Capítulo 5
Hellen narrando
O envelope pardo ainda estava na minha bolsa quando atravessei o portão principal da penitenciária. Assim que cheguei em casa, na noite em que o Henrique foi transferido, escondi o dinheiro debaixo do colchão. Não havia outra forma segura de guardar aquilo. Depositar no banco era fora de cogitação — uma transferência daquele tamanho chamaria atenção, especialmente com o tipo de cliente que eu tinha agora. Melhor não dar margem.
Luan foi fiel à palavra: pagou cada centavo combinado, e no prazo. E mais do que isso — parecia determinado a manter o irmão fora da cadeia, custasse o que custasse. Homens assim sabiam como fazer as coisas acontecerem. E, por mais que eu tivesse receio, também sabia que no mundo onde eu estava entrando, confiança era moeda mais valiosa que qualquer honorário.
Eu estava indo para mais uma visita com Henrique quando, antes mesmo de chegar à entrada principal da ala de visitas, dei de cara com Jonas.
— Hellen — ele disse, com aquele tom que misturava deboche e veneno. — Então é verdade... Você está mesmo defendendo um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro?
A respiração me travou por um segundo, mas logo voltei ao meu tom frio.
— Você tem provas de que é ele? — perguntei, cruzando os braços. Ele riu, um riso seco, irritante.
— Não preciso ter provas. Eu sei quem é ele. Henrique, mais conhecido como Fumaça.
Revirei os olhos.
— Eu estou defendendo Henrique Souza Rodrigues, um homem preso sem provas concretas. Esse tal de Fumaça aí, não conheço. Mas se você tiver como provar o que diz, Jonas, fique à vontade. Vai me ajudar na defesa.
Ele se aproximou um pouco, como se o que tivesse a dizer fosse confidencial.
— Você está se achando, né? — sussurrou.
— Estou fazendo meu trabalho — respondi, direta. — Até porque, estou prestes a perder a casa que você deixou cheia de dívidas. Sem falar no processo onde você exige uma indenização absurda. Isso sim é ser sujo.
Os olhos dele faiscaram por um segundo. Tocar naquele assunto ainda o desarmava.
— Sua casa vai cair, Hellen. Você vai se arrepender de ter se metido com esse traficante.
— Eu fui contratada, e vou cumprir minha obrigação — respondi. — Vou tirá-lo da cadeia, como prometi. E se isso te incomoda, o problema é seu.
Ele me olhou com um ódio que já não fazia mais questão de esconder.
Cada dia que passava, eu me enojava mais por já ter dividido uma cama, uma vida, com Jonas. Ele parecia um príncipe quando nos conhecemos na faculdade. Era inteligente, carismático, ambicioso. Mas bastou conquistarmos alguma estabilidade, abrirmos um escritório juntos, que o verniz dele começou a descascar. Quando vi, estava casada com um manipulador, um homem que não suportava ver uma mulher crescer ao lado dele — muito menos ultrapassá-lo.
— Hellen. — Ele me chamou de novo, quando já estava me afastando. Me virei.
— Você vai se arrepender de estar defendendo esse homem — disse, firme, mas com os olhos escuros de rancor. — Tá fazendo isso pra me provocar, mas vai ter volta. Eu vou destruir você.
— Pode tentar — respondi, sem emoção.
Mostrei minha carteira da OAB para o guarda na portaria. Ele fez um gesto afirmativo e me acompanhou pelo corredor interno da penitenciária até a sala de entrevistas. O ar ali dentro era abafado, a iluminação r**m, e a ausência de janelas dava uma sensação de prisão até mesmo para quem estava do lado de fora das grades.
Alguns minutos depois, Henrique chegou. Os guardas o trouxeram algemado e só retiraram as algemas quando ele entrou. Estava de cabeça erguida, com aquele jeito provocador que parecia uma mistura de calma e arrogância.
— Boa tarde, doutora — disse, enquanto se sentava.
— Boa tarde — respondi, ainda de pé.
— A senhora parece meio bolada — ele falou, me observando com atenção. — Aconteceu alguma coisa? Tem a ver com o meu caso?
— Não. — Respirei fundo. — Consegui o pedido de habeas corpus. O juiz deve assinar ainda essa semana.
— A senhora é boa mesmo, doutora. — Ele me encarou com intensidade, como se quisesse entender além do que eu dizia.
Era diferente de qualquer outro cliente que já tive. E não só pelo histórico. Ele me olhava como se soubesse das coisas. Como se enxergasse além do papel que eu representava ali. E isso, de algum modo, me desconcertava.
— Mas eu preciso conversar com você sobre um assunto delicado — falei, sentando finalmente à mesa.
— Dependendo do que for... — Ele se inclinou pra frente, falando mais baixo. — Posso arrumar um jeito da gente conversar a sós mais tarde.
Dei uma risada nervosa.
— Você está maluco? Isso é contra as regras.
— Nada é contra as regras pra mim, doutora — ele respondeu, com a voz baixa e firme. — Aqui dentro, eu sou o maior.
— Você precisa tomar cuidado com esse tipo de atitude — rebati, mantendo o tom profissional. — Se o juiz desconfiar de qualquer conduta sua que pareça desrespeito ao processo, ele pode revogar o habeas corpus.
— Eu vou seguir tudo o que a senhora disser — ele falou, mais sério agora. — Confio na senhora.
Aquelas palavras me pegaram de jeito. Ele estava me dizendo que confiava em mim de um jeito que soava... verdadeiro. O que era estranho, vindo de alguém como ele.
Levantei, comecei a andar pela sala. Senti o olhar dele me seguindo, pesado, mas não invasivo. Ele era o tipo de homem que calculava cada palavra, cada movimento.
— Até o final da semana você vai estar de volta na sua casa — disse, tentando voltar ao foco. — Seja lá onde for. Mas precisamos combinar o pagamento final.
— Assim que eu for solto, meu irmão vai te entregar a grana na saída — ele falou. — Eu confio nele como confio na senhora.
Assenti.
— Combinado.
Ficamos alguns segundos em silêncio. Eu de pé, ele sentado. Ele me observava com calma, e eu evitava sustentar o olhar por tempo demais. A tensão estava ali, sutil, mas presente.
— Você é diferente, sabia? — ele disse de repente. — A maioria das pessoas entra aqui com medo de mim. Você não.
— Eu não vim aqui com medo, Henrique. Vim aqui pra fazer justiça. E justiça não se faz com emoção, se faz com estratégia.
Ele sorriu. Um sorriso pequeno, como quem guarda algo.
— Por isso eu gosto da senhora, doutora.
Peguei minha pasta e me preparei para sair. O guarda apareceu à porta, como se soubesse que a conversa estava chegando ao fim.
— Até a próxima visita — eu disse, tentando ignorar o frio na barriga que sentia sempre depois de conversar com ele.
Henrique apenas assentiu.
Saí da sala com a mente em ebulição. Jonas, a dívida, o processo, o risco de tudo vir abaixo... e Henrique, com aquela aura de perigo e controle. Eu estava jogando um jogo perigoso — e talvez, sem perceber, estivesse sendo arrastada por ele.
Mas uma coisa era certa: eu não ia recuar.
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