O círculo se desfez, mas algo continuava ali.
Kael não se moveu. O ar ao redor parecia mais denso, como se tivesse sido comprimido e deixado para trás um eco invisível. Um formigamento percorreu sua pele, o tipo que não vinha da magia — vinha do instinto.
Ele já havia usado aquele feitiço dezenas de vezes. Frio, calculado. Nunca havia sentido aquilo. O corpo todo latejava como depois de uma explosão silenciosa. Os músculos estavam tensos demais. O coração, acelerado demais.
E a garganta... seca como pedra.
Os olhos fixos em Isabela, mas o foco não vinha. Era como se os sentidos estivessem deslocados — visão, tato, audição — todos desordenados, como peças em posições erradas.
Ela também parecia atordoada. A testa franzida, o olhar perdido por um segundo. Depois virou o rosto na direção dele, tentando se recompor.
"É isso?", perguntou, a voz baixa, sem convicção.
Kael não respondeu de imediato. O olhar dele a dissecava, mas não por desconfiança — era um exame, como se buscasse um sinal que confirmasse o que sentia. Mas não havia lógica naquilo. Só uma sensação estranha, viva, que não pertencia a ele.
Por fim, a voz saiu áspera.
"Você tá bem?"
Isabela hesitou, como se a pergunta tivesse lhe pegado desprevenida.
"Na verdade... tem algo esquisito na minha cintura."
Ela deslizou a mão até o lado direito do corpo, tocando com cuidado.
"Tem... alguma coisa aqui."
Os dedos pararam. O rosto endureceu.
"Isso não é do vestido."
Kael se aproximou devagar, mas algo dentro dele já gritava. Não era alerta. Era medo. Frio, seco, cortante. E o pior: não era dele. Aquilo o atravessava como um pensamento estranho que não lhe pertencia.
Kael não sentia medo. Mas agora o estômago se fechava. O peito travado. Algo rastejava dentro dele — e não era seu.
"Tem algo duro na minha cintura", disse Isabela, a voz mais tensa. "Isso não tava aqui antes."
Ele não pensou duas vezes.
Avançou, agarrou o tecido do vestido com força e rasgou de uma vez. O som do pano se partindo cortou o ar como uma lâmina. Isabela recuou, ofegante, sem entender.
Kael afastou o tecido com as mãos e então viu.
Parou.
Deu dois passos para trás.
O olhar congelado.
Na pele dela, colada como uma cicatriz viva, reluzia uma escama.
Prateada.
Perfeita.
E familiar.
Não era qualquer escama.
Era do seu dragão.
Enquanto isso Isabela travou.
Primeiro, o choque de ver Kael rasgar seu vestido sem aviso. Depois, a raiva subindo quente pelo peito.
"Você... podia ter avisado!", soltou, a voz tremendo.
Mas no instante seguinte, quando percebeu que parte da sua pele estava exposta, o rosto ardeu. A vergonha bateu junto com a indignação — não por ele olhar, mas porque algo estava errado. Porque ele não parava de olhar.
O olhar de Kael estava fixo, pesado. Não havia malícia ali. Só espanto. Silêncio.
Então ela também viu.
Uma escama.
Refletia a luz fraca como se tivesse metal vivo sob a pele. Pequena. Prateada. Brilhante.
Por um segundo, Isabela não entendeu.
Depois, o medo tomou conta.
"Tem algo aqui..." sussurrou, levando a mão ao lado do corpo. Os dedos tocaram a superfície dura. Gelada.
"Isso não é do vestido..."
A raiva sumiu. A vergonha também. Tudo foi substituído por um pânico crescente.
"Tira isso..." murmurou, já tentando arrancar.
Mas era inútil. A escama estava presa. Não como um acessório, mas como se tivesse nascido ali. Parte do seu corpo. Parte dela.
Ela puxou, as unhas afundando ao redor, sem resultado.
Kael não disse nada. O rosto dele era uma máscara. Mas seus olhos estavam diferentes — mais escuros, mais fundos. Como se algo dentro dele tivesse quebrado.
Isabela tentou de novo. Puxava com força, as mãos trêmulas. A garganta fechava. Os pulmões m*l puxavam ar. A cabeça girava.
Nada.
O desespero começou a transbordar.
Era como estar presa em algo que não fazia sentido. Um pesadelo, uma maldição. Uma ameaça.
Kael continuava imóvel. A pele dele parecia tensa, como se o corpo inteiro estivesse prestes a se mover, mas não soubesse para onde.
Ela o encarou, irritada, sufocada, com vontade de gritar.
"De que adianta ser lindo, se a única coisa que sabe fazer é rasgar minhas roupas e me olhar como se eu fosse um fantasma?"
Kael piscou. E respondeu, seco:
"Não estou te encarando. Só tentando entender o que deu errado."
Isabela parou.
Não tinha falado aquilo em voz alta.
O sangue gelou.
"Como... como assim você ouviu?"
Kael franziu o cenho, confuso.
"Você não falou em voz alta?"
O silêncio que veio depois não era normal. Era pesado. Quase sobrenatural.
Isabela sentiu o estômago revirar. Um arrepio percorreu sua nuca. Porque agora não era só a escama. Era ele ouvindo seus pensamentos.
E ela não sabia o que era pior.
Kael começou a andar. Passos firmes, curtos, quase raivosos. O som das botas contra o chão ecoava no quarto, como se quisesse encher o silêncio com algo que fizesse sentido.
Mas nada fazia.
Ele passava as mãos pelos cabelos com força, os dedos afundando até o couro cabeludo. O corpo inteiro parecia tenso demais, como se contivesse uma energia que não pertencia a ele.
Isabela permaneceu imóvel. Observava cada movimento dele, mas algo a puxava para dentro. Uma sensação estranha, impossível de nomear — não era calor, nem frio. Era como uma vibração silenciosa, percorrendo os ossos. Como se estivesse captando uma emoção que não era dela.
O olhar se fixou em Kael. E por um instante... ela sentiu algo. Como se o pensamento dele tivesse passado direto por dentro dela, sem pedir permissão.
E veio. Claro como uma voz sussurrada dentro de sua mente:
"Eu sabia que essa mulher era sinal de problemas. Afinal, me atingiu como um raio, vindo direto do céu."
O corpo de Isabela travou.
Ela ouviu. Claramente. Uma frase inteira, completa — e Kael não tinha aberto a boca.
A raiva subiu, afiada, queimando por dentro. Não só por ter sido invadida, mas por como ele pensava nela.
Ela ergueu o queixo, o orgulho falando mais alto que o medo:
— Acha mesmo que eu escolhi você? Se fosse escolha, teria escolhido alguém mais gentil. Não um ogro como você.
Kael girou na direção dela, o olhar estreito. Mas não falou.
Não precisava.
Os dois estavam parados, se encarando. E foi aí que o pânico real começou. Porque agora, mais do que antes, nenhum dos dois podia negar.
Ele tinha ouvido.
Ela também.
Ambos estavam... expostos.
Os pensamentos, as emoções, tudo que era privado agora fluía como se tivessem aberto portas internas que não sabiam que existiam.
Isabela tentou se proteger. Tentou fechar a mente. Mas não havia tranca.
O que Kael sentia escorria por dentro dela. E o que ela sentia... também.
Vergonha. Raiva. Medo.
Culpa. Curiosidade. Desejo.
Um turbilhão de sentimentos que nunca tinham sido ditos, mas agora não podiam ser silenciados.
Ela deu um passo para trás, como se a distância física pudesse servir de escudo.
Mas não servia.
Porque a invasão não era do corpo. Era da alma.