Kael ouviu os passos atrás de si.
Parou, o maxilar travado, os ombros tensos. Virou devagar. Os olhos azuis, ainda carregados de raiva contida, encontraram os de Isabela.
Ela também parou. Assustada, sim. Mas não desviou o olhar.
Estava cansada de ser medida pelos outros. Não tinha sido arrancada do próprio mundo pra baixar a cabeça pra um homem que se achava o tal só porque tinha cara de gostosão atormentado.
Kael não disse nada. Só observou. A expressão fechada, como se ela fosse um problema a ser resolvido. E, talvez, fosse.
Caminharam em silêncio.
Kael à frente. Isabela logo atrás. Ícarus, ao lado, sorria como se tudo fosse uma grande honra.
— Poucos são recebidos com tamanha atenção… — murmurou, olhando para ela com brilho nos olhos. — A Mãe da Terra certamente merece essa atenção.
Antes que Isabela pudesse perguntar o que aquilo significava, a trilha se abriu subitamente.
A floresta cedeu espaço a um campo aberto, e diante deles, erguia-se um castelo.
Isabela parou. O coração acelerou.
A construção dominava a paisagem: muralhas cinzentas, torres pontiagudas, janelas estreitas. O céu carregado tornava tudo ainda mais surreal.
Pensou no Rio de Janeiro. No barulho do trânsito, nas vozes apressadas, no calor úmido, no cheiro de pastel da esquina. Aquilo não tinha nada a ver com sua realidade.
Era como pisar em um filme de fantasia. Mas não havia música épica ou magia gentil — só silêncio e uma sensação sufocante de que nada ali era seguro.
Kael caminhava à frente. Os ombros ainda rígidos, a cabeça erguida como se pudesse manter tudo e todos afastados com o próprio silêncio.
Isabela observou. Tentou decifrar. Mas ele parecia blindado.
— O que significa “Mãe da Terra”? — perguntou, a voz baixa.
Kael não respondeu de imediato. Os olhos fixos nas muralhas do castelo. Por dentro, uma frase latejava com amargura:
“Se for mais uma armadilha de Aldora… eu juro que não vou cair de novo.”
Por fim, respondeu, seco:
— Você vai entender.
Isabela engoliu em seco. A resposta não ajudava. Mas algo nela dizia que, ali, insistir podia ser perigoso.
Kael se afastou sem dizer mais nada. Seguiu sem dizer nada, mas, por algum motivo, Isabela preferia que ele tivesse ficado. Hostil ou não, ao lado dele se sentia menos perdida.
Ícarus a levou por um corredor até uma sala isolada.
Ali dentro, um homem de aparência serena a esperava. Nada nele parecia ameaçador — o que, para Isabela, só aumentava o desconforto.
— Isabela — disse, calmo. — Sou o Grande Ancião de Avalon. Entendo que tudo isso seja confuso para você. Mas lhe explicarei.
Ela assentiu devagar, sem conseguir relaxar.
— Você é uma das candidatas à Mãe da Terra. Seres como você nascem raramente. Carregam a capacidade de realizar o Ritual de Contenção.
Isabela franziu a testa, se perguntando que p***a era esse papo de ritual.
— A cada três anos — continuou —, a energia negativa se acumula neste reino. Raiva, dor, mágoas. Se não for contida, destrói tudo. A Mãe da Terra é a única capaz de conter isso. Ela recebe essa energia no próprio corpo e a transforma.
Isabela arregalou os olhos. Agora sim ela estava com medo.
Receber dor dentro dela? Aquilo não era um cargo, era uma sentença.
Preferia estar no meio do morro, numa viela escura, cercada por gente armada. Lá ela saberia o que fazer. Ali, não fazia ideia nem de onde estava.
Ela levantou as mãos, nervosa.
— Olha, vocês pegaram a pessoa errada. Eu não sou mágica. Nem essa tal Mãe da Terra. Eu sou uma confeiteira. E uma gorda, se ninguém percebeu.
O homem não respondeu de imediato.
Ela cruzou os braços, coração disparado.
— Manda logo alguém me levar de volta — disse, ríspida.
O silêncio da sala ficou pesado. Mas Isabela não desviou o olhar.
Dentro dela, a pergunta ecoava, amarga:
“Por que diabos eu pedi isso para o céu?”
O silêncio entre eles se arrastou por segundos longos.
O Grande Ancião parecia mais desconfortável que Isabela. Como se a ideia dela ir embora fosse uma opção real... mas uma opção que destruía o mundo dele.
— Isabela… — disse enfim, sem sorrir. — Você é muito mais do que a aparência deixa mostrar. Em séculos, nenhuma candidata teve tanto potencial quanto você.
Ela cruzou os braços. Queria rir, mas não conseguiu.
— Sei que parece absurdo — continuou. — Mas tudo isso, todo esse reino, depende de alguém como você. E não me refiro a aparência, nem à origem. Refiro-me ao que há dentro. A força. A capacidade de transformar.
Isabela desviou os olhos. Por dentro, algo se mexeu.
— Eu não estou pedindo que aceite nada agora — disse ele. — O Ritual só acontece se você consentir. E mesmo assim, só depois de um tempo. Você terá dias, semanas, para conhecer Avalon. As pessoas. Entender seu valor aqui. E o que você representa.
Ele deu um passo à frente.
— Só peço… um mês. Um mês de verdade. Dê uma chance a Avalon. Depois disso, se quiser ir embora, ninguém a impedirá.
Isabela respirou fundo.
Pensou no que deixou para trás.
O bairro abafado. Os olhares de julgamento. Carla. Henrique. Os risos disfarçados de piada. A solidão. A doceria que ela amava, mas que agora parecia tão pequena.
Não havia ninguém esperando por ela.
Nada que não fosse dor.
— Certo — disse por fim, olhando nos olhos dele. — Eu fico. Por um tempo. Mas se não gostar, vou embora imediatamente.
O Grande Ancião assentiu. Aliviado.
Mas havia algo estranho em seu olhar. Um brilho contido demais. Um alívio exagerado. Como se estivesse escondendo o custo real daquela escolha.
Isabela sentiu um calafrio. Mas não disse nada.
Ícarus apareceu logo em seguida, o sorriso teatral no rosto.
— Excelente. Agora venha. Você precisa ser apresentada.
Ele a guiou pelos corredores. O Grande Ancião caminhava em silêncio logo atrás. A arquitetura era imensa, fria, antiga. Ecos do passado vibravam por entre as colunas.
Quando atravessaram as últimas portas, Isabela parou.
O Grande Salão se abriu à sua frente.
Por um instante, silêncio.
Depois, palmas.
Fortes. Ritmadas. Acolhedoras.
Ela piscou, confusa.
Homens e mulheres bem vestidos se levantavam dos bancos ao redor da sala. Sorrisos nos rostos. Palavras de boas-vindas. Murmúrios em reverência.
— É uma honra tê-la conosco.
— Que bênção sua chegada!
— A Mãe da Terra… ela realmente existe.
— Obrigado por vir até nós. Obrigada por existir…
Isabela ficou imóvel.
Era como se tivesse entrado numa cena que não era sua. Como se tivesse invadido o palco de uma peça desconhecida. E, ainda assim, todos a olhavam como se soubessem exatamente quem ela era.
E mais: como se a amassem por isso.
Ela não sabia como reagir. Mas pela primeira vez na vida… sentiu o que era ser vista.
Ícarus se afastou, indo até uma mulher sentada à esquerda do trono real. Loira, elegante, de olhos claros e postura impecável. O sorriso era gentil. Mas o incômodo que Isabela sentiu ao vê-la foi imediato.
Aldora.
Linda demais. Correta demais. Controlada demais.
Ícarus sussurrou algo ao seu ouvido. Ela sorriu com delicadeza. Então virou o rosto para o lado oposto e seus olhos encontraram Kael.
Isabela o viu também. Encostado na parede do fundo, braços cruzados, expressão indecifrável. O queixo erguido. Como se quisesse estar o mais longe possível dali.
O silêncio caiu de novo quando o rei Assuero se levantou.
Alto, forte, com uma presença que parecia ocupar todo o salão.
Seus olhos pousaram sobre Isabela. A voz veio firme:
— Bem-vinda a Avalon. Sua presença aqui é necessária. E somos gratos por ela.
O coração de Isabela disparou.
Ninguém nunca tinha falado com ela assim.
Ali, ninguém riu do seu corpo. Ninguém a reduziu a aparência. Ninguém a usou como piada.
Aqueles estranhos a tratavam como algo sagrado.
E, pela primeira vez, ela não sabia se queria fugir.
Ou ficar.
O coração de Isabela vacilou no peito.
Ela, a mesma mulher que passara a vida ouvindo que era demais, que precisava mudar, que deveria se encaixar. Agora era necessária exatamente como era. Ninguém ali parecia se importar com o tamanho do seu corpo, com suas inseguranças, com o que diziam dela no mundo de onde viera.
Ela respirou fundo. Uma parte antiga e machucada dentro dela quis duvidar.
Mas outra, mais recente — mais forte —, sussurrou que talvez, finalmente, ela tivesse encontrado seu lugar.
E dessa vez, não precisaria diminuir quem era para caber nele.