhas de papel até dizer chega, coloco os pés dentro e me sinto mais segura quando dou o primeiro passo — viro o pé de lado e só não me esborracho porque seguro rapidamente na minha mesinha.
— Por Deus, esses sapatos são assassinos!
Tento outra vez; começo a torcer os pés, até que me agarro ao cabideiro onde estão penduradas minhasbolsas, meus olhos estão arregalados.
— Cruzes! Pareço uma aranha. Pai amado, como é que se anda em cima disso?- pergunto como se a resposta fosse cair do céu.
Tendo plena consciência de que estou quase estourando o limite de tempo para descer e recepcionar os convidados do meu pai, tento outra vez: deixo as pernas mais abertas, os braços esticados para os lados e começo a dar passos bem devagar. Dessa forma eu consigo me movimentar; sorrio, feliz com a minha evolução. Agora eu sou uma moça que usa maquiagem, faz penteados e usa saltos altos.
— Com esse passo de tartaruga, creio que vou chegar ao jantar somente amanhã.
Deixo o meu quarto e sigo caminhando dessa maneira pelo corredor — pernas abertas, mãos esticadas para os lados tentando manter o equilíbrio — dou um passinho de cada vez.
— Jesus, me explica como é que essas mulheres conseguem fazer parecer que andar com esses negócios altos é um trabalho fácil.
Desço as escadas praticamente me segurando no corrimão. O som da música ambiente e o barulho de vozes chegam aos meus ouvidos; meu coração acelera só de saber que irei ver o moço bonito e que ele vai reparar em mim — afinal, estou de vestido vermelho, maquiada e de salto alto. Assim que consigo descer o último degrau reparo que todo mundo olha na minha direção.
" É isso aí: eu sou o centro das atenções da festa; ninguém vai ser páreo para mim. Segura essa lombriga esticada. "
Continuo andando com as pernas abertas e os braços esticados, mesmo sabendo que não há uma parede próxima para me segurar; todos olham. De repente ergo a cabeça e encontro o olhar do meu pai: ele está pálido, segurando uma taça de champanhe na mão. Escuto os sussurros, depois passos apressados e, de repente, Francisca — uma senhora que trabalha há muitos anos para minha família e veio da Colômbia conosco — sussurra: “Acélia, é você, minha filha?” Me surpreendo por ela não ter me reconhecido; devo estar bonita demais.
— Sou eu sim, Chica; por favor, me ajuda a chegar até a mesa, esses sapatos estão me matando. Que raios de troço desconfortáveis!
— Meu Deus, menina, você tá andando estranha, parece que fez as necessidades nas calças. — Entre desespero: não quero passar essa imagem; quero passar a imagem de moça elegante, refinada.
—Ai meu Deus, e agora o que eu faço?
—Arruma essa postura.- Francisca pede.
Quando ergo o rosto e olho para Francisca, ela leva um susto e grita:
—Ai, minha Nossa Senhora! O que é isso no seu rosto, menina?!
— Maquiagem, papai me deu.
Faço como Francisca aconselhou : aprumo a coluna, empino o queixo e alinho a postura.
No entanto, quando vou dar os primeiros passos, meus pés viram tanto para a direita quanto para a esquerda. Parece que estou dançando a dança do desesperado. Olho para os convidados: alguns estão vermelhos feito camarão, outros desviando o olhar. Meu pai se aproxima, segura meu rosto, olha para o meu corpo e para os meus pés.
— Pode me explicar o que significa isso, Acélia? - ele parece furioso.
— Não gostou, papai?- indago.
Claro que ele não gostou: queria me botar dentro daquele vestido cor-de-rosa, parecendo um bolo de festa; acontece que eu cresci, sou uma moça e não quero usar roupas de criancinha.
— Não se preocupe, papai, depois eu devolvo os sapatos e as joias da mamãe.
Meu pai parece querer dizer algo; no entanto ele aperta a taça entre os dedos — seca o líquido que contém dentro em um gole. Passo por meu pai, sigo para o centro da sala desejando boa noite a todos; preciso mostrar para o moço bonito que eu também sou uma moça educada.
As conversas são retomadas; meu pai me olha de longe e vejo quando o moço bonito se aproxima dele. Eles conversam e depois ambos olham na minha direção. Eu me empino toda, querendo mostrar ao moço que sou uma menina culta, refinada e muito bem vestida — uma dama portuguesa.
Minutos depois todos são chamados para ir à sala de jantar. O que é muito bom porque meu estômago parece ter um buraco; espero que não tenha pimentões recheados detesto pimentões.
Ocupo meu lugar ao lado de papai; tudo parece estar indo de vento em popa, no entanto, algo começa a acontecer: meu rosto começa a coçar. E, para o meu desespero, o moço bonito senta justamente ao meu lado. Deveria estar feliz, mas o comichão não me permite aproveitar. Por que o destino é c***l! Logo hoje que eu poderia puxar assunto com o moço, perguntar se ele faz coleção de alguma coisa, eu iria mostrar a minha coleção de pega-varetas. Talvez ganhasse até um elogio dele.
Decido ignorar a coceira e manter a aparência refinada
Quero fazer tudo certo para poder impressioná-lo; afinal, regras de etiqueta cabem em todo e qualquer lugar. Todavia a coceira não cessa, incomoda e eu estou quase pedindo socorro.
Disfarço bebo um gole de água.
Recebo um olhar do moço bonito que quase perco a minha alma.
_ Isso em seu cabelo é lã de aço? - Ah não! Tanta coisa para reparar em mim foi ver logo a esponja de aço!
Meus olhos ficam enormes, o cabelo não cobriu a lã. Parecia ser fácil naquele tutorial que vi junto com a Júlia.
— Coisa de moça. O senhor não entende de penetados. - sou grossa, estou com raiva dele.
— A senhorita como maquiadora é uma excelente...bocuda...- sussurra baixo.
Engulo grosso querendo lhe mostrar meus dedos do meio.
_ Senhor ,poderia por favor colocar suas mãos sobre o tampo desta mesa. - peço me corroendo por dentro.
O homem faz. Delicadamente vou retirando dedo por dedo fazendo-o dobra-los.
_ Vê o que resta? Agora faça bom proveito dos dois. - sussurro baixinho.
O homem estreita o olhar para mim.
_ Desaforada. - sussurra.
_ Seu velho!- retruco.
Ele sorri olhando em minha direção.
Dou uma leve coçada no pescoço enquanto o jantar é servido. Minha sobrancelha começa a pinicar; delicadamente passo o indicador pelas duas, coçando lentamente. Pego a taça de água e dou alguns goles. Acredito que essas coceiras sejam por causa do nervosismo; no entanto, a cada minuto que passa, pioram — pioram tanto que eu não aguento mais. Puxo o colar de pérolas pela cabeça, acreditando que possa ser a peça com rapidez; pérolas voam pela mesa atingindo os pratos dos convidados. Meu pai olha-me assustado. Começo a coçar o pescoço com sofreguidão. Em pânico, faço movimentos com os braços; a pulseira da minha mãe escapa do meu pulso e cai dentro da taça de vinho do moço bonito.
Esfrego as mãos no rosto, sapateando — está tudo coçando e ardendo; a sensação é terrível.
— Por Deus, Acélia, o que está acontecendo? — pergunta meu pai, apontando para o meu rosto.
— Está coçando!
— Com a quantidade exagerea de maquiagem que a menina aplicou no rosto só poderia causar isso, uma reação urticante .- diz a voz de uma das mulheres presentes na mesa, em tom alto. Não consigo saber quem é.
Meu pai ergue-se e aproxima-se de mim.
— Papai, me ajuda, tá coçando muito.
Desesperado ele pega o guardanapo, molha na taça de água e começa a passar pelo meu rosto.
— Cazzo! Seu rosto está cheio de vergões! Está tendo uma reação alergia!
— Não me diga?!
— Precisamos ir à clínica, minha filha!
— Clínica?! INJEÇÕES?! Não de jeito nenhum!
Meu pai puxa-me pela mão, sem dar ouvidos aos meus protestos.
_ Por favor, continuem sem mim. Desculpe-me todo esse caos- fala para os convidados.
Penso nas agulhas. Abro a boca, começo a chorar. Fiz tanto esforço para ficar bonita e o que vou ganhar é uma picada na b*nda! Ninguém merece!