A noite do crime

1604 Words
A noite passada pairava sobre mim como uma névoa densa, impregnando cada célula do meu corpo com uma mistura de adrenalina e repulsa. A imagem do rosto dele, agora sem vida, insistia em se projetar na tela da minha mente. As mãos, antes crispadas em volta do seu pescoço, agora tremiam enquanto eu tentava inutilmente organizar os papéis sobre a minha mesa. Eu sou Henry, delegado de polícia. Ou pelo menos era isso que eu costumava pensar de mim. A linha entre a lei e a justiça, que sempre me pareceu tão nítida, agora se mostrava turva, quase inexistente. Ontem à noite, eu a cruzei. Matei um homem. Asfixiado. A lembrança da mulher sentada na minha frente, na delegacia, ainda ecoava em meus ouvidos. O olhar assustado, a voz embargada pelo choro, os hematomas roxos em seus braços. Ela relatou a violência, o medo constante, a perseguição implacável do ex-marido que se recusava a aceitar o fim do relacionamento. A cada palavra, a cada detalhe sórdido, meu sangue fervia. A impotência dela me corroía por dentro. Eu a vi tremer, implorar por ajuda, e em seus olhos, vi o reflexo de tantas outras mulheres que passaram por aquela mesma sala, carregando o fardo da violência doméstica. Aquele homem era uma ameaça. Uma ameaça real, iminente. Não apenas para ela, mas para todas as mulheres que um dia se viram presas em um ciclo de violência. A lei, por vezes, se mostra lenta, burocrática, incapaz de oferecer a proteção imediata que vítimas como ela necessitam. E naquele momento, tomado por uma fúria cega, eu me vi como o único capaz de impedir uma tragédia. A imagem dele se formou em minha mente. O rosto vermelho, os olhos esbugalhados, as mãos tentando inutilmente afastar as minhas. A sensação tátil da sua garganta sob meus dedos ainda me assombrava. Eu apertei. Apertei até que ele parou de se debater, até que o último suspiro escapou de seus lábios. Na frieza da minha sala na delegacia, a realidade me atingiu como um soco. Eu, um delegado de polícia, havia me tornado um assassino. A náusea subiu pela minha garganta e me forcei a engolir em seco. “Eu não sou um assassino”, murmurei para mim mesmo, a voz quase inaudível. “Eu não sou mau. Eu só… eu só a protegi.” Esta não era a primeira vez. Houve outras. Situações semelhantes, mulheres em perigo, homens violentos. Em cada caso, a mesma sensação de urgência, a mesma necessidade visceral de agir. A lei, os procedimentos, tudo se esvaía diante da minha própria concepção de justiça. Uma justiça distorcida, eu admito, moldada pela minha própria impulsividade. Eu me levantei da cadeira, caminhando até a janela. A cidade se estendia lá fora, um labirinto de concreto e aço sob o céu cinzento da manhã. A rotina seguia seu curso, alheia ao turbilhão que se agitava dentro de mim. “Eu não sou um monstro”, repeti, agora em um tom mais firme, como se tentasse convencer a mim mesmo. “Eu fiz o que precisava ser feito. Eu a salvei.” Mas a dúvida persistia, uma sombra espreitando nos cantos da minha consciência. A culpa, como um ácido, corroía minhas entranhas. Eu sabia que minhas ações eram impulsivas, movidas por uma raiva que eu m*l conseguia controlar. Sabia que estava me afogando em um mar de justificativas, tentando desesperadamente encontrar uma boia que me mantivesse à tona. Enquanto eu me perdia em meus pensamentos sombrios, a porta da minha sala se abriu e um dos meus policiais entrou. “Delegado”, ele disse, a voz em um tom grave, “temos um chamado. Um homem foi encontrado morto em sua casa. O vizinho o encontrou.” Meu coração disparou. A frieza que me envolveu era quase palpável. Eu sabia. Eu sabia que era ele. A vítima da minha própria justiça. O homem que eu havia matado na noite anterior. “Qual o endereço?”, perguntei, tentando manter a voz firme, profissional. O policial me informou o local. Era perto. Muito perto. Um nó se formou na minha garganta. Eu, o autor do crime, seria o responsável pela investigação. A ironia macabra da situação me atingiu como um tapa. “Prepare a viatura”, ordenei, tentando disfarçar o tremor em minhas mãos. “Vamos até lá.” Enquanto saíamos da delegacia e entrávamos no carro, eu me forcei a assumir a postura de um policial em serviço. O delegado Henry, o homem da lei, assumiu o controle. Pelo menos por fora. Por dentro, o turbilhão continuava, uma tempestade furiosa que ameaçava me engolir por completo. Eu sabia que precisava ser cuidadoso. Cada passo, cada palavra, cada gesto seriam analisados. Eu precisava manter a compostura, disfarçar a culpa, conduzir a investigação sem me comprometer. A cena do crime me aguardava. E eu, o assassino, estava a caminho. A noite passada me assombraria para sempre, mas agora, eu precisava lidar com as consequências. Precisava jogar o jogo. O jogo perigoso que eu mesmo havia começado. A cena do crime era um retrato de caos e desespero. A casa, uma modesta residência de dois andares, estava repleta de policiais, técnicos em cena de crime e curiosos. A fita amarela da polícia delimitava o perímetro, impedindo a entrada de pessoas não autorizadas. No centro da sala de estar, o corpo do homem jazia no chão. A cena era surreal, como se um filme de terror tivesse se tornado realidade. O ar estava impregnado pelo cheiro de morte, uma mistura nauseante que me atingiu como um soco no estômago. Os técnicos em cena de crime trabalhavam com precisão, fotografando cada detalhe, coletando amostras de DNA e analisando a cena em busca de pistas. Os policiais entrevistavam os vizinhos, tentando reconstruir os últimos momentos da vida da vítima. Eu me sentia como um ator em uma peça, interpretando o papel de um delegado impassível, enquanto por dentro o pânico e a culpa me corroíam. Eu precisava me manter focado, precisava encontrar o assassino, mesmo sabendo que ele estava bem diante dos meus olhos. Olhei em volta, a cena meticulosamente montada. Sem sinais de arrombamento, nada fora do lugar, exceto, é claro, o corpo inerte estirado no tapete. A minha vítima. Bryan aproximou-se com a expressão grave de sempre. “Nada, Henry. Sem sinais de arrombamento, nenhuma impressão digital que não seja da vítima… Quem fez isso, sem dúvida, é um profissional. Ninguém viu nada, nenhum vizinho notou nenhuma movimentação estranha.” Um profissional. A palavra ecoou na minha mente. De certa forma, eu era um, não é mesmo? Anos na polícia me ensinaram a observar os detalhes, a ler as entrelinhas, a entender a mente criminosa. E naquela noite, eu havia usado esse conhecimento para cometer o crime perfeito. Ou quase. A vítima, um sujeito desprezível, acumulava um histórico de violência contra mulheres e uma ficha policial extensa. A lista de potenciais suspeitos era quase infinita. Quem se importaria com mais um criminoso morto? A justiça, certamente não. A sociedade, provavelmente aliviada. E eu… eu me livraria dessa. Mas a constatação de Bryan martelava na minha cabeça: um caso sem solução. Um fantasma rondando meu departamento, manchando, mesmo que minimamente, minha reputação. Reputação essa que eu construí com tanto esmero, com tantos anos de dedicação à lei, à ordem, à… fachada. Enquanto Bryan continuava a examinar o local, minha mente vagava. O peso da culpa, ou melhor, a frieza calculista que me dominava, me fazia pensar no futuro. Se houvesse uma próxima vez, porque, sejamos honestos, a vida é cheia de imprevistos e pessoas desprezíveis, eu precisaria ser mais… eficiente. Livrar-me do corpo. A peça chave que ligava o crime a mim. Sem corpo, sem crime. Uma lógica simples, porém eficaz. A adrenalina daquela noite começava a dar lugar a uma calma quase perturbadora. Eu havia cruzado uma linha, uma linha tênue que separava o justiceiro do criminoso. E eu, Henry, o delegado respeitado, o homem da lei, havia me tornado o segundo. Mas ninguém precisava saber disso. A conversa com Bryan se prolongou por mais algum tempo. Ele repetia as mesmas observações, tentando encontrar alguma pista, algum vestígio que pudesse levar a um suspeito. Eu o ouvia atentamente, respondendo com naturalidade, oferecendo sugestões, interpretando o papel do delegado dedicado que buscava a verdade. Enquanto isso, em minha mente, a engrenagem fria e calculista girava. Eu precisava manter a calma, a compostura. Não podia deixar transparecer nenhuma emoção, nenhum sinal de nervosismo. Eu era o delegado Henry, o homem que solucionava crimes, não o homem que os cometia. A noite avançava e a cena do crime começava a se esvaziar. Os peritos recolhiam as últimas evidências, os policiais anotavam os últimos detalhes. Bryan me lançou um olhar cansado, mas determinado. “Vamos pegar esse cara, Henry. Custe o que custar.” Assenti com um sorriso forçado. “É o nosso trabalho, Bryan. A justiça precisa ser feita.” Mas a justiça, naquela noite, já havia sido feita. Uma justiça particular, uma justiça sombria, uma justiça que apenas eu conhecia. E enquanto caminhava para fora do escritório, deixando para trás o corpo inerte e as perguntas sem resposta, eu sabia que carregava comigo um segredo que me acompanharia para sempre. Um segredo que me tornava, ao mesmo tempo, o caçador e a caça. Um segredo que me lembrava, a cada instante, que da próxima vez, eu precisaria ser ainda mais… profissional. A reputação, afinal, era tudo o que me restava. E eu a protegeria com unhas e dentes, custasse o que custasse. Mesmo que isso significasse sujar ainda mais as minhas mãos.
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