Capítulo 7 — A Noite

1143 Words
Kaique A noite cai no morro, pesada e quente, daqueles que sufocam. Do alto da laje, observo as luzes acenderem uma a uma nas casas empilhadas, lâmpadas nuas penduradas em fios improvisados, piscando como estrelas tortas num céu de concreto. Cada ponto de luz carrega uma história. O ar tá úmido, cheiro de terra molhada da chuva rápida que caiu mais cedo misturado ao diesel das entregas noturnas e ao doce de café coado na laje vizinha. Eu deveria estar pensando em números, carga chegando pela Bica às duas da matina, rotas seguras pra descer amanhã, o preço que é o Marreta subir aqui, mas não estou. A cabeça gira em outro loop, e ela aparece sem pedir licença. A bailarina. A professora. O problema que eu não chamei, mas que já tá aqui. Desço da laje devagar, o vento noturno batendo na cara e levando o cheiro de cigarro que apago na grade. O galpão tá iluminado por uma lâmpada fraca que pisca de vez em quando, sombras dançando nas paredes cobertas de mapas rabiscados. Brunão tá encostado na mesa de compensado, conferindo um maço de dinheiro, notas de 20 e 50 amassadas, contando baixo pra si mesmo, a tatuagem de caveira no braço flexionando a cada movimento. Teto mexe no rádio portátil, irritado com a chiadeira estalando, girando o botão pra pegar a estação pirata que passa funk sem propaganda. — Tudo certo na descida? — pergunto, parando na porta, voz baixa pra não quebrar o ritmo deles. Brunão ergue os olhos, pausando a contagem no meio. — Sim, chefe, e só pra avisar, a professora foi embora tranquila. Pedi pro Cegueta ficar de olho até ela pegar o Uber no Largo da base. Galera da rua viu ela descer, mas ninguém mexeu com ela, só alguns olhares curiosos, como sempre com forasteiro. Meu peito aperta um pouco, um nó surdo que ignoro, mas que fica ali como pedra no sapato. — E? Chegou bem? — Pegou o carro sem problema. — Assinto devagar, como se isso não importasse, jogando a jaqueta no gancho da parede. Teto ri de canto, desligando o rádio com um clique seco, o som morrendo no chiado final, olhos apertados em fendas. — Você tá preocupado demais pra alguém que disse que não ia se meter nessa, chefe — provoca, esticando as pernas no banquinho de plástico. Lanço um olhar seco pra ele, o tipo que cala a conversa sem palavra, mas sinto o canto da boca tremer num quase sorriso. — Eu cuido do que é meu, e o morro inclui quem pisa nele mesmo sem pedir. — E ela já virou “teu”? — ele insiste, inclinando a cabeça, o sorriso torto mostrando dentes amarelados. — Tipo território novo? Brunão dá um tapa leve no braço dele, voz grave cortando o ar. — Cala a boca, Teto, p***a. — Eu ignoro os dois, caminhando pelo galpão, tentando organizar pensamentos que não querem obedecer, rotas da carga amanhã, o áudio do Marreta pedindo aumento, o relatório do Piá sobre viatura rondando a Vila Baixa. — Não quero ninguém em cima dela — digo, sem olhar pra eles, parando perto da mesa e pegando uma lata de cerveja quente do canto. — Nem hoje à noite, nem amanhã na aula. Olheiros de olho, mas distância. Se algum curioso da rua, Carlinhos ou quem for, encostar pra paquera forçada, resolvam quieto. Brunão franze a testa, parando a contagem de novo, o maço de dinheiro esquecido na palma. — Kai, ela não é do morro. Veio pra dar aula, vai embora pro bairro chique quando essa palhaçada acabar. Por que se preocupar tanto? — Ainda assim — respondo, bebendo um gole da cerveja. — Ela pisa aqui, vira assunto, e assunto vira problema se a gente não cuida. Eles entendem o tom, Teto assente, e volta para o rádio, sem mais provocação. Brunão guarda o maço na caixa debaixo da mesa, tranca com chave, e sai para o beco com um “boa noite, chefe” murmurado. O galpão fica quieto, só o eco distante de funk na noite. Mais tarde, sozinho no quarto no andar de cima, deito na cama, sem desligar a luz fraca do abajur. O teto tem uma rachadura antiga, desenhando algo parecido com um mapa torto de rios secos, linhas que eu já decorei nas noites sem sono, contando pra não pensar em perda ou dívida. Hoje, não ajuda. A cabeça gira, e eu lembro a forma como ela se esquivou do supervisor da ONG mais cedo, educada, corpo girando sutil pra longe do toque, sorriso mantido, mas olhos alerta. Mulher que conhece limites, que sabe se proteger com movimento em vez de grito, mesmo sem saber o jogo completo do morro. Fecho os olhos por um segundo, sentindo o ar quente do quarto. Lembro do jeito que ela falou com as crianças na quadra, voz suave guiando “agora braços como asas, devagar”, postura ereta mesmo no cimento irregular. Do sorriso fácil pra uma menina que caiu de b***a e levantou rindo, ou para o menino tímido que tentou um giro e conseguiu pela primeira vez, olhos brilhando como se tivesse ganhado o mundo. Ela não veio pra salvar ninguém com discurso pronto; veio pra respirar, pra mover o corpo num lugar que não cobra perfeição, só presença. Eu reconheço esse tipo de fuga, já fiz a minha, correndo de moleque pra não virar estatística, mas nunca saí do morro de verdade, só troquei o caos do pai pelo que construí. O rádio do lado de fora estala baixo, chiado de estática antes da música voltar. Passos sobem a escada externa, leves, mas conhecidos, e alguém bate na porta de madeira duas vezes, rápido. — Fala — digo, sentando na cama, a mola rangendo de novo. — É Cegueta, óculos escuros ainda no rosto mesmo na penumbra da noite. — Chefe… só pra avisar, tudo quieto lá embaixo na Vila. A galera já tá sabendo que é pra respeitar a professora, passei a palavra pros olheiro, ninguém encosta sem ordem. Assinto pra porta fechada, como se ele visse, e respondo seco: — Boa, mantém assim. Amanhã, manda o Piá ficar de olho na quadra logo cedo, de longe. — Feito — murmura ele, os passos se afastando escada abaixo, o rangido ecoando até sumir no beco. Fico sozinho de novo, a luz do abajur jogando sombra longa na parede de tijolo, o ventilador girando preguiçoso em círculos que não refrescam. A cidade dorme lá embaixo, mas o morro nunca dorme de verdade, sempre tem um olho aberto nos postes, uma arma pronta no colchão, um ouvido atento no rádio chiado, e agora… uma bailarina dançando no meio disso tudo, p***a, por que fui concordar com essa p***a de ONG? Isso só vai me trazer mais dor de cabeça.
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