Capítulo — O Estalo
Laura
O barulho que a minha vida faz quando desaba é só um estalo.
Um estalo seco, nada dramático, tipo quando piso num galho seco no parque. Acontece agora, no meio do ensaio, no salão enorme do Teatro Municipal, com aqueles espelhos gigantes que me mostram de todos os lados.
Giro, um fouetté que eu já ensaiei mil vezes, o corpo todo esticado, o ar passando rápido enquanto o mundo vira um borrão de luz e sombra.
Aos 24 anos, o balé é a minha vida inteira: acordo cedo, alongo até doer, repito os passos até eles saírem sozinhos. Meu braço vai para o alto, o salto vem leve, e por um segundo eu me sinto no topo do mundo.
Mas quando aterrisso, o tornozelo não segura. Ele dobra para o lado errado, devagar demais, e a dor explode na hora, como uma facada quente que sobe pela perna toda.
Caio no chão de madeira dura, bato o quadril e o ombro, e tudo fica branco por um instante, tipo um clarão que apaga o resto. Ouço gritos ao redor, as outras meninas param tudo, e a Madame Elena, a minha professora de voz grossa de quem fuma há anos, corre para mim.
— Laura! Laura Mendes, meu Deus! Alguém chama os paramédicos!
Eu não falo nada. Fico ali, apertando o ar com as mãos, tentando segurar as lágrimas na frente de todo mundo. A dor lateja forte, do pé para o corpo inteiro, como se tivesse tirado o balé de mim na marra.
Desde os 5 anos, eu vivo para isso, treinos, dietas, noites sem dormir. Agora, parece que acaba num erro i****a.
As meninas me cercam, alguém traz gelo, e os paramédicos chegam voando. Me dão um remédio que amortece um pouco, me botam na maca e me levam para o hospital. No caminho, eu olho para o teto da ambulância e penso: “Por que justo comigo, agora?”
Na clínica ortopédica, o cheiro é de café frio e remédios fortes. A sala de espera tem cadeiras de plástico que grudam na pele, e eu sento com a perna para cima, enquanto a minha mãe, Isabel, fica do meu lado.
Ela é ex-bailarina, sempre arrumada no tailleur cinza, cabelo no coque certinho. Ela segura minha mão, mas é mais para me acalmar do que para me abraçar de verdade. O doutor Ramos entra, com a barba grisalha e os óculos, olhando para os exames no tablet.
— Lesão feia, Laura — ele diz sem rodeio. — Fratura no maléolo, ligamento rasgado e inchaço na junta. Vai precisar de gesso e parar tudo.
— Quanto tempo? Tenho audição na companhia de São Paulo em três semanas. — pergunto, com a voz falhando.
— Seis semanas de gesso no mínimo, depois fisio. Se você insistir em dançar cedo, piora e vira problema para sempre. — Ele responde, seco.
Minha mãe pula na hora.
— Doutor, ela não pode parar. Tem shows, contratos. A gente paga o que for para acelerar, faça cirurgia, o que der.
— Sra. Mendes, eu sei da pressão, mas o corpo não obedece a dinheiro. Se forçar agora, ela perde a perna para o balé todo. Deixa curar direito.
Ela fecha a cara, tipo que o universo tá conspirando contra nós. Fecho os olhos, sentindo o peso de tudo cair em cima.
Saímos dali com o gesso na perna até a coxa, branco e pesado, me obrigando a mancar com muletas. O Rio tá nublado em novembro, e eu olho pela janela do carro pensando que minha rotina virou nada.
—
As semanas passam lentas, um dia atrás do outro como um treino sem fim. O gesso pesa, esquenta no calor úmido da cidade, e coça tanto que fico maluca tentando cutucar com um palito.
Em casa, o sofá vira meu canto, eu me arrasto com as muletas, que deixam marca nos braços, e fico o dia todo na TV. Coloco balés velhos, tipo O Lago dos Cisnes, mas agora é só raiva. Elas giram livres na tela, e eu aqui, parada, comendo salgadinho e me odiando por cada mordida.
A casa fica silenciosa demais. Antes, tocava música clássica o tempo todo; agora, só o relógio ticando na parede, contando o que eu perco.
Minha mãe m*l conversa comigo. Ela passa horas no telefone, falando com agentes e produtores do balé. Nos jantares, que ela faz rápido no micro-ondas, vira bronca.
— Você tem que se mexer logo, Laura. As novatas tão roubando seu lugar. Uma lesão e você some.
— Tô tentando, mãe. Alongo o braço, leio dicas de recuperação… — digo baixinho.
— Tentar não basta. Você é Mendes, família de bailarinas famosas. Tem que ser imbatível.
Eu nunca me sinto imbatível.
Aos 10, eu treinava até o pé sangrar para ela sorrir. Aos 18, eu comia pouco para entrar no vestido. Agora, com 24, eu duvido se aguento mais. Às vezes, no banho, a água quente me faz chorar sem barulho, o vapor escondendo tudo. Outras noites, eu nem quero lembrar de dançar, e isso me apavora. Se o balé não me puxa mais, o que sobra?
O dia de tirar o gesso chega, e eu acordo com o coração na boca, batendo forte. O sol entra pela janela, bagunçando o quarto. Me vejo no espelho do banheiro, rosto cansado, olheiras pretas, cabelo bagunçado.
— Hoje tudo muda — falo para mim, mas duvido um pouco.
O hospital tá um caos, como sempre. Cheiro de remédio e suor, gente gritando nomes, crianças chorando nos cantos.
Entrego os papéis na recepção, uma pilha de formulários com meu nome rabiscado, e sento na sala de espera.
As cadeiras doem nas costas, e o ar-condicionado congela. Fico olhando as pessoas andarem, uma enfermeira correndo com pastas, um pai com o filho no colo, um casal idoso de mãos dadas. Andar normal, sem esforço. Invejo isso. Faz semanas que eu não faço, e ver dói mais que o osso quebrado.
Depois de uma hora esperando, chamam meu nome. No consultório, o doutor liga a serra, que ronca como um motor velho. Sinto a vibração na perna enquanto corta o gesso, e pedaços brancos caem no chão.
Quando termina, o ar fresco na pele alivia tudo. O tornozelo tá inchado e roxo, mole, mas sem prisão. Não é perfeito, mas é um começo.
— Vai de fisio agora, Laura — ele diz, mexendo o pé com cuidado. — Vai no seu tempo, sem forçar. Sem estresse.
Sem estresse. Minha mãe nunca fala assim. Para ela, estresse é o normal. Saio andando devagar pelo corredor, sentindo cada passo, o chão frio, o corpo desequilibrado, o ar enchendo o peito direito. Paro no elevador para respirar, e vejo o mural de avisos.
É uma zona de papéis coloridos: grupos de apoio, feiras grátis, igreja. Folhetos velhos, colados torto com fita.
No meio, um cartaz simples, fita descascando:
PROJETO DANÇA NA COMUNIDADE
Aulas de balé no Morro do Cruzeiro
Precisamos de voluntários
Início imediato.
Tem foto de meninas, de 10 a 14 anos, rindo numa quadra de cimento rachado. Saia de tule barata, de lojinha, poses de balé meio erradas. O morro atrás, casas grudadas na ladeira, céu azul forte.
Meu coração dá um pulo. Eu toco o papel, áspero e úmido num canto. É feio, letras tortas, mas me acerta em cheio. Eu não giro ainda, os palcos parecem um sonho distante, mas ensinar? Ver elas se mexendo, livres?
Pela primeira vez em meses, sinto esperança de verdade, um alívio no peito. Minha mãe vai surtar: “Voluntária no morro? Você é para o palco, não para caridade.” Os estúdios da Zona Sul vão zoar, e a companhia me apaga da lista.
Mas cansei de seguir o que mandam. Cansei de ser a boa filha, a bailarina sem falha. Ali no hospital, decido, eu vou para o morro. Vou dar aula. Vou fazer algo meu, sem cobrança, pela primeira vez na minha vida.