1 Serpente Narrando

1567 Words
Acordei com a garganta arranhando e a cabeça cheia daquele vento seco que entra pelas frestas. Fiquei um tempo no corredor, encostado na parede fria, vendo a luz preguiçosa da madrugada formar um risco no piso de madeira. Essa casa — minha casa — sempre fez esse jogo comigo: é abrigo e prisão, luxo e lembrança da ferida. Eu moro sozinho aqui em cima do morro, no que o pessoal chama de mansão, mas na real é só o pedaço da minha vida que eu consegui proteger com dinheiro suado e sangue. Quem nasce e cresce no Jacarezinho sabe que existe uma casa assim — muro alto, portão branco sempre fechado, grama cortada, entrada de garagem com portão automático. Todo mundo olha, sabe que ali mora quem manda e que ali dentro tem luxo que a favela nem imagina. Na garagem tem cinco carros de luxo, blindados, alinhados como sentinelas. Tem umas motos caras também, aquelas que cortam a subida e fazem os manos olharem. Quando eu ando por ali, o som dos pneus me lembra que eu escapei — mas também lembra o preço que paguei. A casa por fora é silêncio controlado; por dentro é modernidade fria. Sala grande, pé direito alto, televisão imensa, sofá que parece um navio. Um pequeno bar, prateleiras com whisky caro, e uma adega com vinhos suaves — os que Jessica gostava — guardada como se fosse reliquia. Tudo ali tem dedo dela. Tudo que eu conquistei, de alguma maneira, tem a assinatura dela. Tem o escritório, com mesa grande, computador, papéis e um cofre onde eu escondo o que não quero que nenhum policial encontre fácil. Tem a cozinha gigante, bancada de mármore, tudo moderno, forno que eu nem sei usar direito porque quem cuidava da casa era ela. E lá fora, a área de lazer: mesas, freezer, um bar ao lado da churrasqueira, hidromassagem e piscina com espreguiçadeiras — cenário que Jessica planejou, detalhe por detalhe. Ela desenhava cada canto com aquela mania de querer transformar meu mundo bruto em algo familiar, quase civilizado. Os quartos: suítes para cada convidado, mas o maior sempre foi o meu — e o dela. Dois closets — o meu e o dela. Eu nunca deixei tirar nada do closet dela. Mantive tudo fechado como se ali dentro ainda estivesse a mulher viva. As roupas dela, fotos, joias. A cama enorme, lençóis brancos, a penteadeira dela com batons secos e um perfume que nunca mais usei. O banheiro dela tinha banheira, chuveiro com pressão, tudo. No fundo, cada canto da casa me soca com lembranças. Talita dormia enrolada num lençol que cheira a roupa lavada. Parecia um pedaço de gelo sobre a cama quente. Enquanto eu olhava, lembranças me apertavam — Jessica mexendo na pia, rindo boba, fazendo listas de supermercado, escolhendo a cadeira pro cantinho do bar. Jessica que desenhou a piscina pra ver o filho brincando. Hoje, aquele filho tinha que ter cinco anos. Cinco. A ideia rodopiou no meu peito como rato. Eu via a cara de um menino, olhos cor de mar, sorriso torto — o mesmo que eu queria ensinar a ser homem diferente do que eu fui. Não vi o filho nascer. Não vi ele crescer. Tiveram a brutalidade de arrancar ele e a mãe do meu lado. p**a que pariu. Me sentei na poltrona antiga, a luz tênue batendo nas garrafas do bar. Peguei um copo, enchi pouco de rum, bebi como quem acerta contas com o próprio fígado. A casa rangia de lembrança. Cada tacada de silêncio era um ponto do passado. Ouvi os passos apressados de Maria na cozinha — já tinha virado rotina: ela cuida da casa, cuida da boca do Serpente quando o sangue ferve, cuida de Talita agora. Maria entra no quarto com uma bandeja de sopa, olho de mãe, mãos firmes. A menina come devagar, olhando os cantos como se não entendesse direito a grandeza ou a calma. Meu olhar perseguiu cada móvel daquela mansão e a sensação era: tudo que eu tinha feito pra tirar a gente da lama, afinal, não deu pra nos salvar. Tirei riqueza, tirei poder, mas não tirei a bala, a noite, a cara risonha do policial que levou o que eu mais amava. E agora — que ironia — eu acolhia na cama que Jessica planejou uma moça que era igualzinha a ela. Ela abriu os olhos de novo, e por um segundo a casa perdeu o formato. Aquela cara era o fantasma materializado. Eu chamei ela de Talita depois que ela mesma não lembrou de nome. Não vi razão de grudar nome de mãe morta no corpo de outra. Talita parecia quebrada, tinha hematomas, cortes nas costas de fio, cicatrizes que brilhavam sob a pele molhada. Quando Maria a virou de costas pra enxugar, eu vi com clareza: marcas antigas, cicatrizes, e umas recentes que ardiam ainda. A visão me quebrou por dentro. Era como se a dor dela traçasse linhas que eu já conhecia — linhas que desenhavam a minha própria perda. Fiquei pensando se aquilo era sinal de Deus, piada do destino, ou um recado de algum diabinho sedento. Como podia alguém igual ao amor da minha vida estar ali, viva? Não me venha com milagre — eu já vi é muita merda. Mas não dava pra negar a semelhança. O que eu sabia é que não podia confundir uma com a outra. Jessica estava morta. Isso eu sentia nos ossos. A ideia de começar a achar que ela pudesse voltar me faria cego. Eu não ia permitir que minhas mãos buscassem erradas as da minha mulher morta, que minha mente trocasse sangue por semelhança. Por isso decidi fechar tudo que pude. Mandei montar vigilância, câmeras, uns caras de confiança fazendo plantão pela rua de trás, por cima do muro, por baixo do muro. Ninguém entra aqui sem passar por mim. E Talita? A menina ia ficar vigiada pelos meus vapores — minha palavra pra rapaziada que me vigia dia e noite. Nem pensar em deixá-la voltar pra areia, pro mar que quase a levou. Antes ela fica aqui, segura, vigiada, até eu descobrir de onde vem aquela cara e quem gravou aquelas cicatrizes nela. Quando a noite aperta, eu caminho pelo corredor e olho a porta do closet dela — sempre trancada. Nunca deixei mexer. Minhas mãos tremem só de pensar em abrir e ver as coisas dela onde ela parou: o batom na penteadeira, uma foto amassada, um bilhete de amor, a roupinha que minha mulher comprou por vez. Mantive tudo como oferenda. Foi a Jéssica que fez essa casa virar lar, com os detalhes dela espalhados em cada canto. A piscina era dela; a adega, do gosto dela. A mansão inteira tem assinatura do que foi nosso plano de futuro. Eu não consigo descolar aquilo. Não consigo queimar as provas de amor — nem mesmo por raiva. Eles me tiraram o amor, p***a, eu não vou me livrar das memórias que ainda me conectam àquilo. Acordei da minha própria viagem de lembranças quando ouvi um barulho na sala. Uma sombra movendo-se junto ao bar, o vento varrendo a cortina. Fui lá e encontrei Talita calma, sentada numa poltrona, as mãos apertando a saia, os olhos perdidos numa parede vazia como se tentasse pegar palavras imaginárias. De perto, a semelhança continuava me mastigar. Eu quase falei que podia jurar que era ela, que eu lembrava do jeito que Jessica mexia no cabelo, do risinho escondido. Mas eu contei o tempo. Respirei, contei até cinco, e não disse nada. — Você vai ficar aqui — falei. — Até eu descobrir quem é você e de onde saiu. E ninguém encosta. Ela olhou e tentou sorrir, um sorriso curto, de quem não quer criar esperança. — E eu posso ir embora quando quiser? — perguntou. — Lá fora? — perguntei. — Tá doida? Tá com marcas, filha. Ninguém te espera lá. E se alguém espera, não é pra te dar abraço. Então não. Fica. Ela assentiu, corpo pequeno encolhido na poltrona. Vi na cara dela medo, mas também uma fagulha minúscula de desistência — aquela rendição que quem passou por muito sofrimento conhece. Eu senti uma coisa estranha e nova: era proteção, e era raiva misturada. Eu jurava que ia usar a raiva pra acertar contas, não pra cuidar de alguém. Mas a moral da nossa quebrada é simples: quem bate em mulher ou em criança merece voltar com o dobro. E se o tipo de gente que feriu Talita tiver ligação com a polícia que fez da minha vida um cemitério, o trem fica ainda mais sujo. Antes do sol nascer, mandei fechar a porta do portão, aumentei a ronda e marquei dois caras no muro pra ficarem de olho. Não confio em delegado, juiz, polícia. Confio nos meus vapores, no meu cofre, nas câmeras compradas com notas amassadas e promessa de sangue. Enquanto eu observar Talita dormir, e enquanto a casa respirar as memórias dela, vou puxando fio por fio até achar quem puxou o meu. E se o fio for o mesmo, então a guerra volta. Eu prometi não deixar ninguém tocar nela. Nem por lembrança, nem por erro. Jessica não retorna. Mas Talita fica. E enquanto eu não descobrir a verdade, cada canto dessa mansão vai cheirar a vigilância, a plano e a promessa: proteger. Até a verdade me permitir a vingança — ou queimá-la inteira.
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