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1395 Words
Capítulo 3 Hellen narrando O sol do meio-dia batia direto no para-brisa rachado do meu Gol, e mesmo com o ar condicionado quebrado há meses, eu me recusei a abrir os vidros. Cheguei à frente da 14ª DP com o coração acelerado. Nem sabia direito o que me esperava. O nome "Luan" não me dizia nada, e nem o número que me ligou. Mas esse tipo de chamada era comum. Eu deixava meus cartões em todas as delegacias da cidade, principalmente nas da Zona Norte e da Baixada. Se tinha um preso sem advogado, queria que meu nome fosse o primeiro a surgir. Desliguei o carro, respirei fundo e desci. Meus saltos bateram firmes no chão, tentando compensar a bagunça que estava dentro de mim. Eu tinha contas vencidas, um aviso de leilão na caixa do correio, um processo nas costas e um ex-noivo que queria me ver atrás das grades. Mas ali, na frente da delegacia, eu não era a Hellen quebrada. Era a Hellen Medeiros, advogada criminalista. Olhei ao redor. Não reconhecia ninguém. Foi quando ouvi: — Doutora Hellen Medeiros? Virei na direção da voz. Um homem se destacava no meio dos outros — alto, corpo coberto de tatuagens, camisa aberta deixando o peito exposto, uma corrente de ouro brilhando ao sol. Me encarava como se já me conhecesse. — Luan? — perguntei, já desconfiando. — Ele mesmo — respondeu com um leve sorriso, como se estivéssemos reencontrando velhos amigos. — Você é o quê da pessoa que foi presa? — Meu irmão — respondeu. O tom dele era direto, sem rodeios, mas tinha algo no olhar... uma urgência diferente das que eu costumava ver. — Ele foi preso, mas não trouxeram ele pra essa delegacia como tinham falado. — Como assim? — franzi o cenho — Não trouxeram pra cá e nem pra nenhuma outra delegacia? Luan negou com a cabeça. — Não. Estão mantendo ele em outro lugar, fora do sistema. A resposta me arrepiou. Olhei ao redor novamente e vi outro homem encostado em um carro próximo, fumando um cigarro. Não era qualquer cigarro — aquele cheiro me dizia que era algo mais forte. Os olhos dele me examinavam com calma, como se estivesse me estudando. Provavelmente estava. — Quem é seu irmão? — perguntei, já anotando mentalmente tudo. — Henrique Souza Rodrigues. O nome acendeu um alerta na minha mente. Já tinha ouvido aquilo antes. Em algum lugar, em alguma lista... talvez na última batida da Federal. — Por que ele foi preso? — Roubo de carregamento da Polícia Federal. Um lote inteiro de armas pesadas. Meu estômago revirou. Armas da PF. Aquilo não era brincadeira. Não era furto de carro ou tráfico de menor escala. Era crime federal, operação grande, mídia, investigação da corregedoria e, pior: prisão em presídio federal. E eles queriam que eu entrasse nessa? — Com quem eu tô mexendo, exatamente? Luan deu um meio sorriso. — Com o dono da Maré. Fiquei muda por alguns segundos. Não de medo. Era surpresa, confusão, e ao mesmo tempo... uma pontada de curiosidade. Ele parecia calmo demais pra quem tinha o irmão preso por um crime desses. Mas era ali que as peças começaram a se encaixar. A ligação anônima, o nome conhecido, e agora essa revelação. — Como conseguiram meu número? — Um policial lá de dentro disse que você era a única advogada que podia segurar essa bronca. Que você é linha dura, tá com problema de grana, mas bate de frente com qualquer um. — Ele olhou pro parceiro — Denis, me dá a bolsa. O tal Denis, que continuava com o cigarro no canto da boca, abriu o carro e puxou uma mochila preta. Jogou para Luan, que a abriu ali mesmo. Dinheiro. Muito dinheiro. As notas estavam organizadas em maços, tudo ali deviam ser uns 10 mil reais, talvez mais. Em espécie. — Essa é a primeira parcela — Luan disse — Dez mil reais. Se você conseguir tirar meu irmão de onde tão mantendo ele ilegalmente, e transferir pra uma penitenciária dentro do sistema, te dou o dobro. E depois o triplo. Temos dinheiro, Doutora. Só precisamos de alguém que saiba usar a lei a nosso favor. Olhei para a bolsa. A grana quase reluzia diante dos meus olhos. Não era só o dinheiro em si. Era o que ele significava: respiro. Sobrevivência. Minha casa estava praticamente indo a leilão, minhas contas se acumulavam e Jonas ainda me arrastava num processo que poderia terminar com minha OAB suspensa. Aquele dinheiro era a boia no meio do naufrágio. E mais... era uma chance de recomeçar. — Preciso dos documentos dele. Nome completo, CPF, RG, data de nascimento... tudo. — Minha voz saiu firme, como se eu já estivesse assumindo o caso. Luan abriu um sorriso largo. — Gostei da senhora, Doutora. A gente vai ter uma parceria f**a. Sua vida vai mudar, c*****o. — Tô fazendo isso porque preciso do dinheiro — respondi seca. Queria deixar claro que não era um acordo moral, era pura necessidade. — Todos nós precisamos, Doutora. — Ele me encarou com intensidade — Mas diferente de muitos aí fora, a gente paga bem e é fiel. Tá com fechamento, não passamos a perna em ninguém. A partir de agora, somos fechamentos. Fechamento. Aquela palavra não era pequena coisa. Era quase uma promessa, um pacto. O tipo de vínculo que não se desfaz sem consequências. Peguei a grana e coloquei dentro do carro. Depois sentei com eles ali na calçada mesmo e Luan começou a me passar os detalhes. A operação. O horário. A escolta. O tiroteio. O sumiço do Henrique. O envolvimento de policiais. A tentativa de acobertar o caso. Cada frase que ele dizia parecia mais absurda, mais perigosa, mas ao mesmo tempo... mais clara. Eu sabia exatamente como mexer com aquilo. Com as informações em mãos, peguei minha carteira da OAB, ajeitei os cabelos na lateral e entrei na delegacia. — Advogada Hellen Medeiros — anunciei logo na entrada, com a voz firme. Um dos agentes que me reconhecia acenou para o delegado. O delegado Roger surgiu do corredor com aquela cara de quem já estava de saco cheio. Tinha um olhar cansado, mas malicioso. Era um daqueles que adorava uma jogada suja, mas sabia esconder bem. — Hellen Medeiros. Não sabia que tinha cliente preso aqui hoje — disse ele, encostando no balcão. — Eu sei que você sabe, delegado. Henrique Souza Rodrigues. Foi trazido por vocês durante a operação federal de ontem. Onde ele tá? Roger estreitou os olhos. — Não lembro de ter prendido ninguém com esse nome. — Você sabe sim. E sabe também que estão mantendo ele fora do sistema, o que é ilegal. Não foi registrado. Não tem boletim, não tem laudo, não tem delegacia. Isso é sequestro, delegado. Ele cruzou os braços, me estudando. Tinha raiva nos olhos. Mas também um pouco de nervosismo. — Por causa de um roubo de carga da PF? Vai defender isso agora? — Vou defender porque é meu trabalho. E também porque quero saber com qual base vão acusar ele. Vocês vão fazer isso sem advogado presente, sem registro, com testemunhas do lado de fora dizendo que não sabem onde ele tá? Roger ficou em silêncio por um momento. Eu não desarmei o olhar. O que eu disse a seguir foi a faca: — Se meu cliente não estiver dentro desta delegacia em uma hora, eu vou ligar para todo jornalista que eu conheço. TV, rádio, redes sociais, blog criminalista. E vou contar direitinho como uma carga ilegal da Polícia Federal sumiu, como um preso sumiu junto, e como essa delegacia está violando todos os princípios do devido processo legal. Você quer manchete, Roger? Ele se manteve em silêncio por alguns segundos que pareceram eternos. Depois respirou fundo e disse, entre os dentes: — Você sempre defendendo vagabundo... — E você sempre fazendo vista grossa pra ilegalidade. Eu tô fazendo meu trabalho. Ficamos ali nos encarando. Era como dois jogadores de pôquer esperando o outro piscar. No fim, ele baixou os olhos primeiro. — Tá bom. Vou ver isso. — Uma hora — repeti, virando as costas e saindo dali. Do lado de fora, o sol ainda ardia. Mas pela primeira vez em semanas, eu senti que talvez tivesse encontrado uma saída. Ou pelo menos... uma entrada para um novo jogo. ---
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