Capítulo 2
Fumaça narrando
O cheiro do asfalto misturado com pólvora antiga parecia grudar na pele. Estávamos no esquema há meses, esperando por aquela carga — não era qualquer coisa, era um carregamento pesado, vindo direto para reforçar o arsenal da polícia do Rio. Armas potentes, novas, modernas. E logo seriam nossas.
— A carga tá vindo? — perguntei ao Cacau, sem tirar os olhos da rua.
— Tá a caminho — ele respondeu, olhando o celular com atenção. O rádio chiava no fundo, misturado aos sons abafados da favela viva.
— Manda o Dn ficar ligado. Quero saber a hora exata que o caminhão encostar perto. — Ele assentiu com a cabeça, já mandando o recado.
Aquele carregamento era a maior jogada dos últimos tempos. Mais de um ano esperando, monitorando, descobrindo cada ponto do trajeto, cada troca de escolta, cada mudança de plano. A gente sabia tudo. Tudo. Era agora ou nunca.
— Já sabe o plano se der merda, né? — falei, encostando na parede, puxando meu baseado e acendendo com calma.
— Sei sim — respondeu Cacau, confiante — Mas não vai dar nada errado, tá tudo redondo.
— Se der, é porque tem x-9 no morro. E aí, meu irmão, a gente caça.
— Fica tranquilo. Nosso morro é blindado.
— Ninguém é blindado contra a traição, Cacau. Às vezes o traidor tá ali, do lado. Cumprimentando a gente todo dia.
Ele ficou em silêncio. Sabia que eu não falava por falar. Desde que assumi o controle, uma coisa era regra: traição se pagava com sangue.
Traguei fundo e soltei devagar. Aquilo me acalmava antes da ação. Quando o alerta veio no rádio, todos os músculos do meu corpo se alinharam como se ligassem direto ao som.
— Caminhão chegando, patrão — disse Dn no rádio.
Me movi como numa dança coreografada. Cada um sabia o que fazer. Em minutos, estávamos no ponto de interceptação. Três carros. Oito homens. Armas prontas. Máscaras cobrindo nossos rostos.
Não sou o tipo de chefe que fica sentado na laje, mandando de longe. Não. Eu vou na frente. Gosto de sentir a adrenalina, gosto de sujar a mão, como meu pai fazia. Ser dono de morro sem coragem de estar na linha de frente? Isso pra mim é fracasso disfarçado de poder.
Atravessamos dois carros na pista. O caminhão apareceu, como previsto. Os b***s da polícia na frente reagiram, mas estavam despreparados. Começamos o tiroteio. Um caos de som e luz. O motorista tentou fugir, mas não teve chance. Mobilizamos os dois tiras e o motorista em menos de dois minutos.
— Abre o baú, pega tudo, e vaza! — gritei.
Cacau abriu a porta traseira e nossos olhos brilharam. O caminhão estava recheado. Armas automáticas, coletes, munição — um arsenal inteiro. Começamos a carregar tudo rapidamente nos outros dois carros. As toucas escondiam nossos rostos. Nenhum nome seria dito. Nenhum vacilo seria permitido.
Trancamos os policiais e o motorista no próprio caminhão. Deixamos eles lá, desesperados. Os carros com o carregamento partiram com pressa, cantando pneu na rua estreita. Só o meu ficou. Do jeito que deveria.
Meu carro estava limpo. Sem arma, sem nada ilegal, sem histórico. Isso fazia parte do plano desde o início. Eu seria o único a ser pego. A única peça visível. E tudo isso pra ativar a próxima fase: ela.
Hellen Medeiros.
Eu já tinha estudado aquela mulher como se fosse um caso. Cada passo dela, cada entrevista, cada cliente que ela defendia, até os processos antigos dela eu li. Eu sabia que ela não resistiria a um caso como o meu. Sabia que ela precisava de algo grande, urgente, sujo. Eu seria o caos dela... e a salvação ao mesmo tempo.
Coloquei as mãos no volante e soltei um sorriso curto quando vi as luzes vermelhas surgirem nos espelhos retrovisores.
Viaturas cercaram meu carro como abutres. Eu levantei as mãos devagar. O plano estava funcionando.
— Mãos para cima! Você está preso! — gritou um dos PMs, arma apontada na minha direção.
Levantei as mãos com calma, obedecendo.
“Tá na hora do show, doutora.”
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