Kaique
O morro tem um jeito próprio de avisar quando algo estranho está acontecendo, não com sirene ou luz piscando, mas com um zumbido sutil no ar, como o vento que muda de direção antes da chuva grossa, ou o silêncio que cai nos becos quando uma moto desconhecida sobe a ladeira devagar demais.
Hoje, ele avisa cedo, logo depois do meio-dia, quando o sol ainda castiga as lajes, fazendo o zinco das coberturas crepitar e o asfalto da descida principal soltar cheiro de borracha queimada.
Eu sinto isso na pele antes mesmo de ouvir os passos apressados subindo a escada externa do barraco, o rangido do ferro enferrujado ecoando como alarme pessoal. Estou na laje de observação, encostado na grade baixa que separa o telhado do abismo das vielas abaixo, fumando o terceiro cigarro do dia e olhando o movimento lá embaixo: um grupo de moleques jogando bola contra a parede da creche improvisada, uma mãe varrendo a calçada com vassoura de palha enquanto grita para o filho não sujar a camisa da escola, motos passando com ronco preguiçoso carregando garrafas de refri para o mercadinho da esquina. O ar tá pesado, úmido como sempre em novembro, carregando cheiro de feijão cozinhando em panela de pressão e maconha de alguém na laje vizinha tentando esquecer a conta de luz atrasada.
Teto chega sem fôlego, a camiseta cinza colada no peito largo de suor, o boné virado pra trás escorregando na testa molhada. Ele para na beirada da escada, mãos nos joelhos por um segundo, ofegante, os olhos castanhos arregalados com uma urgência que não combina com o dia tranquilo que tava rolando até agora. Aos 22, Teto é puro nervo, bom pra correr e atirar, r**m pra disfarçar quando algo o pega de surpresa.
— Chefe… a professora chegou — solta, as palavras saindo emboladas, como quem anuncia uma ameaça de fuzil na fronteira em vez de uma mulher.
Fecho a cara instintivamente, o cigarro parando no meio do trago, a fumaça saindo devagar pela boca enquanto aperto os olhos contra o sol.
Professora.
A palavra soa errada aqui, deslocada, frágil, pronta pra escorregar. Eu já sabia que ela vinha hoje, mas saber e ver são coisas diferentes; o morro transforma planos em realidade crua, e eu aprendi faz tempo que o que vem de fora nunca chega como esperado.
— E daí? — respondo seco, voz baixa, virando o corpo devagar pra encará-lo, Teto é leal, mas solta a língua rápido demais quando tá agitado, e eu preciso dos fatos limpos.
— E daí que… — ele engole seco, endireitando o corpo. — Ela não parece entender onde está pisando, chefe. Subiu sozinha de Uber, parou na base da ladeira principal como se fosse parada de ônibus normal. Galera toda olhando, mas ela só sorriu e seguiu, mochila no ombro, sem olhar pra trás. Tipo… como se fosse pra uma aula de ioga no Leblon, não pro Cruzeiro.
Claro que não entende. Gente da Zona Sul nunca entende de verdade, eles vêm com ideia de “ajudar”, de “cultura pra todos”, mas pisam no morro como se fosse set de novela, fazendo story para o i********: no celular.
Acham que favela é aventura de fim de semana, esquecem que aqui o chão não perdoa tropeço, e o ritmo não é samba ensaiado, é sobrevivência em compasso irregular. Eu solto um suspiro curto, o ar saindo pesado do peito, e jogo o cigarro apagado para o lado, vendo a brasa morrer na poeira da laje.
— Onde ela tá agora? — pergunto, caminhando até a beirada da laje com passos firmes, o vento quente batendo na cara e levando o cheiro de fritura de uma barraca lá embaixo.
Teto aponta com o queixo pra baixo, o dedo trêmulo apesar do esforço pra parecer casual, o olhar seguindo o gesto como se confirmasse o absurdo.
— Na quadra da Vila Baixa. Já começou a dar aula faz uns dez minutos. As crianças ficaram loucas, chefe, meninas pulando, meninos fingindo que não ligam, mas imitando os passos. Ela tá no meio, guiando com os braços, rindo como se fosse normal.
Eu me inclino na grade, a quadra é pequena, quase um improviso tosco no coração da Vila, metade coberta por lona azul desbotada que balança com o vento, metade exposta ao sol. Linhas de giz desbotadas marcam o antigo campo de futevôlei, agora apagadas por pés descalços e jogos diários, paredes de bloco cinza com grafites infantis de flores e bolas rabiscadas à mão. E no centro dela está… ela.
A professora.
Cabelo preso num coque perfeito e alto que não combina com o calor úmido do morro, fios castanhos grudando na nuca suada, mas mantendo a forma como se desafiasse a gravidade. Blusa clara de algodão, agora manchada de suor nas axilas e costas, calça legging confortável que permite movimento, mas grita “eu vim preparada pra academia, não pra favela”. Postura ereta, ombros retos como nos ensaios que ela deve conhecer, mas com uma leveza nos gestos que não é ensaiada, é instinto, como se o corpo dela soubesse voar mesmo no chão irregular.
Uma boneca enfiada no meio de um cenário que não foi feito pra ela: cimento rachado, crianças de shorts remendados e tênis furados, ar carregado de poeira e riso cru, mas ela… ela não parece quebrar sob o peso.
Mesmo deslocada como flor num asfalto, ela parece firme, os movimentos dos braços guiando as crianças com graça que não força, mas convida. Assustada por dentro, talvez, vejo no jeito que o olhar dela varre o círculo rápido demais, como se procurasse saída, mas segura o suficiente pra não deixar o morro engolir isso, pra não deixar o medo transparecer para os olhinhos que a seguem vidrados.
As crianças estão ao redor, oito ou nove delas, rindo alto e tentando imitar algum movimento que ela faz com os braços, um alongamento simples, talvez, ou um giro básico que vira bagunça coletiva.
Uma menininha de tranças coloridas tropeça e cai de joelhos, mas levanta rindo, tocando o braço dela pra equilíbrio, e ela sorri de volta, um sorriso que ilumina o rosto apesar do suor pingando na testa.
É estranho ver isso. O morro, que sempre vive num ritmo de tensão constante, olheiros nos postes, motos rodando vigia, sussurros nos becos sobre próxima entrega, hoje parece… diferente, mais leve, como se o riso delas tivesse diluído o ar pesado por um segundo, ou mais exposto, como se a presença dela tivesse aberto uma fresta na muralha que construí com anos de ordem e bala.
Não decidi ainda qual é pior. O cigarro novo que acendo queima rápido entre os dedos, a fumaça subindo em espiral que o vento leva para o nada, misturando com o cheiro distante de pastel frito.
Brunão chega ao meu lado nesse momento, passos pesados na escada que rangem o ferro, o corpo grande bloqueando parte do sol e jogando sombra na laje. Ele para do meu lado, encostando o ombro no meu como sempre faz quando quer ler o ar sem palavras, a tatuagem de caveira no braço visível sob a manga curta da camiseta preta.
— É ela? A tal da Zona Sul? — pergunta, voz grave e baixa, inclinando a cabeça pra olhar pra baixo, os olhos estreitando contra a luz.
— É — confirmo, sem desviar o olhar da quadra, tragando o cigarro fundo o suficiente pra sentir o peito queimar.
— Pequena, né? Magra que nem graveto. Como se o morro fosse engolir ela inteira — comenta ele, cruzando os braços, uma risada seca escapando no final, mas sem humor de verdade.
— Assustadoramente — respondo, voz neutra, mas sentindo algo se mexer no estômago, um aperto que não é raiva nem pena, só reconhecimento de algo fora do padrão. Ela é pequena, sim, frágil na aparência, pele clara que vai queimar no sol daqui a uma hora, postura que grita disciplina, não rua, mas tem uma firmeza nos gestos que não quebra, como se o corpo dela soubesse carregar peso invisível.
Ele ri de novo, baixo e rouco, mas eu não. Continuo observando, o cigarro queimando devagar entre os dedos.
Ela não olha pra cima, não olha para os becos escuros que ramificam da quadra como veias pulsantes, não olha para os cantos onde sombras se alongam mesmo no meio-dia. Ela só olha para as crianças, olhos castanhos focados nelas com uma intensidade que ignora o resto, o risco, os olhares, o morro inteiro que a mede como intrusa.
O que é imprudente pra c*****o, um erro de novata que poderia custar caro aqui, onde distração é convite pra problema. E, ao mesmo tempo… faz algo no meu peito se contrair sem permissão, um puxão que não é fraqueza, mas reconhecimento de algo puro demais pra esse lugar.
As crianças respondem a ela como se fosse mágica, uma menina de uns 10 anos imita um gesto com os braços e gira desajeitada, caindo de rir, e ela se abaixa pra ajudar, mão na cintura da garota, voz baixa demais pra eu ouvir, mas clara no gesto.
— Ela vai atrair atenção demais — digo, sem desviar os olhos da cena, a fumaça do cigarro subindo e se misturando com o vapor distante de uma panela na cozinha abaixo. Atenção aqui é moeda dupla: protege ou destrói, dependendo de quem paga.
— Já tá atraindo — Brunão responde, prático como sempre, inclinando a cabeça pra um lado onde um grupo de adolescentes para de jogar conversa na esquina pra olhar pra quadra. — A galera tá curiosa, chefe. Não é todo dia que aparece alguém assim aqui, branca, magra, sorrindo como se o mundo fosse palanque. Velhas na porta já tão comentando, moleques na moto diminuíram a velocidade pra espiar.
Teto coça a barba rala no queixo, o gesto nervoso que ele faz quando o cérebro gira mais que o corpo, olhos ainda fixos na quadra como se tentasse decifrar o enigma.
— E bonita desse jeito… vai ter n**o enchendo o saco, chefe. Tipo o Carlinhos da Bica, que vive paquerando qualquer uma que passa. Ou pior, os caras do Campo Alto que sobem pra checar.
Viro o rosto devagar pra eles, o movimento lento como se pesasse cada grau, o olhar fixo e frio caindo como chumbo nos dois. O sol bate nas minhas costas, mas o ar parece mais frio de repente.
— Quem encostar nela sem permissão… morre — digo, voz baixa e sem volume extra, mas com o peso de ordem que não precisa de grito pra ser lei. Não é ameaça vazia; é fato, como o sol que nasce ou a bala que sai do cano.
Os dois congelam no lugar, o riso de Brunão morrendo na garganta, Teto parando de coçar a barba no meio do gesto, olhos arregalados como se eu tivesse puxado a arma.
Eu nem tiro os olhos da quadra quando digo isso, vendo ela agora se abaixar pra ajustar a postura de uma menina pequena que tenta um equilíbrio desajeitado. Porque não falei por impulso de macho ciumento ou protetor falso; falei porque é verdade crua.
A professora de dança pode não saber ainda, mas acabou de virar um ponto vulnerável no meu território, uma fraqueza que brilha como farol no escuro, atraindo curiosos inofensivos e inimigos que farejam oportunidade. E ponto vulnerável vira arma nas mãos erradas, chantagem, distração pra invasão, ou pior, isca pra bala perdida que eu não controlo.
Brunão ajeita o boné devagar, puxando a aba pra baixo como se precisasse de sombra para os pensamentos, a cicatriz no queixo se contraindo levemente.
— Acha que ela é problema de verdade, Kai? Tipo, espiã ou algo que o Campo Alto mandou pra bagunçar?
Respiro fundo, o ar entrando pesado nos pulmões, carregado de poeira e cheiro de terra quente, e solto devagar, sentindo o peito se expandir contra o aperto. O vento muda de repente, trazendo de baixo o som da risada dela, uma risada limpa, livre, alta o suficiente pra cortar o burburinho das crianças e ecoar até aqui, como nota aguda num violão desafinado. Não combina com este lugar, com o ritmo tenso de olheiros e entregas, mas corta mesmo assim, deixando um rastro que incomoda.
— Ainda não sei — respondo, honesto como sempre sou com eles, os únicos que me veem sem filtro. — Mas tudo que vem de fora do morro… cedo ou tarde vira problema. Pode ser isca, distração, ou só caos inocente que derruba o equilíbrio. A gente observa e decide.
Brunão me cutuca com o cotovelo largo, o toque familiar de quem me conhece desde moleque, voz baixa pra não quebrar o momento.
— Vai lá ver de perto, chefe? Conversar, explicar o jogo?
— Não — respondo imediato, balançando a cabeça devagar.
— Por quê?
— Porque não gosto de surpresas, e ela já é uma grande. Se eu descer agora, viro o lobo na história dela; melhor deixar o morro mostrar os dentes primeiro.
E ela… ela já é uma surpresa que mexe sem permissão, com risos que ecoam e olhares que prendem.
— Mantém alguém observando de longe. Piá na laje vizinha, rádio ligado o tempo todo — digo virando de costas para a quadra em direção à escada.
— Quer que chegue perto, fale com ela? — Teto pergunta, descendo atrás, voz ainda ofegante, mas obediente.
— Não. Só de olho, discreto. Se alguém se aproximar dela com intenção errada, paquera forçada, toque sem convite, ou pior, pergunta que cheire a rival, vocês sabem o que fazer. Sem alarde, mas sem misericórdia.
Eles assentem atrás de mim, o som de passos sincronizados na escada como confirmação muda.
Desço as escadas do barraco com passos pesados, as botas batendo no concreto gasto, o peso do dia se instalando nos ombros como mochila invisível. Não sei quem ela é além do nome no e-mail, Laura Mendes, voluntária de balé, 24 anos, endereço na Zona Sul que grita privilégio. Não sei por que veio de verdade, se é caridade de consciência limpa ou fuga de algo maior. Não sei o que quer além de “ensinar passos” para as meninas que protejo com unhas e dentes.
Só sei que trouxe luz demais pra um lugar feito de sombra densa, e luz aqui sempre atrai mariposa ou cobra. E sombra… sempre mata a luz devagar, ou a luz queima a sombra até o osso.
De qualquer jeito… vai dar problema, um tipo de problema que não resolve com ordem ou bala, mas com conversa que eu não sei ter. E eu não sei se estou preparado pra lidar com esse tipo de problema, um que ri com crianças e mexe no peito sem tocar, mas o morro vai me forçar a aprender, quer eu queira ou não.