O Almoço com o Monstro

1058 Words
Narrado por Maísa Viana Eu não dormi. Não fechei os olhos nem por um segundo. A madrugada foi um tormento silencioso. Fiquei deitada encarando o teto, perdida em lençóis que pareciam pesar toneladas. O ar se tornava denso, difícil de respirar, como se a própria casa fosse cúmplice do meu sufoco. Meu corpo implorava por descanso, mas minha mente girava em círculos sem fim. Sempre voltando ao mesmo ponto. Hero Green. O nome dele era um eco constante, uma presença no escuro. Lembrei da forma como invadiu minha consulta médica, impondo-se como se já tivesse direito sobre mim e sobre o bebê que eu carregava. Era um homem feito para mandar. Isso eu não podia negar. O que me assustava não era apenas a voz baixa, a postura fria ou o equilíbrio estranho entre ameaça e elegância. O que realmente me paralisava era a convicção. Hero acreditava que podia me tomar, decidir por mim, e no mundo dele… talvez realmente pudesse. --- Quando o relógio marcou meio-dia, a campainha tocou. O susto foi tão grande que a xícara escapou da minha mão, batendo na pia com estrondo. O coração disparou, batendo alto demais dentro de mim. Eu sabia quem era. Sempre soube. Ele tinha prometido que viria. E Hero Green cumpria promessas. Fui até a porta com os dedos trêmulos. Abri devagar, como quem encara uma sentença inevitável. Ele estava lá. Imponente. Preciso. Camisa preta ajustada, mangas dobradas revelando o antebraço forte e a tatuagem que desaparecia sob o Rolex dourado. O cabelo penteado com perfeição. Mas foi o olhar que me atingiu. Frio, profundo, sem hesitação. Como se me enxergasse inteira e, ainda assim, não recuasse. Atrás dele, o carro preto aguardava, motorista ao lado, porta aberta. — Você realmente veio — murmurei, tentando conter o tremor da voz. — Eu disse que viria, Maísa. — E eu disse que não iria. — Também deixei claro que isso não era escolha. — Hero... — É só um almoço. Você come, conversamos, e eu te trago de volta. — Com você, nada nunca é só. Ele sorriu de canto. Um sorriso perigoso, quase bonito, mas carregado de escuridão. — Vai ser mais fácil se vier por vontade própria. E convenhamos, você precisa se alimentar. Agora não está mais sozinha. Hesitei. Olhei para dentro da minha casa, como se ainda houvesse um refúgio possível. Não havia. — Se eu for, vai ser em um lugar público. Com gente. — Maísa... se eu quisesse te levar à força, já teria feito. E não seria no horário do almoço. Ele tinha razão, e isso só me deixou mais assustada. — Ainda tenho escolha — sussurrei. — Pequena, mas minha. Ele assentiu, como se me permitisse acreditar nisso. Caminhei até o carro, sentindo as pernas instáveis. O cheiro de couro e perfume amadeirado tomou conta do espaço quando sentei no banco de trás. Hero entrou logo depois. O silêncio durante o trajeto era absoluto, mas a tensão preenchia cada centímetro. --- O restaurante ficava afastado do centro, fachada de pedra clara cercada por ciprestes e flores discretas. Elegante, mas discreto. Privacidade e segurança. O estilo Green. Um funcionário de terno nos recebeu prontamente. — Senhor Green. A mesa está pronta. Claro que estava. Fomos guiados por um corredor com cortinas brancas e luz suave até um salão isolado, cercado por painéis de vidro fosco. Um espaço só nosso. Uma jaula para dois. — Pedi frutos do mar — disse ele, sentando-se com naturalidade. — É seguro pra você? — Não estou com fome. — Você precisa comer. Agora carrega mais do que a si mesma. — Isso é chantagem emocional. — É cuidado. A garçonete trouxe os menus, que ele sequer tocou. Tudo já estava decidido. Hero sempre pensava antes, agia antes. Dois passos à frente. — Você age como se fosse meu tutor — murmurei, mexendo no guardanapo. — Não. Eu ajo como alguém que tem algo a perder. — Você não me conhece. Nem gosta de mim. Ele ergueu os olhos, sérios. — Eu não fui criado para gostar. Fui criado para proteger. — Isso não é proteção. É posse. — No mundo onde cresci, proteger é manter sob controle. É isso que faço agora. A comida chegou: ostras frescas, salada com limão siciliano, suco gelado. Tudo impecável, mas o gosto era de tensão. — Você acha que pode me convencer com pratos bonitos e frases calculadas? — Não. Eu não vim te convencer. Vim te avisar. — Avisar? Ele se inclinou sobre a mesa. — Há pessoas observando você. Pessoas que não querem meu herdeiro vivo. Se não puderem te atingir com palavras, usarão armas. — Isso é paranoia. — Isso é Sicília. Isso é máfia. Isso é real. Engoli em seco. — E o seu plano é me prender em um casamento como se fosse um colete à prova de balas? — Exatamente. Porque é. — Eu não sou parte da sua guerra. — Mas você carrega o sangue que dá poder à guerra. As palavras me atingiram como socos. Fiquei sem voz. Ele continuou a refeição como se estivesse discutindo negócios triviais. — E se eu disser não? — arrisquei. Hero levantou os olhos, firme como mármore. — Então eu direi sim por você. — Isso é sequestro. — Isso é sobrevivência. O silêncio tomou conta da mesa. O suco tinha gosto metálico na boca. O estômago revirava. Ele terminou, fez um gesto discreto, e o gerente apareceu. Nenhuma conta, nenhuma discussão. Poder silencioso. Letal. Na saída, ele me encarou. O olhar mais escuro do que nunca. — Hoje à noite vai chegar um pacote. — O quê agora? — Seu vestido. Branco. Sob medida. — Isso é um absurdo. — É um aviso. — Você nunca me perguntou se eu queria isso. — Porque querer não muda o que já foi selado. Voltamos ao carro. Ele me deixou na porta de casa. Antes de sair, inclinou-se pela janela. — Amanhã, você será Maísa Green. Não respondi. Subi as escadas com as pernas bambas. Tranquei a porta, encostei as costas nela e fechei os olhos. Então chorei. Porque amanhã, diante de um juiz, com um vestido que não escolhi e ao lado de um homem que não amava... eu me tornaria esposa. De Hero Green. Um homem que não precisava me amar para me possuir. Apenas decidir.
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