A multidão começava a se dispersar aos poucos, mas a presença da realeza ainda mantinha o ar pesado, cheio de expectativas. Isabela m*l havia assimilado as palavras do rei quando Aldora se aproximou com passos graciosos e um sorriso que parecia moldado com esmero.
— Isabela — disse a rainha, com a voz suave como seda. — Pode fazer perguntas. Todas serão respondidas. A verdade aqui não lhe será negada.
Isabela a observou com atenção. Aquela mulher parecia saída de um filme: elegante, altiva, quase perfeita demais. Mas havia algo por trás daquele brilho. Um cuidado milimétrico em cada gesto. Algo que lembrava armadilhas bem montadas.
— Você será levada à Casa das Candidatas — continuou Aldora — onde aprenderá tudo o que precisa para cumprir seu papel sem riscos, nem para você, nem para Avalon.
Isabela assentiu devagar. Não fazia sentido resistir. Na verdade… fazia muito mais sentido ficar, e ver no que aquilo ia dar, afinal ela tinha pedido por aquilo e se não gostasse era só ir embora.
Não era? Essa pergunta ecoou em sua mente mas sem respostas.
Novamente ela pensou na doceria vazia, nas piadas repetidas, nas vozes maldosas disfarçadas de amizade. Pensou em Henrique. Em Carla. E no espelho do banheiro, onde tentava todos os dias enxergar beleza em si mesma, sem sucesso.
Ali, naquele mundo estranho, era valorizada. Venerada. Necessária.
Se ela podia salvar aquelas pessoas — e se de fato era capaz —, então salvaria.
— Eu vou aprender — respondeu com firmeza. — E vou fazer o que for preciso.
Aldora sorriu, satisfeita. Foi quando o silêncio do salão foi quebrado por sua voz novamente. Uma melodia bem colocada, com cada sílaba medida com precisão.
— General Kael.
Ele já havia se virado para sair. Os passos discretos em direção à porta. Estava pronto para desaparecer como sempre fazia. Mas ao ouvir seu nome, parou.
Aldora sorriu com gentileza, mas seus olhos estavam fixos nele com a frieza de quem move peças num tabuleiro.
— Vamos deixar nossa querida Isabela aos seus cuidados. Você será seu guardião. Deverá protegê-la até que o ritual possa ser realizado. Não deve tirar os olhos dela. Afinal, nada mais justo que nosso melhor guerreiro cuide de nossa maior bênção.
Kael ficou imóvel por um instante. O que Aldora queria, exatamente? Era óbvio que não confiava nele. Nunca confiara. E agora colocava aquela humana patética — era assim que ele a via — sob sua p******o, como se fosse algum tipo de punição disfarçada de missão.
A raiva cresceu em seu peito como fogo abafado. Estava escrito. Ela queria que ele ficasse com Isabela. E Kael não era burro. Aquilo era mais do que uma ordem. Era manipulação.
Mas sua expressão permaneceu impassível.
— Como desejar, Majestade — respondeu, seco.
Seu olhar se ergueu e encontrou o de Isabela. Foi como se o salão inteiro sumisse por um segundo.
Havia desafio nos olhos dela. Determinação. Como se dissesse:
“Não vou abaixar a cabeça.”
Nos dele, desprezo evidente. E uma raiva que nem ele conseguia entender direito.
Mas nenhum dos dois desviou o olhar.
Ficaram ali, por segundos longos demais. Em silêncio, como dois opostos presos pela mesma corrente.
E mesmo que Kael odiasse admitir, havia algo naquela mulher que incomodava de um jeito diferente. Ela não era como os outros. Não tremia diante dele. Não implorava. E por algum motivo, isso mexia com a fera adormecida dentro dele — a mesma que ele passara a vida tentando controlar.
Kael desviou o olhar primeiro. Não por fraqueza, mas por cansaço. E também porque sentiu a aproximação antes mesmo de ouvir a voz irritantemente familiar.
— O papel perfeito pra você… babá. — Hermes murmurou ao seu lado, a voz carregada de escárnio.
Kael nem se virou. Sabia exatamente o sorriso que o meio-irmão exibia — aquele sorrisinho torto, satisfeito, convencido de que sempre ganhava no final. Hermes era arrogante, mimado desde o berço, e ainda assim idolatrado por uma corte inteira.
Kael respirou fundo, ignorando. Não valia o desgaste.
Virou-se para Isabela e falou com o mesmo tom impassível de antes:
— Se quiser me acompanhar, vou te mostrar onde vai ficar.
Ela lançou um último olhar ao salão — o rei, Aldora, os rostos admirados, as palmas que ainda ecoavam como um delírio — e assentiu. Parte dela queria respostas, mas a maior parte só queria sair dali. Nunca fora o centro de nada, e toda aquela atenção parecia um fardo maior do que podia carregar.
Caminhar ao lado de Kael parecia estranho. O silêncio dele pesava mais do que gritos. Ela tentava interpretar aquele olhar sempre tenso, aquele maxilar travado.
Mas a pouca gentileza mostrada diante dos outros sumiu assim que ficaram sozinhos no corredor de pedra.
Kael parou bruscamente, virou-se para ela, os olhos estreitos.
— Olha aqui — rosnou. — Se você tá metida com Aldora, se tá aqui pra cumprir algum joguinho dela só pra me atormentar, vai se arrepender. E f**o.
Isabela parou também. Levantou o queixo.
— Olha aqui você — rebateu, sentindo o sangue subir à cabeça. — Pelo que entendi, sem mim o seu precioso mundo vai pelos ares. Então o mínimo que você deveria fazer é ser educado.
Os dois se encararam. Nenhum recuou.
Kael, por fim, respirou fundo, controlando-se.
— Vem. Vamos até a ala norte. Lá vou fazer o feitiço de p******o.
Ele se virou e saiu andando. Rápido. Tão rápido que Isabela teve que correr para acompanhá-lo.
Desceram escadas, cruzaram passagens estreitas, corredores antigos e frios até que chegaram a uma porta de madeira escura. Kael empurrou, revelando um aposento silencioso, envolto por uma magia densa que parecia vibrar nas paredes.
— Esse era o quarto da minha mãe — murmurou, quase para si mesmo.
Isabela não respondeu. O ambiente ali tinha algo diferente. Intenso. Era como se o ar pulsasse.
Kael foi direto a uma estante cheia de objetos antigos. Pegou um punhado de runas, colocou-as no chão e começou a desenhar um círculo com precisão militar. As marcas brilhavam sutilmente com o toque de seus dedos.
Isabela o observava com o coração acelerado. Aquilo parecia… errado. Ritualístico. Intenso demais.
Deu um passo para trás.
— Eu… não vou participar de magia n***a, se for isso.
Kael olhou por cima do ombro, o rosto sério, mas não hostil dessa vez.
— Não é. Já fiz isso centenas de vezes. É um feitiço simples. Vai me permitir saber quando você estiver em perigo. Nada além disso. — A voz dele tinha uma firmeza estranha, como quem não mentia, mas odiava explicar.
Isabela hesitou, mas algo em seu tom — uma honestidade crua — a convenceu. Respirou fundo e entrou no círculo quando ele pediu.
Kael estendeu a mão direita. Ela a segurou. A pele dele estava quente, firme.
Ele começou a recitar palavras em uma língua que ela não conhecia. A voz era grave, ritmada, como um canto antigo. O círculo ao redor deles brilhou com mais força.
Um clarão preencheu o quarto.
Isabela sentiu uma leve ardência na lateral da cintura, como uma queimação que não doía, apenas marcava.
Mas além disso… nada. Nenhuma transformação, nenhuma dor.
Ela soltou o ar devagar.
— É isso?
Mas Kael não respondeu.
Olhava para ela. Paralisado.
Seus olhos prateados, sempre tão frios, agora estavam arregalados em puro pânico.
Isabela sentiu o estômago afundar. Algo estava errado.
Muito errado.
— Kael? — perguntou, a voz vacilando.
Mas ele não respondeu.
E naquele instante, ela soube: o que quer que tivesse acontecido ali… não era parte do plano.