Narrado por Maísa Viana
Eu não dormi. Não fechei os olhos nem por um segundo.
A madrugada foi um tormento silencioso. Fiquei deitada encarando o teto, perdida em lençóis que pareciam pesar toneladas. O ar se tornava denso, difícil de respirar, como se a própria casa fosse cúmplice do meu sufoco. Meu corpo implorava por descanso, mas minha mente girava em círculos sem fim. Sempre voltando ao mesmo ponto.
Hero Green.
O nome dele era um eco constante, uma presença no escuro. Lembrei da forma como invadiu minha consulta médica, impondo-se como se já tivesse direito sobre mim e sobre o bebê que eu carregava.
Era um homem feito para mandar. Isso eu não podia negar. O que me assustava não era apenas a voz baixa, a postura fria ou o equilíbrio estranho entre ameaça e elegância. O que realmente me paralisava era a convicção. Hero acreditava que podia me tomar, decidir por mim, e no mundo dele… talvez realmente pudesse.
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Quando o relógio marcou meio-dia, a campainha tocou.
O susto foi tão grande que a xícara escapou da minha mão, batendo na pia com estrondo. O coração disparou, batendo alto demais dentro de mim. Eu sabia quem era. Sempre soube.
Ele tinha prometido que viria. E Hero Green cumpria promessas.
Fui até a porta com os dedos trêmulos. Abri devagar, como quem encara uma sentença inevitável.
Ele estava lá. Imponente. Preciso.
Camisa preta ajustada, mangas dobradas revelando o antebraço forte e a tatuagem que desaparecia sob o Rolex dourado. O cabelo penteado com perfeição. Mas foi o olhar que me atingiu. Frio, profundo, sem hesitação. Como se me enxergasse inteira e, ainda assim, não recuasse.
Atrás dele, o carro preto aguardava, motorista ao lado, porta aberta.
— Você realmente veio — murmurei, tentando conter o tremor da voz.
— Eu disse que viria, Maísa.
— E eu disse que não iria.
— Também deixei claro que isso não era escolha.
— Hero...
— É só um almoço. Você come, conversamos, e eu te trago de volta.
— Com você, nada nunca é só.
Ele sorriu de canto. Um sorriso perigoso, quase bonito, mas carregado de escuridão.
— Vai ser mais fácil se vier por vontade própria. E convenhamos, você precisa se alimentar. Agora não está mais sozinha.
Hesitei. Olhei para dentro da minha casa, como se ainda houvesse um refúgio possível. Não havia.
— Se eu for, vai ser em um lugar público. Com gente.
— Maísa... se eu quisesse te levar à força, já teria feito. E não seria no horário do almoço.
Ele tinha razão, e isso só me deixou mais assustada.
— Ainda tenho escolha — sussurrei. — Pequena, mas minha.
Ele assentiu, como se me permitisse acreditar nisso.
Caminhei até o carro, sentindo as pernas instáveis. O cheiro de couro e perfume amadeirado tomou conta do espaço quando sentei no banco de trás. Hero entrou logo depois. O silêncio durante o trajeto era absoluto, mas a tensão preenchia cada centímetro.
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O restaurante ficava afastado do centro, fachada de pedra clara cercada por ciprestes e flores discretas. Elegante, mas discreto. Privacidade e segurança. O estilo Green.
Um funcionário de terno nos recebeu prontamente.
— Senhor Green. A mesa está pronta.
Claro que estava.
Fomos guiados por um corredor com cortinas brancas e luz suave até um salão isolado, cercado por painéis de vidro fosco. Um espaço só nosso. Uma jaula para dois.
— Pedi frutos do mar — disse ele, sentando-se com naturalidade. — É seguro pra você?
— Não estou com fome.
— Você precisa comer. Agora carrega mais do que a si mesma.
— Isso é chantagem emocional.
— É cuidado.
A garçonete trouxe os menus, que ele sequer tocou. Tudo já estava decidido. Hero sempre pensava antes, agia antes. Dois passos à frente.
— Você age como se fosse meu tutor — murmurei, mexendo no guardanapo.
— Não. Eu ajo como alguém que tem algo a perder.
— Você não me conhece. Nem gosta de mim.
Ele ergueu os olhos, sérios.
— Eu não fui criado para gostar. Fui criado para proteger.
— Isso não é proteção. É posse.
— No mundo onde cresci, proteger é manter sob controle. É isso que faço agora.
A comida chegou: ostras frescas, salada com limão siciliano, suco gelado. Tudo impecável, mas o gosto era de tensão.
— Você acha que pode me convencer com pratos bonitos e frases calculadas?
— Não. Eu não vim te convencer. Vim te avisar.
— Avisar?
Ele se inclinou sobre a mesa.
— Há pessoas observando você. Pessoas que não querem meu herdeiro vivo. Se não puderem te atingir com palavras, usarão armas.
— Isso é paranoia.
— Isso é Sicília. Isso é máfia. Isso é real.
Engoli em seco.
— E o seu plano é me prender em um casamento como se fosse um colete à prova de balas?
— Exatamente. Porque é.
— Eu não sou parte da sua guerra.
— Mas você carrega o sangue que dá poder à guerra.
As palavras me atingiram como socos. Fiquei sem voz.
Ele continuou a refeição como se estivesse discutindo negócios triviais.
— E se eu disser não? — arrisquei.
Hero levantou os olhos, firme como mármore.
— Então eu direi sim por você.
— Isso é sequestro.
— Isso é sobrevivência.
O silêncio tomou conta da mesa. O suco tinha gosto metálico na boca. O estômago revirava.
Ele terminou, fez um gesto discreto, e o gerente apareceu. Nenhuma conta, nenhuma discussão. Poder silencioso. Letal.
Na saída, ele me encarou. O olhar mais escuro do que nunca.
— Hoje à noite vai chegar um pacote.
— O quê agora?
— Seu vestido. Branco. Sob medida.
— Isso é um absurdo.
— É um aviso.
— Você nunca me perguntou se eu queria isso.
— Porque querer não muda o que já foi selado.
Voltamos ao carro. Ele me deixou na porta de casa. Antes de sair, inclinou-se pela janela.
— Amanhã, você será Maísa Green.
Não respondi. Subi as escadas com as pernas bambas. Tranquei a porta, encostei as costas nela e fechei os olhos.
Então chorei.
Porque amanhã, diante de um juiz, com um vestido que não escolhi e ao lado de um homem que não amava... eu me tornaria esposa.
De Hero Green.
Um homem que não precisava me amar para me possuir. Apenas decidir.