O Gosto que Fica
A culpa começou cedo.
Antes do sol. Antes do forno aquecer.
Ainda deitada, Isabela encarou o teto por tempo demais. 5h30, já estava atrasada. O corpo pesado, a mente repetindo a mesma frase: você não precisava ter comido aquele último pedaço.
Mas comeu. E escondeu o papel no fundo do lixo.
Levantou. Prendeu o cabelo num coque m*l feito. Vestiu o casaco por cima da blusa amassada. O avental por cima de tudo. Sempre camadas. Como se alguma cobrisse o que estava por dentro.
Caminhou pelo subúrbio do Rio de Janeiro até chegar na doceria “Delícias da Isa”
O sino da porta tilintou assim que ela ligou a vitrine.
— Hoje é seu aniversário, né? Vai comer bolo ou já comeu todos ontem?
Ela virou lentamente. Sem pressa. Com o pano de prato entre os dedos.
— Trouxe farinha ou só essa piada requentada?— responde Isa o sorriso ensaiado no rosto e a voz doce como quem diz o preço do doce de leite
O entregador riu, mas os olhos vacilaram. Largou a caixa. Saiu sem resposta.
Isabela suspirou. Nada de novo.
Na cozinha, jogou o pano sobre a bancada. A batedeira girava no automático, mas o comentário ainda gritava mais alto na cabeça.
Voltou ao balcão quando a porta se abriu de novo.
— Esse é sem açúcar? Minha filha tá de dieta, mas vive querendo besteira.
—Mousse de maracujá. Leve. Mas não faz milagres.
—Ah imagina se fizesse, mas você… magrinha assim…
Isabela sorriu. Curto. Cortante.
— Incrível como todo mundo virou nutricionista, né?
Entregou o pote. Os dedos firmes. A postura ereta. Ninguém notava.
A mulher agradeceu e saiu. A campainha tocou de novo.
Dessa vez vieram risadas. Três adolescentes com cheiro de perfume doce e sarcasmo.
— Esse brownie aí… engorda só de olhar.
— Tem recheio. Quer experimentar? — disse, simpática como sempre.
—Você que comeu todos ontem?
Isabela parou.
Só por um segundo.
Respirou fundo. Ombros erguidos. Sorriso no rosto.
— Se tivesse, eu cobrava o dobro. Tava bom demais.
Eles riram. Pediram três.
— Um é pra professora. Ela é uma chata, mas ama doce.
—Esse vai com recheio de vingança. Promoção do dia.
Mais risadas. Mais passos indo embora.
Só então ela soltou o ar.
A risada falsa ainda flutuava no ambiente quando voltou para a cozinha. Pegou uma colher limpa. Abriu o pote de brigadeiro e olhou para dentro como quem encara um abismo.
Não comeu.
Mas mesmo assim a lembrança trouxe a voz:
— Fecha essa boca, Isabela. Já tá parecendo uma porca faminta.
A voz da mãe, sempre ela. Sempre de volta.
— Homem nenhum vai querer uma mulher gorda. Nem pra cama. Nem pra casar.
A colher caiu na pia. Ela esfregou as mãos com força.
Era assim. Sempre foi. Sorriso no rosto, resposta na ponta da língua. Isabela sabia colocar cada um no lugar. Ganhou fama por isso. Corajosa. Forte. Intocável.
Mas só ela sabia que era mentira.
Era fácil fazer as pessoas acreditarem nisso. Ela era dona da própria doceria. Seus doces vendiam mais rápido do que ela conseguia produzi-los, segundo alguns, até curavam tristezas, mas as dela nunca curou.
O sino tilintou outra vez e Isabela se preparou com mais um sorriso mecânico no rosto e mais uma resposta afiada, mas dessa vez era diferente.
Henrique entrou como sempre: camisa branca, cabelo molhado, perfume de banho recente. O relógio marcava onze em ponto.
Isabela foi até o balcão antes mesmo de ele chegar.
— Saiu do banho só pra mim, né?
Henrique sorriu sem responder. As mãos apoiadas, os olhos nos dela, como quem segura um segredo.
— Hoje é um dia especial.
O peito de Isabela travou. Fingiu ajeitar o avental.
— Eu sei. Meu aniversário. Lembrou?
Henrique puxou uma caixinha do bolso. Não entregou. Só segurou, como quem ainda não decidiu o que fazer com aquilo.
— A pessoa que eu amo faz aniversário hoje.
O sangue subiu no rosto dela. O corpo gelado, as mãos suando. Pegou o brownie de sempre. Colocou na caixinha devagar, como se fosse um presente.
Não cobrou. Nunca cobrava. Henrique aparecia todo dia, com aquele jeito manso, elogios discretos, toques leves nas mãos. Uma vez disse que ela tinha o melhor sorriso do bairro. Outra vez elogiou o cheiro do cabelo. Isabela lembrava de tudo. Tinha certeza. Eles estavam quase namorando. Só faltava o momento certo.
— Vai comer aqui ou levar?
— Hoje eu volto mais tarde. Tenho uma surpresa pra entregar. Vai ser especial.
Ele sorriu de novo. E saiu.
Isabela ficou parada. O som do sino ainda vibrava na porta. As pernas bambas, a mão apertando o pano de prato com força. Olhou para o espaço vazio à frente, como se pudesse puxar ele de volta.
Carla, do corredor, parou. Tinha ouvido. O corpo recuado, a mão com as chaves ainda no ar.
— Vai fazer surpresa pra ela... — murmurou, com um sorrisinho torto.
Ajeitou o cabelo. Olhou o reflexo na geladeira. Tirou um fio solto do rímel.
Carla sabia fingir. Era boa nisso. Desde o ensino médio, conseguia enganar gente como Isabela com meia dúzia de elogios e uma maquiagem m*l feita. A diferença era que agora ganhava salário pra isso.
Se fosse qualquer outra dona, já teria sido demitida na primeira semana. Mas Isabela a contratou por dó. Dizia que ela era sua melhor amiga. Que confiava. Que queria dividir tudo.
— Isa, tô indo. Preciso arrumar a casa pro pessoal. Já viu minha sala quando tá cheia de criança?
Isabela piscou, ainda com o sorriso de antes preso no rosto.
— Tá. Não esquece o bolo de churros.
— Nunca. Meu aniversário, meu bolo.
— Sete horas, hein?
— A estrela da noite vai chegar brilhando.
Carla saiu. A bolsa pendurada no ombro, o celular já nas mãos. Os passos rápidos. O olhar seco.
Isabela limpou o balcão. As bochechas ainda queimando. O coração batendo mais rápido do que devia. Acreditava. Com todas as forças.
Achava que ia ganhar um amor.
Já em casa um pouco mais tarde.
A água quente escorreu pelos ombros. Isabela fechou os olhos, tentando se acalmar. O rosto ainda ardia de expectativa. Henrique. A frase dele. O jeito com que segurou a caixinha. Era agora. Precisava estar linda.
Saiu do chuveiro e foi direto pro quarto. Parou diante do espelho de corpo inteiro, a toalha presa no peito.
Era bonita. Sabia disso em algum lugar escondido dentro dela. Cabelos castanhos, pele limpa, rosto delicado. O corpo era cheio, mas tinha curvas. O tipo de corpo que podia ser admirado — se o mundo não insistisse em odiar mulheres como ela.
— Olha só o tamanho disso… parece uma geladeira de vestido.
A voz da mãe veio como sempre: cortante, repentina. Isabela fechou os olhos. Quis empurrar aquela lembrança pra longe. Não conseguia. Pegou um vestido preto. Apertado demais. Depois uma blusa larga. Solta demais. Tentou outra saia, depois outra. Nenhuma servia. Ou melhor: todas serviam, mas nenhuma parecia caber.
Respirou fundo. Abriu a última gaveta.
Tirou o vestido branco com folhas marrons. Leu em algum lugar que estampa certa podia disfarçar o tamanho. Ajeitou no corpo, prendeu o cabelo, passou um batom discreto. Pegou a caixa de doces.
E foi para casa de Carla.
Foi andando, sentindo o coração bater mais rápido a cada passo. Mas quando chegou à rua da amiga, algo a fez contornar a entrada. Um impulso. Uma sensação. Deu a volta e foi pelos fundos.
Passou pelo portão lateral, atravessou o quintal. Parou. Congelou.
Henrique estava ali. Com Carla. De costas para ela, os dois grudados. O beijo era longo, íntimo.
Isabela não se moveu.
Carla se afastou um pouco, ainda sorrindo. Ajeitou o cabelo, olhou ao redor com falsa inocência. Nem parecia preocupada em ser vista.
— Ela me irrita — disse Carla, sussurrando, mas alta o suficiente. — Sempre fingindo ser boazinha, rindo como se fosse perfeita. Só porque faz uns doces que todo mundo ama, acha que pode conquistar qualquer um… aquela gorda v***a.
O sangue de Isabela parou. O ar sumiu.
Henrique riu. Aquele riso preguiçoso que antes parecia charme.
— Relaxa, princesa. Eu só aturo a baleia da Isa porque como de graça na doceria. Você que ficou com medo de contar pra ela que a gente tá junto. Vai negar?
As pernas cederam. A caixa escorregou dos braços e caiu no chão, se espatifando.
Carla e Henrique viraram, assustados.
— Isa... — começou Carla.
— Não é o que você tá pensando — tentou Henrique.
Isabela não respondeu.
Por um segundo, quis acreditar que não era com ela. Que era um erro. Uma brincadeira c***l. Mas estava ouvindo. Vendo. Era verdade. E a verdade doía como faca cravada sem aviso.
Endireitou os ombros. A voz saiu baixa, firme.
— Cala a boca, Carla. Nunca mais quero te ver na minha confeitaria com essa sua cara falsa. Você e ele se merecem — disse Isabela, a voz firme, seca. — E Henrique... vou te mandar a conta de tudo que você comeu de graça. Se não pagar, juro que vou pagar pros caras do morro cobrarem a dívida.
Os dois tentaram falar ao mesmo tempo. Justificativas, desculpas. Isabela não ouviu.
Carla se desesperou.
— Isa, por favor… a gente só…
— Cala a boca — repetiu.
Quando viram que não a fariam voltar atrás, as palavras mudaram de forma. Ficaram venenosas.
— Gorda i****a. Sempre iludida. Nunca vai ser amada de verdade — cuspiu Carla.
Henrique completou, sem olhar nos olhos dela:
— Uma sonhadora boba, que se engana com qualquer migalha.
Isabela os encarou. Sem lágrimas. Sem desespero. Só raiva.
— Vocês dois vão pro inferno.
Virou as costas. E foi embora.
As ruas estavam vazias. O vestido colava no corpo. Os pés doíam dentro da sandália. Isabela não sabia se tremia de frio ou de vergonha.
Andava sem rumo. O coração apertado, as mãos fechadas em punhos.
— Por que é tão difícil ser suficiente? — murmurou. — Por que ninguém me vê além do meu corpo?
A única resposta que recebeu foi um raio que cortou o céu. A luz branca iluminou tudo por um segundo. Depois, gotas geladas começaram a cair.
Isabela ergueu o rosto, deixando a água bater direto no rosto.
— Que inferno... Eu só queria, uma vez na vida, ser necessária. Ser admirada pelo que sou por dentro. E não julgada por fora. Será que é pedir demais? Mesmo que fosse... em outro mundo?
Novamente como se estivesse zombando dela o tempo respondeu e a chuva engrossou. O som das gotas abafava até os próprios passos. A água escorria pela nuca, encharcando o vestido. A maquiagem, os planos, tudo se dissolvia.
— Senhor — gritou. — Tem como esse dia ficar pior?
O trovão explodiu logo depois. Um clarão tomou o céu.
O ar sumiu. O chão também.
Isabela sentiu o corpo ser puxado pra cima, como se algo maior que tudo a arrancasse da realidade. O zumbido invadiu os ouvidos. A pele parecia queimar. O estômago virou do avesso. Um calor denso envolveu tudo.
Caía. Ou voava. Não sabia.
Então viu.
Abaixo dela, um campo verde, com árvores tortas e montanhas que pareciam feitas de vidro. Nada daquilo era familiar.
E no centro, um dragão.
Prateado. Enorme. Asas abertas como muralhas. A pele reluzia como metal líquido. As narinas soltavam vapor. As garras arranhavam o chão. A boca se iluminava por dentro — um fogo prestes a explodir.
O rugido rasgou o céu. Isabela sentiu o peito vibrar com o som.
O calor veio direto. A luz era tanta que doía.
Ela tentou gritar. Não conseguiu.
Depois do dragão, nada mais.
Só queda.