Prolongo Serpente Narrando
O vento da madrugada traz aquele cheiro amargo de sal misturado com sujeira, o tipo de cheiro que entra pela pele e fica grudado na memória. Enquanto eu caminho pela beira da praia, sinto meus pés afundarem na areia fria, e é engraçado pensar que, depois de cinco anos trancado como um bicho numa jaula, a primeira coisa que eu queria era sentir o mar de novo. Não sei se é porque lá dentro eu sentia que tava morrendo aos poucos ou se é porque aqui fora tudo parece ainda mais estranho do que quando fiquei preso. A liberdade tem gosto de ferro agora, um gosto que não sai da minha boca por mais que eu tente cuspir.
Fico pensando se eu realmente saí da cadeia ou se continuo preso em alguma parte dentro de mim. Meu corpo tá solto, mas minha mente ainda tá lá, no cheiro da ferrugem, no barulho de grito, de corrente, e nos olhos daqueles que só esperavam a hora certa de te ver cair. Eles tentaram me quebrar, e por um tempo eu achei que tinham conseguido.
Meus passos me levam pra cima das pedras que ficam perto da água, onde o mar bate forte, como se quisesse me puxar de volta. Eu olho pro horizonte e imagino que talvez, se eu continuar andando, consiga afundar e desaparecer. Ninguém sentiria falta. Talvez até comemorassem.
Mas eu não vim pra morrer. Eu vim pra cobrar.
Cinco anos. Cinco anos mofando naquele lugar, levando tapa, soco, ouvindo ofensa de polícia fardado que acha que o mundo é deles. Cinco anos carregando dentro do peito a imagem do meu amor, da mulher que mudou minha vida, da única pessoa que me deu paz. Jessica.
O nome dela queima dentro de mim como se fosse ferro quente. Eu fecho os olhos e lembro do sorriso dela, do jeito que ela mexia no cabelo, do cheiro doce de quando ela encostava o rosto no meu. Tudo isso parece outra vida, uma história contada por alguém que já morreu.
E eu morri.
No dia em que eles arrancaram ela de mim, arrancaram meu coração junto.
Jessica tava grávida, carregando nosso filho, aquele que eu tinha jurado proteger. Eu pensei que podia mudar de vida por causa deles. Que podia largar o morro, deixar o sangue secar nas mãos e construir algo limpo. Mas o destino gosta de brincar com a gente. Gosta de mostrar que, quando você tenta ir contra o que tá escrito, ele te puxa pelo pescoço e te joga no chão.
Eu lembro perfeitamente da noite em que tudo acabou.
A gente tava em casa, ela sentada no sofá, a mão dela passando pela barriga, falando sobre o nome do nosso filho, querendo escolher algo bonito, forte. Jessica dizia que ele ia nascer diferente de tudo o que a gente foi. Que ele ia ter chance de estudar, ser livre, ser melhor. Eu olhava pra ela e via esperança, uma esperança que eu nunca tinha conhecido.
O barulho dos passos no corredor me fez levantar. Eu sabia que tinha algo errado. Quando a porta estourou, não deu tempo de pensar. Os caras entraram atirando, sem perguntar nome, sem dizer motivo. Eles sabiam quem eu era. Eles sabiam o que estavam fazendo. Eles queriam acabar comigo.
Eu gritava pra Jessica correr, pra se esconder, mas ela tava grávida, meu Deus, como correr daquele jeito, com o peso da vida dentro dela
Eu tentei puxar ela, tentei cobrir com meu corpo, mas o tiro veio rápido, certeiro, frio. O som daquele tiro ecoa na minha cabeça até hoje, como se nunca tivesse acabado. Ela caiu, a mão no peito, o sangue quente escorrendo pelos dedos.
Eu segurei ela e senti o corpo dela pesando, a barriga dela tremendo, o bebê ainda vivo ali dentro, mas sem tempo, sem chance. A vida foi arrancada dos dois sem piedade.
Eu berrei, tentei matar quem entrou, mas vieram muitos, e eu fui derrubado, chutado, pisado. A última coisa que eu vi foi o rosto de um policial, sorrindo, como se tivesse vencido. Eu tentei lembrar do nome dele, mas nunca consegui. Mas eu lembro dos olhos. Olhos frios, vazios.
Quando acordei, já tava na cadeia.
Ninguém quis ouvir minha versão.
Eu era o culpado de tudo, como sempre. Falaram que eu tinha matado minha mulher, que eu era um monstro. E o juiz, aquele filho da p***, riu da minha cara quando eu disse que queria justiça. Ele colocou minha sentença diante de mim como quem joga um osso pro cachorro. Eu sabia que minha vida ali dentro tava acabada.
Só consegui sair porque paguei caro. Dei mais dinheiro do que qualquer homem deveria dar pra um verme fardado com diploma. Eu dei tanto dinheiro que poderia ter comprado meio Rio de Janeiro. Mas eu precisava sair.
Agora, aqui fora, eu só tenho um objetivo.
Vingança.
Eu vou encontrar cada policial, cada homem envolvido naquela noite. Vou destruir a vida deles do jeito que eles destruíram a minha. Vou fazer eles implorarem pra morrer.
E no meio desse ódio, a única coisa que ainda me assombra é o rosto de Jessica. Toda vez que eu fecho os olhos, vejo ela me pedindo pra não ir pelo caminho da escuridão. Mas já era. Eu fui longe demais.
O vento balança meu corpo e eu me sento numa pedra grande, olhando pro mar escuro. As ondas batem forte, como se tentassem gritar alguma coisa. Eu passo a mão pelo rosto, tentando entender onde tudo foi parar.
De repente, uma movimentação me chama atenção.
Eu vejo, mais ao longe, no meio da água, uma silhueta. Parece uma mulher. Ela tá entrando no mar como se quisesse sumir. Não tem medo, não olha pra trás, só vai.
Meu corpo trava por um segundo. Eu não sei se devo me meter. Mas algo dentro de mim grita. E esse grito não é de vingança, é de desespero.
Eu pulo da pedra e corro pela areia. O vento e a água batem no meu rosto enquanto eu me aproximo. A mulher tá cada vez mais longe, e as ondas já puxam ela pra baixo.
— Ei — eu grito — volta.
Ela não responde.
Ela continua.
E quando uma onda maior cai em cima dela, eu sei que ela não vai voltar.
Eu me jogo no mar.
A água fria corta minha pele. Eu nado rápido, desviando do arrebento, mergulho quando vejo o corpo dela submergindo. A mão dela tá solta, fraca. Eu agarro e puxo pra cima, sentindo o peso.
Ela tá desacordada.
Levo ela até a areia, deito seu corpo molhado e começo a tentar fazer ela voltar. A respiração dela é fraca. Eu aperto o peito dela, forço ar pelos lábios, meu coração batendo forte.
Até que ela abre os olhos.
E quando ela abre os olhos, meu mundo desaba.
Eu vejo Jessica.
O rosto dela.
O cabelo
A boca
O olhar perdido
Meu peito trava. Meu sangue gela.
— Não — eu sussurro — não pode ser.
Ela engasga, respira, e com a voz fraca diz
— Por que não me deixou morrer
Antes que eu possa falar qualquer coisa, ela desmaia de novo.
Meu corpo treme.
Parece que tô vivendo um pesadelo dentro de outro.
Eu olho pra ela, e é impossível negar. Ela é a cara da minha mulher. Idêntica. Igualzinha.
Não tem explicação.
Eu pego ela no colo e levo até o carro que tava estacionado mais pra cima. Eu dirijo rápido, sem pensar. Cada curva é um soco no meu peito. Eu não sei quem é essa garota, mas sei que não posso deixar ela na rua. Não depois de ter visto a morte puxando ela pela mão.
Quando chego no morro do Jacarezinho, os meus me olham com espanto. Ninguém entende nada, mas ninguém se mete. Sabem quem eu sou. Sabem que minha palavra é lei.
Eu levo ela pra mansão que construí ali dentro, o único lugar que ainda parece meu. Subo as escadas correndo e coloco ela no meu quarto, deitada na cama.
— Maria — eu chamo — vem aqui rápido.
Maria entra, assustada, olhando a garota molhada, pálida, quase sem vida.
— Meu Deus, quem é ela
— Não sei — eu respondo — só ajuda.
Maria começa a tirar a roupa molhada da garota. Eu viro de costas porque minhas mãos tão tremendo. Mas quando Maria vira a menina de costas pra enxugar, ela solta um suspiro assustado.
— Meu pai do céu — ela diz — olha isso
Eu volto o olhar e vejo as costas da menina. Marcadas.
Cortes antigos, outros recentes.
Fios.
Cicatrizes profundas.
Machucados que contam histórias de dor, abuso, violência.
Meu mundo gira.
Eu tenho vontade de quebrar tudo.
De matar quem fez aquilo.
Eu saio do quarto atordoado, com a imagem daquela garota grudada na minha mente.
— Quem é você — eu sussurro — e por que parece com a minha mulher
O passado volta como um soco.
A dor abre o peito.
E a vingança queimar de novo
Eu achava que sabia qual era meu caminho
Mas agora, tudo mudou, e a verdade que eu estou descobrindo não sei se queria descobrir.
VAMOS LÁ MENINAS MAIS UM LIVRO NOVO, COLOQUEM EM SUA BIBLIOTECA, E NÃO DEIXEM DE COMENTAR, O QUE ESTÃO ACHANDO.