Hades Narrando
Püta que pariu, que mërda tá acontecendo comigo? Só de chegar perto daquela mexicana meu corpo pira, parece que o sangue ferve. Aquela boca carnuda, rosada, os olhos que encaram e recuam ao mesmo tempo, é tipo veneno. Saí daquele quarto voando, sem nem olhar pra trás. Disseram lá que ela é virgem e aí o peso bateu. Eu posso ser um monte de coisa, mas covarde não sou. Jamais ia me aproveitar de alguém assim.
Mas nem sei o que passou na minha cabeça pra comprar uma mina. Uma mexicana ainda por cima. Uma dïaba de sotaque carregado e olhar que föde com o psicológico de qualquer um.
Desci as escadas falando sozinho, chutando o ar.
— Pörra, Hades, tu enlouqueceu de vez, irmão? — resmunguei pra mim mesmo.
Quando cheguei na sala, minha tia tava lá. Parada, no meio, igual estátua de loja cara. Braço cruzado, olhar afiado.
Passei direto fingindo que nem vi, mas ela me seguiu com o olhar. Fui pra cozinha, abri a geladeira pra catar alguma coisa e fingir que a situação tava sob controle. Mas ela veio atrás de mim, nunca vi ninguém tão insistente.
— Fala aí, tia, qual o B.O. pra eu resolver logo? — joguei, fingindo leveza.
Ela cruzou o braço mais forte, parecia pronta pra me dar uma surra com o olhar.
— O meu B.O. é você, garoto. Que que tu foi arrumar? Comprou uma menina, Thiago! — ela gritou. — Me diz o que vai fazer com ela. Vai botar pra fazer dólar? Pra andar de fuzil nas costas com os teus?
Dei uma risada curta.
— Ah, tia, imagina só a mexicana lá na dolagem, contando dólar de pó e xingando os moleques em espanhol. Ia ser comédia.
Ela não achou graça. O olhar dela queimava. Eu engoli a piada.
— Não vou fazer nada — falei sério, encostando na bancada.
— Nada? — ela repetiu, incrédula. — Então leva ela pra minha casa. Eu sou sozinha mesmo, e mulher com mulher se entende melhor.
Revirei os olhos e soltei seco:
— Cem mil.
— O quê? — ela arqueou a sobrancelha.
— O passe da mexicana, tia. Esqueceu que eu comprei? Se eu comprei, não posso dar. No máximo revendo.
Foi a deixa pra ela tirar o chinelo e me tacar com força. Sorte que eu tenho um bom reflexo. Me abaixei e o chinelo voou, batendo na geladeira com um estalo.
— Carälho, tia! — reclamei, rindo de nervoso. — Tá maluca? Vai quebrar a casa.
Nessa hora o Falante apareceu, rindo feito idïota na porta. Quando olhei pra ele com aquele olhar que diz “sai antes que eu te amasse”, o cara sumiu igual fumaça.
Respirei fundo. Tentei manter o tom firme.
— Olha, tia, ela vai ficar aqui. Se a senhora quiser vir pra cá uns dias, beleza. A casa é sua. Mas daqui a mexicana não sai.
Ela me encarou, sem dizer nada por um tempo. Dava pra sentir o julgamento no ar.
— Tu acha que pode brincar de Deus, né, Thiago? — ela disse por fim. — Compra gente como se fosse coisa.
Fiquei calado. Porque, no fundo, sabia que ela tinha razão.
Mas também sabia que aquela mulher lá em cima não era só mais uma história do submundo. Tinha algo nela que mexia comigo e isso me deixava püto. Eu não posso sentir nada. Não nessa vida.
Peguei a garrafa d’água, bebi direto do gargalo e murmurei baixo:
— Eu só queria entender o que essa mexicana tem que tá bagunçando minha cabeça desse jeito.
A tia bufou, virou as costas e saiu da cozinha.
Fiquei ali, encostado na pia, olhando pro nada.
E eu só conseguia pensar nela, dormindo na minha cama. Pörra, tô födido.
— Hades na escuta, o Bagulho tá esquentando, chefe. O olheiro mandou informação quente: possível operação vindo na área. Repito, operação a caminho.
O rádio caiu no meu ouvido como uma pedrada. O sangue já subiu pro cérebro. Não pensei duas vezes. Joguei o aparelho na mesa, peguei a jaqueta, óculos, e vesti tudo no susto. A casa inteira parecia em câmera lenta, mas minha cabeça já corria em velocidade de tiro.
— Falante — chamei por cima do ombro quando passei pela porta do quarto — fica aqui. Se a mexicana acordar e pedir comida, já manda comprar alguma coisa, e caso ela disser que a cabeça ainda dói, manda chamar um médico.
Falei baixo, controlado, mas cada palavra era ordem. Não podia deixar rastro de hesitação. A chave da moto bateu na minha palma. Peguei ela sem olhar, joguei o celular no bolso e desci. O motor roncou como um animal, e eu senti a adrenalina afiar tudo: visão, ouvido, ódio.
— Se esses filho da püta vierem aqui, vão se arrepender — rosnei no caminho. — Vão ver sangue lavando a rua do complexo. Mato cada um deles desgraçado, sem piedade.
Cheguei na boca. O ar cheirava a fumaça, metal e tensão. O povo parou, olhou. O olheiro, um moreno magrelo com olhos de barata de noite, veio até mim e jogou a informação direto no peito como se me desafiasse:
— Chefe, operação vai cair agora. Tiveram movimentação grande, vi viatura passando perto do ponto X, roupa tática, parece que é de verdade.
Senti o estômago embrulhar de raiva, aquele ódio bruto que te deixa frio por dentro e quente por fora. Não é medo, é fúria de quem foi feito pra mandar e agora vê a casa ameaçada.
— Vai falando — dei a sequência seca — quem viu? quantas? quem na linha? — parei. Não precisava saber tudo; precisava fazer o básico.
— Me ouve, mano: é pra agora.
A resposta foi anã perante a bomba que explodiu em mim. A vontade foi sair atirando pelas vielas, arrancar a cabeça de quem ousasse. Mas eu não saio feito bicho; eu comandei.
O que um dono de morro faz quando recebe notícia de operação? Primeiro, o sangue congela e a mente vira cálculo. A ordem sai rápida e dura, mas sem detalhe é no grito, quem manda sabe que pânico espalha fraqueza. A senha corre, os pontos críticos recebem aviso: cordão de proteção, portas fechadas. A gente ativa o modo sobrevivência.
Mandei fechar a área mais exposta e espalhar a palavra: quem bater de frente vai encontrar resposta. E resposta minha não é conversa é Chuva de aço.
— Quero ver os que acham que vêm limpar o morro saírem com medo de pisar no próprio räbo. Quero o rastro desses homens lavando as ruas, pra que todo mundo saiba que quem mexe com o meu comando paga caro.
Mandei mensagem pro Falante, ficar de olho na minha casa. Fechar tudo, o bagulho vai ficar doido.