Capítulo 4
Fumaça narrando
A luz branca da sala parecia mais forte do que o sol do meio-dia. Ofuscava os olhos e esquentava a pele como se estivesse sob uma lupa. Fedia a suor velho, cigarro e desespero.
— Entra aí, seu filho da p**a! — o policial gritou enquanto me empurrava com força contra a cadeira de metal. — Senta aí, p***a!
Cairia se não tivesse equilibrado o corpo a tempo. A cadeira deslizou um pouco pra trás com o impacto, arrastando um som agudo no chão de cimento. Respirei fundo, tentando não demonstrar nada. O jogo era esse: eles queriam que eu quebrasse, que me sentisse acuado, que implorasse.
Mas eu não era mais moleque. Era Henrique Souza Rodrigues. Era o Fumaça. E eu já tinha passado por coisa muito pior do que uma sala fria com dois PMs metendo banca.
— Eu devia estar numa delegacia — falei, ajeitando a postura, sem perder a calma.
— Você sabe há quanto tempo a gente tá querendo pegar você, seu merda? — o mesmo policial cuspiu as palavras na minha direção.
— Quem? Eu? — ergui as sobrancelhas, fingindo inocência. — Sou só mais um Henrique no meio de milhões. Vai ver confundiram de CPF.
— Seu filho da p**a! — ele gritou, andando de um lado pro outro, o rosto vermelho de raiva. — A gente sabe que você comanda o morro da Maré! Que é você que banca operação, que decide quem vive e quem morre lá!
Sorri. Aquilo era tudo o que eles tinham? Palavras? Intimidação?
— Ué, tem como provar?
Ele se aproximou. Ficou a poucos centímetros do meu rosto, tentando me vencer no olhar. Mas eu continuei sorrindo. Aquilo deixava ele ainda mais irritado.
— Você realmente acha que alguém vai sentir sua falta, Fumaça? — ele perguntou. — Tirando aqueles seus amigos fodidos lá do morro?
— Vocês vão se f***r se sumirem comigo — respondi, ainda sorrindo. — Não sou qualquer um, parceiro.
— Eu tenho vontade de te matar, sabia? — ele disse com uma calma que era mais perigosa do que o grito. — Só apertar o gatilho e sumir com seu corpo no mato.
— Como é seu nome, mesmo? — perguntei.
— Diego.
— Então, Policial Diego... se eu desaparecer, quem desaparece logo em seguida é alguém da sua família.
Ele começou a rir, um riso sujo, debochado.
— Ninguém vai sentir sua falta, filho da p**a. — repetiu — A não ser os seus vagabundos de sempre. E esses eu também não tô nem aí.
Continuei sorrindo. A resposta dele não me abalava. Era a milésima vez que alguém me ameaçava assim. Só que ele não sabia com quem tava mexendo. O jogo era maior do que ele imaginava. A essa altura, meu irmão já devia ter dado o jeito dele.
Diego se afastou, acendeu um cigarro e ficou me encarando. Eu encarei de volta. Silêncio tenso, um duelo de olhares. Ele tentando me fazer ceder. Eu? Me divertindo.
Uns minutos se passaram até que a porta da sala se abriu de novo. Outro policial, mais novo, entrou às pressas, com o celular ainda na mão.
— Delegado Roger ligou. — ele falou. — Mudou o comando. É pra levar ele pra delegacia. Agora.
Diego franziu a testa, surpreso.
— Como assim?
— São ordens. — o policial reforçou. — Direto do delegado.
Virei pro Diego com o mesmo sorriso de antes.
— Ué... você não tinha dito que ninguém se importava comigo? Que eu ia sumir e ninguém notava?
Ele ficou me encarando. O rosto dele era pura frustração. Os olhos ainda gritavam a vontade de me dar um tiro ali mesmo, mas ele não podia. Tava amarrado. E agora sabia que eu não tava sozinho.
— Tu tá fodido, irmão. Não sabe com quem mexeu.
Ele não disse nada. Apenas chamou o outro policial com um gesto seco e me mandaram levantar. Fui puxado pelo braço, mas fui rindo. No fundo, aquilo tudo era uma vitória.
Me jogaram de novo na viatura. O carro começou a andar, cruzando as avenidas com pressa. Olhei pela janela e vi o movimento da cidade voltando ao normal — ônibus lotado, vendedor de bala no sinal, mãe com duas crianças atravessando no vermelho. O mundo seguia, enquanto eu era transportado como um trunfo que eles tinham perdido.
Sorria por dentro. O plano tava funcionando. Luan tinha conseguido. E eu tava prestes a ver com meus próprios olhos a mulher que ele tanto falava.
Chegamos à delegacia. Me tiraram da viatura sem gentileza nenhuma, mas eu nem liguei. De longe, vi Cacau e DN encostados perto de um carro. Sinal de que Luan tinha preparado o terreno como prometido.
Fui levado pra dentro do prédio. Passamos por corredores apertados, cheios de papel mofado, e vi, pela primeira vez, a doutora. Ela estava em pé no final do corredor, elegante, firme, com a pasta debaixo do braço e o olhar afiado. Me encarou. Eu encarei de volta.
Não era só bonita como diziam. Era poderosa. Dava pra ver na forma como ela se mantinha ereta, na forma como olhava nos olhos de todo mundo sem abaixar a cabeça. Aquela mulher não era de brincadeira.
Me jogaram dentro de uma sala vazia, com uma mesa e duas cadeiras. Mandaram esperar. A porta foi fechada, e eu fiquei ali sozinho por alguns minutos, tentando imaginar qual seria o próximo passo.
Do lado de fora, ouvi vozes alteradas. Discussões. Palavras cruzadas. Estavam brigando. Ela estava batendo de frente com eles. E estava ganhando.
A porta se abriu. Hellen entrou com calma, se aproximando da mesa como quem sabe exatamente o que está fazendo. Sentou-se de frente pra mim. A luz do teto destacava o brilho nos olhos dela.
— Henrique? — perguntou com firmeza.
— Sim — respondi.
— Eu sou sua advogada. Meu nome é Hellen Medeiros. Fui contratada pra te defender nesse caso. — Ela respirou fundo — Você vai prestar depoimento ainda hoje e será transferido para uma penitenciária comum. Mas eu já estou entrando com o habeas corpus. Sua prisão é ilegal. Não tem base concreta, nem registro formal. Vamos derrubar isso.
Eu apenas assenti com a cabeça. Pela primeira vez, me senti em boas mãos.
— Eu confio na senhora, Doutora — falei com sinceridade. — Se meu irmão te contratou, é porque ele confia também.
Ela me olhou de forma diferente naquele instante. Acho que sentiu que, por trás do meu histórico, tinha alguém ali que ainda acreditava em lealdade.
— Obrigada pela confiança — respondeu. — Tenho certeza que logo você terá sua liberdade. Mas agora preciso que a gente combine o que será dito no seu depoimento.
Ela abriu a pasta e pegou uma folha impressa com alguns tópicos anotados à mão. Puxou a cadeira pra mais perto da mesa, os olhos atentos aos meus.
— Preciso mesmo depor? — perguntei, desconfiado. Já sabia que qualquer palavra m*l colocada poderia ser usada contra mim.
— É muito importante que você fale. — O tom dela era calmo, mas firme. — O depoimento é a base do nosso argumento. Se você disser exatamente o que eu orientar, conseguimos mostrar que essa prisão foi ilegal desde o início.
Assenti devagar.
— Pode deixar, Doutora. Vou seguir tudo direitinho.
Ela me encarou por um tempo, talvez tentando ler se eu estava mentindo, se ia inventar moda. Mas não. Naquele momento, entre os dois, havia um acordo silencioso.
Ela queria vencer. Eu também.
E juntos, sabíamos que íamos conseguir.
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